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quarta-feira, 4 de junho de 2025

JUSSARA - Adelaide Dittmers

                                                               



JUSSARA

Adelaide Dittmers

 

 

Dona Jussara foi buscar água no rio.  Passos trôpegos, encurvada pelos anos de uma vida, despida de prazeres e farta de decepções, muda, pela longa solidão, quando tropeçou em uma pedra do caminho e caiu. O balde soltou-se de sua mão e rolou barulhento pela pequena encosta. Um grito silencioso saiu da boca calada. Quantas pedras a derrubaram na sua caminhada.  Quantas vezes teve que se erguer e seguir em frente?  Tentou se levantar.  Não teve forças. A pobre mulher, que quase nada tivera, ficou ali deitada e esquecida pela vida vazia e solitária.

Depois de algum tempo, foi se levantando devagar, com o mesmo vagar, que enfrentava o caminho que trilhara até aquele dia.

Noventa anos desenharam em seu corpo franzino um mapa rico em vincos, cujas profundezas guardavam desilusões, perdas, a necessidade de trabalhar incansavelmente e revezes traiçoeiros, que mataram muitos de seus mais íntimos sonhos.  Ser mãe era o mais precioso deles.

Pôs-se de pé e olhou em volta.  Somente o vento brando do começo da manhã lhe fazia companhia, silencioso como ela.

Abaixou-se, pegou o balde e seguiu até o rio, que corria pelo seu leito, seguindo indiferente seu destino até o mar.

Dobrou-se, encheu o balde até onde aguentaria carregá-lo e o colocou de lado.  Enfiou com prazer as mãos na água fria e as levou para o rosto.  Era o único prazer de que dispunha.  Sentir a água lhe acarinhar as faces cansadas.

De repente, o barulho de algo se aproximando assustou.  Era muito raro alguém passar por aquelas paragens.  Ela virou-se e, no estreito caminho, surgiu uma velha carroça, que sacolejava ao passar pelos buracos do chão de terra.  Em cima, um casal e duas crianças espremiam-se.

Jussara ficou parada. A boca se abriu sem dizer nada.

A pequena família estacou perto dela e o homem gritou:

 — Bom dia, senhora!

Ela abaixou a cabeça e uma voz desacostumada de se fazer ouvir respondeu:

— Dia.

— Com quem a senhora mora nesses confins? Perguntou o homem.

— Moro só,

— Sozinha? Espantou-se a mulher.

— É.

— Como pode.  Já está entrada em anos.

— Muito tempo, só.  Costumei.

O homem desceu da carroça e explicou que comprou um terreno logo adiante, com uma velha casa, que conhecera só por fotografia, e iria morar lá com a família e plantar milho para ganhar a vida. A mulher dele acrescentou que iriam ser vizinhos e poderiam ser amigos.

Jussara arregalou os olhos.  Um sorriso há muito esquecido acendeu o seu rosto acostumado à solidão. Ergueu o olhar para o céu e agradeceu a Deus por esse presente inesperado. E da mudez de sua alma surgiu um muito obrigado.

— Amigos, sim!

A mulher desceu da carroça e, trêmula pela emoção que a mulher curvada pelos anos lhe despertou, segurou as mãos ásperas por tantos anos de trabalho duro.

Jussara abaixou a cabeça. Não esperara mais nada da vida.  Superara tantos desafios.

Fechara-se em si há tanto tempo.  Apenas vivendo sem realmente viver.

Timidamente, levantou os olhos para a mulher que acabara de conhecer.

— Meu nome é Jussara. E o seu?

 

Amor - Clarice Lispector

 





Amor

Clarice Lispector

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles… Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível… O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo… E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite – tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada… Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado… O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha… Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles… Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água – havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d’água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

Extraído no livro Laços de Família, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998

 

 

 

quarta-feira, 28 de maio de 2025

IDEIAS DE CANÁRIO! - Dinah Ribeiro de Amorim

 



IDEIAS DE CANÁRIO!

COMENTÁRIO SOBRE O CONTO DE MACHADO DE ASSIS!

Dinah Ribeiro de Amorim (25/05/2025)

 

Interessante esse conto de Machado de Assis, como tudo que o grande escritor escreveu! O maior escritor brasileiro, na minha opinião.

Ele estabelece um diálogo curioso entre o homem Macedo, um estudioso da vida e dos animais e o canário alegre, cantante e feliz. Mesmo estando preso na gaiola,

Dá voz à ave que responde às perguntas do Macedo, espantado ao vê-lo feliz no meio de uma pequena loja de objetos feios e antigos, um brechó nos dias de hoje. O canário se destaca no meio de tanta bagunça, mas responde que o mundo, para ele, era, somente uma gaiola, numa loja de antiguidades. Não tinha ambições.

Quando Macedo, compadecido, o compra, leva-o para sua casa, estudando todas as reações da ave, faz daquele canário, seu único objeto de estudo. Novamente interrogado, o canário muda sua compreensão do mundo, que agora era uma linda gaiola, numa varanda bonita de uma casa, em meio a rica paisagem.

Existe aí vários questionamentos sobre o propósito do autor: cada um interpreta o mundo de acordo com o que conhece, com o que aprende, numa interpretação feliz! Satisfação com o que é! Como vive! O que lhe coube como destino!

Pode também ter criado no canário, uma certa ambição, Macedo deve ter lhe aumentado o desejo de vivenciar coisas melhores. Despertou-o a uma nova concepção do que é o mundo.

Após a doença de Macedo, que dura alguns dias, o criado, que trata do canário, o deixa escapar e ninguém mais o encontra.

Talvez o canário feliz com o seu presente atual, a paisagem que o cerca, sente, de repente, a sede da liberdade, a descoberta de um outro mundo, lá fora, em meio à natureza, livre como os outros pássaros, com domínio próprio sobre a vida.

Ao encontrar Macedo, mais tarde, afirma-lhe que o mundo, agora, para ele, é a liberdade, voar de folha a folha, em meio ao infinito azul do céu.

Podemos afirmar que talvez o autor esteja celebrando a liberdade, através da fuga de um canário de sua gaiola; a descoberta da maior felicidade em dominar e ter controle do próprio mundo ou, também, da afirmação do que é o mundo através do conhecimento de outros valores mais importantes.

                                            Fim!

BALEIA, O CÃO FIEL - Adelaide Dittmers

 



BALEIA, O CÃO FIEL

Adelaide Dittmers

 

Os olhos tristes de Baleia se fixaram na pobre família, que o criara desde pequenino.  O

esforço em abanar o rabo para demonstrar a gratidão, que sentia, fez tremer seu corpo fraco e doente.  Sei que vou morrer, tentava dizer na sua linguagem de cão.

Os dois meninos abaixaram-se para acarinhá-lo, passando as mãozinhas magras e encardidas pelas feridas do corpo de Baleia.  Ele encolheu-se.  Não queria transmitir-lhes a sarna, que devorava sua pele.

Um latido rouco, quase inaudível, quis falar-lhes que seu desejo era que se alimentassem dele para matar a fome, que os consumia. Esse era seu último desejo, a expressão de sua gratidão.

Mirou-os pela vez última e estremeceu pelos estertores que a morte trás.  E se foi.  O choro dos meninos ecoou por aquela região seca e sem vida.

 




Confissão de um Cachorro - Hirtis Lazarin

 


Confissão de um Cachorro

Hirtis Lazarin

 

Eu nasci na rua e na rua me criei.  Livre e sem nome, caminhava por todos os cantos.  Assustado e com medo porque tudo era novo pra mim.

 

Descobri que há gente boa e gente ruim. Alguns entendem minha fome e me oferecem alguma coisa pra comer. Outros fazem cara de nojo, batem os pés e me expulsam com gritos. Escuto muito “Sai daqui, vira-lata”.  Não sei o que é “vira-lata”. Só sei que não é coisa boa. 

 

As crianças me fazem carinho e alisam meus pelos, longe dos olhos dos pais. Será que elas entendem que não tenho ninguém e que gosto do carinho e da companhia delas?

 

Não conheci meu pai, fiquei pouco tempo com minha mãe e meus irmãos, eu os perdi por aí.

  

Há muitos cães vivendo na rua. Afasto-me dos grandes. Tenho medo deles. Olhei-me num pedaço de espelho jogado no lixo e vi a minha imagem refletida. Sou pequeno, magro e pelos bem curtos. Não gostei do que vi e até senti pena de mim. 

 

Um cachorro sem raça, sem nome e de porte franzino. Acho que eu me daria o nome de “Fragilidade”. Sei que é uma palavra bonita e comprida bem diferente de mim, mas sou  livre e escolho o nome que eu quiser. 

 

Ontem abriguei-me num ponto de ônibus, um cantinho acolhedor. Alguém me chutou. Não sei o porquê. Acordei sangrando e fugi.

 

Hoje está chovendo, estou molhado e com muito frio. Procuro um abrigo.

 

Não sei explicar bem o que é ser de raça, mas se for lutar pela sobrevivência, sou de raça desde que eu nasci.



BALEIA - DINAH RIBEIRO DE AMORIM

 



BALEIA! 

(fluxo de pensamento)

Dinah Ribeiro de Amorim

 

— Fora, Baleia! Não tem comida para você.

 

Saio andando de cabeça baixa, orelhas murchas, caminho pelo chão batido e seco, até me cansar...

Sinto, de repente, a terra macia, uma água se aproxima, permaneço quieto e parado. O local se enche de água. Fico boiando nessa água limpa e cheirosa, sinto-me bem, alivia o meu cansaço.

Meu corpo se transforma, ao invés de patas, tenho nadadeiras que parecem asas. Mergulho e nado nessa água gostosa, que alivia o calor de fora e me distrai da fome. Olho ao redor, vejo que me olham, curiosos, alguns peixinhos...

Meu nome é Baleia, mas nunca pensei que era um peixe. E peixe grande!

Abro a boca e vários, pequenos, me saciam a fome. Os maiores, peixes grandes como eu, fogem, assustados.

Que delícia de vida estou levando. Sem sede, sem fome, sem excesso de calor, longe daquela terra seca e miserável que tinha.

De repente, um latido forte, caio numa cachoeira. Esforço-me para sair dela. Abro os olhos. Percebo que dormi.

Volto ao chão de terra, ao calor do tempo, à fome que sentia.

Não sou peixe, mas o cão Baleia, moro com retirantes desse sertão maldito; expulsam-me quando a família consegue um naco de carne; mal dá para todos.

Triste e solitário continuo a caminhar...Talvez ache algum bichinho apetitoso nesse deserto sofredor...

segunda-feira, 19 de maio de 2025

PAZ - Pedro Henrique

 


PAZ 

PEDRO HENRIQUE

Houve um tempo em que costumava dizer que a vida era um aglomerado de bosta, coisa esta que sai de nós, dos outros, e somos obrigados a passá-la no corpo e sentir seu odor sem nada poder fazer.

Algo como uma espécie de sentença por não sei o quê. Quiçá por ter vindo ao mundo. Parece que muitos, como eu, já nascem agraciados com a dor. E se tem uma coisa que esta história tem, é dor.

Sobretudo quando decidimos pular nas águas turvas, perturbadoras e agressivas que a constitui. Não diria que há algo oceânico que pode assombrá-los. Ouso afirmar apenas que é uma história comum. Melhor que umas, pior que outras, mas jamais, sob hipótese alguma, à margem do real.

Curiosos? Então lá vai.

Seu nome era Vicência Santos da Silva. Mulher trabalhadora, lavadeira compromissada. Calma, que só. Sua mãe, Dalva, sempre dizia para ela ser mais aplumada, porque a vida não é boa com gente tranquila demais.

Mas Vicência afirmava que não sabia ser de outro jeito. Portanto, sua mãe, sempre que batia em seus irmãos e nela, em virtude de algo que fizessem, dava preferência para a vara arrancar o pouco de carne que a filha tinha nas costas.

Argumentava que batia mais nela para ver se virava mulher forte e não uma menininha que vivia sorrindo para tudo e todos.

Entretanto, foi justamente seu sorriso que encantou Valmir, o dono do botequim que seu pai tinha prazer em frequentar. O rapaz ficou enfeitiçado por Vicência. A procurava em todos os cantos possíveis: casa, bar, igreja, rua, entre outras localidades.

Além disso, contratou os serviços de dona Dalva e, consequentemente, os da amada também, haja vista que esta trabalhava com a mãe.

Com o tempo, Vicência ia animada para a casa do rapaz, ficava a noite inteira anterior à faxina imaginando-se nos braços de Valmir e não tinha forças para acorrentar a ansiedade que corria faminta por suas vísceras.

Em uma madrugada de lua cheia, o destino resolveu selar a aliança entre ambos de uma vez por todas, utilizando-se de um beijo daqueles, com direito a língua e tudo.

E a princípio era assim, beijo pra cá, beijo pra lá. Sem contar as rosas, bombons e noites de jantares no bar. Pena que depois do casamento os beijos se foram, as rosas murcharam, os bombons acabaram e as noites de jantares eram-lhes concedidas somente nos sonhos.

Com isso, o até então príncipe encantado se revelou o pior de todos os canalhas. Pena que Vicência só soube disso quando engravidou.

Tapa? Isso é eufemismo. Falo de soco no estômago, sopa quente na cara, chutes e chicotadas. Falo de gritos, de puxões de cabelo, de rosto se encontrando com parede, mesa, chão. E calada, sem se manifestar. Tinha de esconder sua dor no anonimato, sucumbir a ela e sem saber como: viver.

Quando o homem chegava bêbado em casa e dentro de si tinha o desejo. Podia estar no quinto sono que tinha de acordar para o satisfazer. Uma vez, quando negou, ele a pegou pelos cabelos, tirou suas roupas, amarrou-a com o fio de ferro de passar e tomou o que desejava.

Os gritos de um pedido de socorro que ecoavam, não da boca, mas da alma, faziam-se escutar por aqueles que moravam perto. Entretanto, quem era o corajoso que bateria de frente com aquele que tem a fama de ter colocado a sete palmos do chão uma vida e que se gabava por tal feito?

Houve um tempo em que Vicência aguardava o marido, seja a hora que chegasse, e o deixava tirar dela o que nem tinha. Sua dignidade foi pisada, seu amor-próprio dilacerado, o amor que tinha pela vida? Ah, esse se dava às interrogações do destino.
           Lembrava-se da mãe. Contudo, sentia vergonha demais em voltar. "Para quê?" Pensava. "Para dar razão à velha?" "Para chegar em casa e ouvir: Eu sabia que esse encosto nem o próprio marido iria querer.”

Preferia ficar e aguentar calada, como desde o dia em que nascera: o peso da mão da vida. Chegara, querendo ou não, até aqui, embora, em certos momentos, pegasse se lembrando de como tudo era diferente.
            Era tão bonita, tinha tantos sonhos, costurava tão bem. Não tinha dúvidas de que poderia ter aberto uma lojinha de roupas cujo nome seria "Vicência Modas". Ah… lá faria seus designs, receberia, com o maior prazer, suas clientes. Diria que aquela peça ficou linda mesmo sabendo que não estava, ofereceria champanhe, aperitivos, e todos os seus serviços, mas o que tinha de fato em suas mãos era medo. Medo da bebê que, por um milagre, não havia morrido, apesar da gravidez de risco.

Desde que teve ciência de que era menina, engolia no peito a forte martelada de saber que sua prole seria a próxima. Via na cara de Valmir o desejo pela pele da filha.

Todavia, a bebê crescia e aflorava dentro de seu ventre, indo na contramão de todas as suas tentativas abortivas.

Dessa forma, para selar a tortura de vez, quando estava limpando o chão da cozinha em uma tarde de terça-feira, o medo apertou seu peito de tal maneira que não conseguia respirar. Tinha chegado a hora.

Não tinha telefone em casa porque o marido era louco e muito ciumento, além disso, temia que ela contasse para alguém os maus-tratos que sofria. Portanto, Vicência teve de juntar forças onde não tinha e foi andando para um terreiro que ficava perto de seu casebre. Diziam pelas redondezas que a mãe de santo, mãe Zelina, tinha sido uma parteira de mão cheia. Sendo assim, Vicência decidiu ir até ela.

Quando chegou, foi atendida e acolhida, como filha que nunca se sentiu. A senhora olhava para ela com espanto, incompreendendo toda a conjuntura, afinal, a garota só gritava. No entanto, logo soube.
           
Com isso, pegou-a pelo braço e a guiou até seu quarto, mas as pernas de Vicência perderam sua força e o chão se revelou como o único local apto, naquele momento, para que se realizasse o parto.

Mãe Zelina não se intimidou, pegou panos e toalhas limpas, colocou um canecão com água para ferver e relembrou sua antiga vida. Não se passou muito tempo até a moça colocar aquela criança para fora com uma facilidade que impactou a parteira.

Nesse sentido, quando mãe Zelina foi entregar a filha nos braços de Vicência, esta implorou que não o fizesse. Pediu inquieta que mandasse a menina para o mais longe dali. Suas lágrimas e seu clamor embargado de desespero já foram o suficiente para que mãe Zelina — graduada na universidade da vida — entendesse o porquê.

Depois de ganhar fôlego, Vicência saiu dali e foi para um córrego que localizava-se no alto do maior morro da região. Sabia que tinha chegado a hora. Que não havia saída. Se não o fizesse, ele o faria.

Já estava cansada. Não compreendia como conseguiu tamanha longevidade naquele casamento. Portanto, olhou para as águas do profundo córrego e permitiu que elas lhe dessem paz.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

A IDENTIDADE DO MORIBUNDO - Microconto - Pedro Henrique Pereira

 



Pedro navegando por novas experiências, desta vez o MICROCONTO.


A IDENTIDADE DO MORIBUNDO


Havia um homem morto no meu quintal. A pancada esplendorosa de tal fenômeno defrontou-me com farpas viscerais. Essas, cuja alma grita com a introdução.
A vida, do nada, decidiu girar e girar e cada poro revelar, mostrando o corpo nu que vem ao mundo na fragilidade de um bebê.
O vento, o odor, eu. Tantos elementos que tornaram a recepção do olhar do defunto um copo de sofreguidão a se tomar.
Há nele o arrepio dos séculos e a rigidez dos corpos que obtiveram a santa segregação pelo fardo da hostilidade que reside no peito e na boca de cada homem.
Ao observá-lo, analiso também minha própria vida, que de nada pode consigo mesma.
Não tive a noiva ideal. Essa, preferiu meu primo.
Não conquistei minha vaga. Foi dada a um incompetente que nem um relatório tinha habilidade de produzir.
Não fui bom filho. Meus pais afirmavam que meu irmão era melhor. Em síntese, “falhei em tudo”.
É por esse motivo que nada me afasta do morto, pois ele não passa do rio cuja água cristalina reflete meu próprio eu.

 

A FORMIGUINHA MICHELE! - Dinah Ribeiro de Amorim

 

 


 

A FORMIGUINHA MICHELE!

Dinah Ribeiro de Amorim

 

Moro em apartamento com pequeno quintal. Último andar do prédio. Só eu e o céu também.

Costumo cultivar algumas plantas, já possuo até pequenas árvores. Todas em vasos, pois a terra que havia foi coberta com cimento.

Às vezes, alguns bichinhos aparecem, para minha tortura, detesto que entrem em casa, mesmo pequenos. Sou alérgica a qualquer tipo de picada ou mordida.

Logo cedo, corro ao quintal para brigar com passarinhos, que bicam minhas jabuticabas, em botão. Não as deixam amadurecer.

Entre uns bichinhos e outros, formigões, formigas, e aranhas pequenas. Varro tudo ou esmago com os pés. Nem sempre a água do esguicho resolve. Sinto verdadeira mania em atacá-los toda manhã.

Numa dessas, espantada, paro em cima de uma formiga que me atrai a atenção. Seguro-me na vassoura e a observo, curiosa. Tão pequenina, tenta levar uma folha nas costas, três vezes maior que ela. Ou até mais.

Fico alguns minutos observando-a e, como derruba a folha muitas vezes e volta a pegá-la, enterneceu-me, e tentei acompanhar o seu trabalho. Não tive coragem de matá-la. Achei que o problema dela não era eu, a minha casa, o meu corpo, mas sim algo mais importante.

Percorri, com os olhos, a sua caminhada e, lentamente, dirigiu-se a um buraco bem pequeno no muro, de onde foi ajudada por outras que enfiaram a folha para dentro.

Na manhã seguinte, tornei a vê-la e, sem coragem de empurrá-la, batizei-a de Michele. Tive o cuidado de não a varrer como aos outros bichinhos que encontrava.

Percebi logo que Michele era a encarregada da alimentação do formigueiro e, com dó, solidária ao seu trabalho, só faltava lhe dar bom dia. Como se me escutasse.

Agora, quando varria ou molhava o quintal, deixava sempre umas folhinhas espalhadas perto do formigueiro, esperando Michele aparecer e facilitar o seu trabalho.

Moro sozinha, converso às vezes com plantas e flores, mas com formigas, a primeira vez.

Um tipo de loucurinha legal. Se é que existe alguma.

O tempo passou, a estação mudou, chegou aquele verão forte com suas chuvas violentas. Enxurradas para todos os lados. Até algumas telhas do terraço de cima, digo quintal, caíram, e tive que trocá-las. Caia água na sala. Os relâmpagos, aqui de cima, acendiam tudo, seguidos de trovões extremamente barulhentos. A natureza bela e certa também tem seus dias negros e tristes.

Quando o tempo amainou, verifiquei alguns estragos no meu quintal. Vasos caídos, flores e raízes arrancadas, chão sujo com poças ainda cheias de água. Demoraram a secar.

Preocupada, procurei o buraquinho das formigas, no muro. Nem aparecia. Cheio d’água. E as formiguinhas, coitadas? Nenhuma. Afogadas, com certeza, no temporal excessivo.

Pensei em Michele, a formiguinha trabalhadeira, será que conseguiu se salvar? Talvez alguma folha caída da árvore a tenha levado embora. Servido de barco para navegar em novas águas e procurar outros caminhos. Será que as formiguinhas também têm céu? Possuem algum tipo de alma?

Saudades de Michele e de observar o seu trabalho!

O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA - Pedro Henrique

  O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA Pedro Henrique        Curioso é pensar na vida e em toda sua construção e forma: medo, terror, desejo, afet...