A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

AINDA HÁ TEMPO PARA AMAR - CONTO COLETIVO 2011

FIGURAS DE LINGUAGEM

DISPOSITIVOS LITERÁRIOS

FERRAMENTAS LITERÁRIAS

BIBLIOTECA - LIVROS EM PDF

terça-feira, 11 de abril de 2023

UM DIA DIFERENTE - Leon Vagliengo






UM DIA DIFERENTE

As aparências enganam, nem tudo é o que parece.

                                                                                                                               Leon Alfonsin Vagliengo

 

A porta da rua se abriu de repente e foi batida com grande estrondo. Luciana irrompeu a sala aos prantos, correu diretamente para a escada do sobrado, galgou-a em desespero, seus passos ressoando alto na madeira dos degraus, e bateu com violência a porta de seu quarto.  Os dois gatos da casa dispararam desesperadamente para a cozinha e pararam à porta espiando para a sala, apavorados, tentando identificar a repentina ameaça.

Clarissa não tinha ido trabalhar naquela manhã e aguardava na sala a hora de sair para uma consulta médica. Levou um grande susto com aquela invasão inesperada e, sem entender o que estava acontecendo com sua filha, ficou paralisada por um ou dois segundos, aturdida, mas logo reagiu e subiu também apressadamente, encontrando a porta trancada.

— Luciana! Abra a porta! O que houve?

Àquela hora, Luciana deveria estar ainda na primeira aula. Seu pai a levou para o Colégio e dali iria para o aeroporto, em viagem de negócios.

Luciana não respondeu, não abriu, não a atendeu. Clarissa podia ouvi-la chorando, um choro convulsivo, sem cessar. Insistiu muitas vezes, mas não conseguiu resposta. Enquanto tentava convencer a menina a abrir a porta, em sua cabeça as ideias mais trágicas se sucediam: Teriam sofrido um acidente no caminho? Onde está o Rodolfo? Por que não veio com ela? Ou será que foi abusada no Colégio? Meu Deus! Ela tem apenas treze anos! O que será que aconteceu? Justamente hoje que eu não pude ir com eles!

Ligou para o Colégio, disseram apenas que a menina não tinha entrado em aula.

O desespero já tomava conta de Clarissa. Havia mais de uma hora que estava naquela situação e a menina não respondia. Tentou ligar para o marido, duas, três, várias vezes, não conseguiu completar a ligação, ele devia estar no avião. Tentou abrir a porta com a chave de seu quarto, não serviu.

— Pelo amor de Deus, Luciana! Abra a porta!

Finalmente, Luciana a atendeu. Abriu a porta, olhou para a mãe com o olhar salgado pelas lágrimas, e a abraçou; um abraço apertado, sem parar de chorar e soluçar. Não dizia nada, apenas chorava.

Vendo o estado emocional da filha, Clarissa a aconchegou melhor no abraço e resignou-se a esperar. Ficaram assim por muito tempo, até que Luciana se acalmou um pouco, olhou para ela e falou:

— Eu te amo, mamãe. Vou ficar sempre com você. Nunca vou te deixar sozinha.

— Por que você está dizendo isso, Luciana?

Então, ainda relutante, entre soluços e entremeando longas pausas, ela começou a contar. Disse que logo ao entrar no Colégio sentiu frio e viu que tinha esquecido o casaco no banco do carro; voltou correndo para buscá-lo, deu tempo; seu pai ainda estava conversando com a mãe de sua coleguinha, aquela mulher loira, muito bonita, cujo marido havia morrido havia pouco tempo, num acidente; “aquela mesma que outro dia o papai elogiou e você ficou com ciúmes”, completou, hesitante. Interrompeu-se por um instante sem saber como prosseguir, e afinal, novamente chorando e segurando os soluços, contou de uma vez:

— Ele nem me viu abrir a porta do carro e estava dizendo para ela que hoje tinha se separado de você e não voltaria para casa. Eu não quis ouvir mais nada; peguei o casaco e corri para o Colégio, mas não aguentei e vim para casa.

Ao ouvir o que sua filha contara, Clarissa estremeceu. Terríveis recordações assomaram impiedosas à mente. Queria esquecê-las, mantê-las no limbo de sua memória, mas aquela situação as trouxe revividas com todo vigor, causando a mesma dor que sempre provocavam quando vinham à tona. O impacto foi muito forte, tão forte que Clarissa perdeu a consciência. Antes, ainda pronunciou o nome de seu marido;

— Rodolfo...

<<< O >>>

 

Anthony fazia jus a seu nome esnobe. Era um homem bonito, elegante, sua postura aristocrática sem afetação provocava suspiros românticos em muitas mulheres, aguçando-lhe a vaidade; ambicioso, deslumbrava-se facilmente com tudo que exalasse luxo e riquezas. Por conta disso, embora não fosse rico, era incansável em frequentar amigos da alta roda.

No ambiente do lar, porém, era diferente: brincalhão e irrequieto, marido perfeito e pai carinhoso, embora não resistisse aos muitos convites dos amigos para festas e jogos no clube. A esposa Dulce já não o acompanhava mais como antes, porque tinha mais juízo e compreendia como era importante estar sempre presente para a filha Clarissa naquela sua fase tão bonita e melindrosa de pré-adolescente.

Nessas oportunidades Anthony ficava desassossegado, não hesitava em inventar desculpas para sair, mesmo sem a esposa. Muitas vezes eram argumentos evidentemente falsos, mas Dulce não dizia nada, fingia não perceber e o perdoava; não queria um clima de hostilidades em sua própria casa, e até achava graça ao considerar que aquele cabeça-de-vento cumpria direitinho o seu papel de pai e marido; admitia, então, que era justo que ele saísse para se divertir, mas ela já havia optado por assumir as suas responsabilidades de mãe e dona de casa de classe média.

Sabia, porém, que não podia confiar na palavra de seu marido.

Naquele carnaval Anthony foi mais ousado, anunciando, muito empolgado, que fora convidado pelos amigos para o baile do clube.  Iria a caráter e, após examinar inúmeras alternativas, encantou-se com a fantasia de Capitão Gancho, que ficou perfeita para ele. Dulce conhecia muito bem o marido que tinha e sabia que não conseguiria impedi-lo; entre contrariada e divertida, ainda observou, sorrindo:

— Só falta o navio, está perfeito. É você mesmo, sem tirar nem pôr! Pode ir, divirta-se com seus amigos, mas... tenha juízo! — Acrescentou, sem acreditar nisso — eu fico com a Clarissa. Ela convidou umas coleguinhas, vão fazer um bailinho no quintal de casa. Não venha muito tarde.

No salão do clube, pessoas muito animadas dançavam ao som alto de marchinhas ritmadas, algumas maliciosas, casais em atitudes atrevidas, muitas mulheres bonitas em trajes provocantes, erotismo no ar.

Uma loira bonita e muito sensual chamou a atenção de Anthony. Ele logo a reconheceu: era Laura, já se conheciam socialmente de outros eventos do clube. Anthony sabia que o marido dela havia falecido quatro anos antes num acidente automobilístico, deixando-a muito rica e carente, ainda bastante jovem aos quarenta anos de idade. A atração foi imediata e muito forte: esqueceu os amigos, convidou-a para dançar.

Ao longo da noite dançaram, beberam, divertiram-se bastante. Em certo momento, no calor da folia, Laura confessou para Anthony que já era apaixonada por ele havia muito tempo, desde quando o via em outras atividades do clube. Ouvindo essa revelação daquela mulher tão provocante e inebriado pelo ambiente contagiante de tentações em que estavam, ele não resistiu aos seus encantos e às benesses da vida de fartura e riquezas que ela lhe oferecia.  Era tudo o que ele sempre quis, sua ambição falou alto.

Anthony não voltou para casa naquela noite. Quando apareceu, já na tarde do dia seguinte, foi para informar que resolvera mudar de vida. Pegou apenas os pertences pessoais e não teve escrúpulos em abandonar Dulce e Clarissa.

Inconformada com o fim de seu casamento, Dulce compreendeu tarde demais que ele agiu como agiria o personagem da fantasia que escolheu, pilhando o tesouro que encontrou. Aquela caracterização revelava mesmo quem ele era realmente.

Foi assim que uma viúva loira e rica desfez o lar de Dulce e levou embora o seu marido, que a deixou ao desamparo, causando para Clarissa consequências emocionais devidas a uma juventude triste, carente do amor paterno.

<<< O >>>

 

         Luciana não sabia o que fazer, nunca tinha visto alguém desmaiado.

Em sua inexperiência pensou as piores hipóteses, mas viu que a mãe respirava. Pegou o telefone e ligou para a avó, pedindo socorro.

Dona Dulce já imaginava o que tinha acontecido. Sempre que se lembrava que fora abandonada pelo pai, Clarissa perdia os sentidos por alguns momentos. Um médico lhe dissera que se tratava de cataplexia, uma perda de sentidos motivada por alguma forte emoção. O casamento feliz que sua filha tinha com Rodolfo parecia ter resolvido esse problema, havia muitos anos que ela não desmaiava. O que teria desencadeado novamente aquela reação? Pensou, preocupada.

Morava perto, chegou rapidamente à casa da filha e, como esperava, Clarissa já havia recuperado a consciência.  Por um instante se enterneceu ao perceber os olhos da neta Luciana ainda vermelhos como os de um coelhinho, e achou que ela tinha chorado apenas por causa do susto.

Ao ver a mãe, Clarissa sentiu-se amparada; apoiou a cabeça em seu peito e chorou sem nada dizer, provocando novo choro também em Luciana. Dona Dulce lhe acariciou os cabelos e não estranhou a fragilidade da filha, achava que sabia o motivo. Só não atinava em como ressurgira. Quase acertou, mas o personagem era outro.

Logo providenciou duas almofadas e disse a Clarissa que se deitasse de costas com as pernas elevadas, apoiadas nas almofadas. Isso a ajudaria a recobrar a boa circulação cerebral, consolidando sua recuperação. Providenciou também um chá de camomila quentinho, para acalmá-la.

Um pouco depois Clarissa já se sentia melhor, mas ainda um pouco desorientada. Fez um sinal para Luciana com o dedo indicador sobre a boca, para que não contasse nada a sua avó. A manhã já estava no fim, tinha perdido a consulta no oculista e estava com muita dor de cabeça. Telefonou para avisar ao chefe que não estava bem, não iria ao trabalho nem à tarde.

Dona Dulce cuidou para que as coisas voltassem à rotina. Fez o almoço, cuidou de algumas coisas da casa. Clarissa tomou um analgésico e dormiu até a hora da janta. Luciana foi para seu quarto. Tentou estudar um pouco, teria uma prova no dia seguinte, mas não conseguia se concentrar.

O restante do dia transcorreu monótono para elas.

<<< O >>>

 

Eram mais de dez horas da noite quando ouviram bater a porta de um carro e em seguida aquela música italiana antiga, naquele assobio inconfundível.  Clarissa e Luciana o reconheceram de imediato e se entreolharam, surpresas. Revelava a presença de alguém sempre muito feliz e despreocupado, que conheciam muito bem. Mas não esperavam que ele aparecesse agora, muito menos assobiando.

Rodolfo abriu a porta e entrou na sala, abraçado a dois grandes pacotes. Foi direto para Clarissa com um sorriso que lhe tomava toda a face, e a beijou nos lábios antes que ela pudesse evitar. Entregou-lhe um dos pacotes e o outro para Luciana, que também beijou carinhosamente. Cumprimentou a sogra e lhe agradeceu por estar ali, fazendo companhia a elas.

— Deu tudo certo, o comprador gostou da proposta, negócio fechado! — Exclamou – e ainda consegui uma passagem de volta para hoje mesmo. Comprei essas lembrancinhas para vocês numa loja do aeroporto.

Incrédulas, Clarissa e Luciana olhavam para ele sem entender. Dona Dulce, que continuava candidamente sem saber de nada, ficou mais tranquila com a presença do genro.

— Agora que você chegou, vou para casa — despediu-se e saiu.

Clarissa fez discretamente o mesmo sinal de “psiu” para Luciana; e depois de pensar um pouco, resolveu comer pelas bordas para não queimar a língua.

— Você sentiu minha falta hoje de manhã?

— Claro, meu bem — mas você agora me fez lembrar que eu dei um fora terrível. Sabe a Dona Sonia, a mãe da coleguinha da Luciana? Ela perguntou por você e eu disse para ela – imagine só — que esta manhã nós tínhamos nos separado e eu não voltaria para casa. Ela fez uma cara de espanto que só vendo. Só então percebi o que eu tinha dito. Fiquei sem graça, pedi desculpas e esclareci que nos separamos porque você tinha uma consulta médica e eu estava indo para o aeroporto para uma viagem de negócios, só voltaria amanhã.

Clarissa olhou para Luciana, Luciana olhou para Clarissa, ambas de olhos arregalados. De repente a ficha caiu ao mesmo tempo para as duas e a gargalhada delas explodiu uníssona, espalhafatosa, estrondosa. Mais uma vez os gatos dispararam, assustados, para a cozinha.

Rodolfo olhava para elas, intrigado, mas teve que esperar até que recuperassem o fôlego para saber o que estava acontecendo.

Antes assim.

<<< O >>>


segunda-feira, 10 de abril de 2023

Marcas que não se apagam - Adelaide Dittmers

 


Marcas que não se apagam

Adelaide Dittmers

 

Do pequeno barraco pendurado no morro despido de verde, gritos estridentes cortavam a noite escura.

Um menino de uns dez anos tampava ou ouvidos, acocorado atrás de uma pequena mesa feita de ripas de madeira sem cor.  Os olhos fechados e mudos de terror. O choro sacudia seu corpo franzino.

Na cama tosca encostada a uma parede precária, a mulher debatia-se tentando desvencilhar-se das pancadas e pontapés do companheiro bêbado.

De repente, a criança levantou-se e se jogou contra o pai, num assomo de desespero, socando-o com seus bracinhos frágeis. O homem o empurrou com violência e ele se estatelou no chão. A mulher soltou um berro e tentou acudir o filho, que chorava descontrolado, mas foi impedida pelo homem enlouquecido, que pegara uma faca e a ameaçava, encostando a arma  no peito da pobre mulher.

Nesse momento, a porta foi empurrada com força e dois homens entraram e seguraram o desvairado, tirando-lhe a faca das mãos.

— Você está louco, Severino!  Ia matar sua mulher!  Olha esse menino!

— Saiam daqui! Severino gritou com a voz enrolada pela bebida.

Os homens o jogaram em um banco.  De sua boca saia uma baba malcheirosa.  Os olhos vidrados não conseguiam se fixar nos invasores.

Josilene, que caíra sentada na cama, levantou-se devagar, atordoada,  tentando manter-se de pé. Os lábios sangravam. Vergões espalhavam-se pelo seu corpo. O olhar doído procurava o filho, sentado em um canto.  Com passos lentos e indecisos chegou até ele.  Os dois se abraçaram.  Um dos vizinhos disse:

— Vem Josilene.  Hoje você e Josué dormem em casa.

Ela acedeu com um movimento da cabeça e seguiu-o como uma sonâmbula, puxando o menino pela mão.

O pequeno lançou um olhar de medo e de raiva ao pai, que agora soluçava a bebedeira.

Deitado em um colchão velho, o pequeno custou a adormecer e foi sacudido por pesadelos a noite inteira. Uma manhã cinzenta acordou-o. Vozes alteradas chegaram-lhe aos ouvidos.  Reconheceu a voz do pai, que exigia a volta da mulher.  Apavorado, cobriu a cabeça com  o lençol velho e desbotado. A mãe dizia que nunca mais voltaria para casa.  Subitamente, a porta do barraco foi fechada com estrondo pela vizinha e amiga de Josilene.   Ele sentou-se e ouviu a mãe dizer, que iria embora dali, que estava cansada de apanhar e com medo de ser morta pelo companheiro.

 

Mais tarde, aproveitando a ausência do truculento Severino, mãe e filho retiraram do barraco os poucos pertences e deixaram o lugar.

Atravessaram a grande cidade até chegar a um subúrbio longínquo.  Lá vivia Joana, uma grande amiga, que viera com Josilene do Nordeste, muitos anos atrás.  Muitas vezes ela pedira à amiga para deixar o marido violento e vir morar com ela, que morava sozinha em uma casa simples, que conseguira com muito trabalho.  

Quando Joana abriu a porta, assustou-se com o estado da amiga.  O rosto inchado e os braços com grandes manchas roxas.

— De novo, Lene! Aquele miserável bateu em você!

— Foi a última vez, Jo. Vim morar com você, se você ainda quiser! Respondeu com a voz embargada, acrescentando: Ele quase me furou com uma faca! 

E o choro explodiu de dentro dela.  Joana a abraçou e tentava consolá-la.  Eram como irmãs e lá estaria segura, pois sempre escondeu de Severino, onde a amiga morava.

Agarrado à mãe, Josué baixou os olhos.  Estava confuso e amedrontado. 

Joana olhou para ele e percebeu a angústia do menino.  Colocando a mão nas costas dele, levou-o delicadamente para dentro.

— Graças a Deus que você largou aquele homem! Venham, sentem aí para descansar. Vou fazer um café.  Depois arrumamos suas coisas.

Ainda com lágrimas, que lhe salgavam a língua, Josilene derramou o sofrimento que lhe feria a alma. O menino ouvia com um olhar perdido, digerindo com dificuldade o desabafo da mãe.

A preocupação com o trabalho aflorou na conversa.  Tinha que abandonar as casas em que faxinava.  Joana então lhe prometeu que iria lhe ajudar a arrumar um emprego mais perto.  Não muito longe dali havia um condomínio de gente de posses, e não faltaria lugar para a amiga trabalhar.

Com o passar do tempo, a vida foi se acomodando.  O emprego foi conseguido.  Josué entrou em uma escola próxima.  Uma tranquilidade há muito não sentida encheu o coração de Josilene.  As marcas físicas e morais foram desaparecendo e no lugar da fragilidade e do medo, surgiu uma mulher forte e decidida.

O menino, no entanto, não conseguiu superar o medo.  Muitas vezes acordava de madrugada, banhado de suor após pesadelos, em que o pai os surrava e os ameaçava. A mãe o acalmava com carinho e conversava com ele.

Na escola, era muito quieto e tímido e se afastava dos coleguinhas. Em casa era obediente e cooperativo, mas muito fechado em si.

A mãe sofria com a dor do filho.  Então, certo fim de tarde, após voltar do trabalho, ela o chamou para conversar.  Sentaram-se em um banco no pequeno quintal da casa, onde uma velha jabuticabeira estava vestida das pequenas e deliciosas frutinhas.  Lançou um olhar para a árvore e depois para o menino e disse com voz calma e carinhosa:

— Josué, você não pode continuar assim.  Fechando toda essa tristeza dentro de você. Você cresceu com medo, é verdade, só viu coisas ruins, mas passou, ficou tudo lá atrás.  Agora estamos seguros.

Os olhos do menino pousaram na mãe e as palavras jorraram com a intensidade de uma enxurrada lamacenta.

 — Tenho raiva e vergonha de ter nascido daquele pai.  Surras e mais surras em você e em mim. E se ele nos encontrar... tenho muito medo...

— Não, filho, ele não sabe onde estamos.  Fique tranquilo.  Jogue fora a raiva, a vergonha, o medo.  Você não tem culpa do que passamos.

E continuou com uma voz mansa e calorosa.

— Tá vendo essa jabuticabeira carregada.  Não é bonita e forte? Ela carrega tudo. Parece feliz de nos dar suas frutas.  Um dia ela foi pequena, vergou com ventos.  Foi cortada para crescer mais forte. E está aí, alta, dando para nós sombra e as tão gostosas jabuticabas e nada recebe de nós em troca. Nós também passamos por muita coisa triste, mas temos que seguir e aprender a crescer como ela.

— Eu não sou árvore, mãe.  Sou gente!

— A árvore não é gente, mas pode nos ensinar muita coisa. Você vai crescer como ela. Na escola vai aprender um monte de coisas, que eu nunca aprendi.  Quero que tenha uma vida melhor que a minha.  Só tem que abrir seu coração, seguir em frente e descobrir o caminho.

Joana, que tinha chegado devagarzinho, ficou admirada com a sabedoria da amiga. O sofrimento é nosso professor, pensou emocionada.

— O menino abraçou a mãe e desabou dele um choro que parecia lavar a tristeza e o medo dentro dele.

Daquele dia em diante, tentou ser outro menino, mais aberto.  Colocava suas emoções para fora e quando a memória o levava para o passado dolorido.  Sacudia a cabeça e pensava nas árvores, que também passam por desafios para crescer.

Tornou-se um adulto responsável e trabalhador.  Sempre se desviava de disputas e brigas.  Vozes alteradas ainda o atingiam.  Fugia delas. 

Fez um curso técnico de mecânica de automóveis e se tornou um ótimo profissional, disputado por muitas oficinas. Às vezes, as ferramentas caiam de suas mãos ao lembrar o passado, um arrepio lhe percorria o corpo, mas logo voltava ao presente e agradecia intimamente às duas mães que o guiaram nos momentos difíceis.

Uma noite em que estava no centro da cidade, voltando para casa, cruzou com um homem maltrapilho e completamente embriagado.  Seus músculos se retesaram.  Com os olhos assustados fixou o olhar no homem e para seu espanto, atrás da barba comprida e suja, reconheceu seu pai, mais velho, mais enrugado, mas era ele. O coração disparou. A palidez cobriu seu rosto.  O homem estendeu-lhe a mão encardida e pediu-lhe dinheiro.  Ele recuou, o ódio misturou-se a um inesperado sentimento de piedade, diante daquele trapo humano.

Ele negou e se afastou mais, mas o pai o segurou insistindo na esmola. Dentro dele surgiu a imagem da faca e dos gritos da mãe.  Fora de si, ele o empurrou com força para se desvencilhar.  Cambaleando e soltando palavrões, Severino desceu da calçada.  Ouviu-se uma brecada forte, mas o carro não conseguiu parar e o atirou longe. O motorista desceu desesperado para socorrê-lo.  Várias pessoas pararam para ajudar.  Estava morto. 

Josué assistiu petrificado a tudo.  Não conseguia sair do lugar.  De repente, virou as costas e seguiu seu caminho sem olhar para trás.  Dos olhos caiu uma lágrima confusa.

quarta-feira, 29 de março de 2023

O ARROZ DE PALMA - FRANCISCO AZEVEDO

 

O ARROZ DE PALMA - FRANCISCO AZEVEDO





O ARROZ DE PALMA – Francisco Azevedo

Família é prato difícil de preparar.

São muitos ingredientes.

Reunir todos é um problema…

Não é para qualquer um.

Os truques, os segredos, o imprevisível.

Às vezes, dá até vontade de desistir…

Família é prato que emociona.

E a gente chora mesmo.

De alegria, de raiva ou de tristeza.

O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita.

Bobagem!

Tudo ilusão!

Família é afinidade, é à Moda da Casa.

E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito.

Há famílias doces.

Outras, meio amargas.

Outras apimentadíssimas.

Há também as que não têm gosto de nada, seria assim um tipo de Família Dieta, que você suporta só para manter a linha.

Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo.

Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.

Enfim, receita de família não se copia, se inventa.

A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia.

Muita coisa se perde na lembrança.

Aproveite ao máximo.

Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete!


E, saiba o que autor nos diz sobre esta obra e o tema que ele aborda: 

http://franciscoazevedo.com/o-arroz-de-palma


O livro O ARROZ DE PALMA nos leva a pensar na família, na sua constituição, na sua formação, nos valores, nas pessoas, na união, nos amores, na saudade, nas lembranças, nas importâncias. Experimente O ARROZ DE PALMAS.

Depois dessa valiosa degustação, certamente, você vai querer muito montar a árvore genealógica de sua família.

Experimente isso também. Você vai o prazer da pesquisa e de estabelecer contatos cm quem ha muito não vê.

Há muitos sites que ancoram sua árvore genealógica de modo gratuito. Indico o site MYHERITAGE. Lá o site é grátis, e há muitos caminhos de buscas, além da possibilidade de compartilhar com seus parentes. 





E mais tarde, talvez você se veja interessado em escrever a biografia de um familiar  ou da família toda...

MUDANÇAS QUE TRANSFORMAM - Helio Fernando Salema

 


MUDANÇAS QUE TRANSFORMAM

Helio Fernando Salema

 

Seu Jerônimo assim que chegou ao Brasil foi trabalhar numa padaria como auxiliar de padeiro. Pouco depois conheceu Rosa, empregada numa casa próxima, que diariamente ia à padaria comprar pães e leite.

Logo no primeiro olhar ambos se revelaram. Como ele morava num pequeno quarto sozinho, próximo ao local de trabalho, ela passou a fazer companhia a ele durante à noite e não mais dormir na casa dos patrões.

Os patrões de Rosa resolveram comprar uma grande casa a beira-mar numa cidade próxima. Assim poderiam acomodar melhor seus cães e gatos. Também teriam um grande e belo jardim além de uma boa horta.

O mais desejado; receber amigos com mais conforto e num local bastante aprazível.

Rosa ficaria tomando conta da casa e controlando os funcionários moradores daquela cidade. Providenciando o que fosse necessário para a acomodação da família e convidados. Certamente, haveria necessidade de muitos contratados, principalmente nos fins-de-semana, quando além das pessoas íntimas, outras famílias também participariam das maravilhas oferecidas pelo lugar de belas praias.

A casa tinha uma parte reservada aos hóspedes. Com várias suítes, sala de jantar, sala de jogos e até uma pequena cozinha.

Além do belo jardim próximo da piscina.

Nos fundos uma ampla área reservada aos animais e uma horta que abastecia a casa com verduras frescas e de boa qualidade.

Rosa disse que só iria se Jerônimo também fosse. Assim Jerônimo foi admitido para cuidar do jardim, da horta e dos animais.

O casal morando na casa de caseiro tinha todas as suas despesas custeadas pelos patrões.

Jerônimo era muito controlado e Rosa não era gastadeira. O salário de ambos ficava depositado na poupança da Caixa Econômica Federal todos os meses.

Rosa tinha uma filha, Irene, num orfanato. Passou a visitá-la com mais frequência, pois poderia durante a semana se ausentar do trabalho que

Jerônimo não deixaria a propriedade abandonada.

Depois de alguns meses, Rosa teve uma surpresa. Quando Irene completasse 18 anos, deveria dar lugar a outra menina. Satisfação em ter a filha junto a ela, mas, simultaneamente, como acomodá-la.

Jerônimo, que não conhecia Irene, não gostou da ideia de ter que dividir a pequena casa com uma estranha. Na expectativa de que a jovem não se adaptasse e, em pouco tempo, tomaria outro rumo, não se irritou.

Porém, Irene mostrou suas habilidades na cozinha e, aos poucos, foi ganhando a simpatia do padrasto. Jerônimo, que já fizera amizades com muitos comerciantes, vislumbrou a possibilidade de que com a ajuda da enteada, montar uma lanchonete.

Um dos pontos preferidos era o bar de um amigo, também português, que se queixava do cansaço para continuar trabalhando. Com alguns meses de conversa chegaram a um bom acordo para ambos.

As mulheres gostaram da ideia. Empolgadas, deram várias sugestões para a reforma do local que estava em péssimo estado. Durante a reforma, mãe e filha foram se aperfeiçoando nos doces e salgados durante a semana, quando ficavam a sós na casa da praia.

A inauguração foi um acontecimento histórico no bairro. Na fachada um letreiro bem colorido chamava a atenção, SABORES E ENCANTOS.

Uma decoração interna totalmente diferente do antigo bar. Cores bem fortes chamavam a atenção de quem por ali passava. Os fregueses sempre admiravam as qualidades dos bolos, doces e salgados; alguns imaginados e sugeridos por Jerônimo e, elaborados por mãos experientes com a suavidade e carinho das mulheres.

Irene convidou uma amiga de colégio para trabalhar com ela. Assim, todos os dias Irene e Jerônimo saiam de casa cedo para abrirem a lanchonete. Depois as duas moças ficavam trabalhando até à noite, quando Jerônimo chegava para fechar.

Isso durou pouco tempo, pois as duas moças não davam conta de tanto serviço.

A solução foi o casal sair do emprego. Jerônimo alugou uma casa próxima à lanchonete e os três mudaram imediatamente.

Com o passar dos meses e a chegada do verão, época em que aumentava bastante o número de pessoas na cidade, também aumentou a freguesia.

Depois de dois anos, Jerônimo​​, muito empolgado com o sucesso, resolveu procurar outro local mais próximo do porto para abrir uma filial.

Encontrou uma loja de bom tamanho e num ponto de muito movimento.

A filial mostrou ter sido uma boa escolha. Cada dia aumentava ainda mais o faturamento, superando as expectativas de todos. Depois de um ano a família adquiriu um bom apartamento.

A proximidade do porto ajudou bastante além das encomendas que eram feitas com frequência.

Até que um dia, Irene arrumou as malas e avisou que iria pegar o navio e, em companhia de um marinheiro, iria para Portugal

 

quarta-feira, 8 de março de 2023

ESPINHO NA CARNE - Vanessa Proteu

 

 

SINESTESIA - exemplos:

1.   Como era bom sentir o perfume doce e quente que seus cabelos exalavam.

2.    Uma voz de trovão cuja amargura incomodava a pele.

3.   Minhas mãos cálidas conversam com as suas que, descoradas, não têm nada a falar.

 


ESPINHO NA CARNE

Vanessa Proteu

 

Ana tinha quinze anos quando se apaixonou pela primeira vez. Ela era uma menina cuja meiguice encantava quem estava ao redor. Romântica e cheia de sonhos, esperava conhecer o amor. Aquele amor que lia nos livros e que de alguma forma despertava nela o ardor do cheiro suave das manhãs. Uma mistura intensa de suavidade e aconchego com o frio na barriga e o suar das mãos.

Neste contexto, ela encontra o Ícaro, um jovem de dezoito anos, muito conquistador, bela figura, de olhar misterioso, de braços fortes. Ao vê-lo, Ana logo pensou que seria ele o seu Jack, mas que, ao contrário do filme Titanic, teria um final feliz.

Seus olhares se entrelaçaram e era como se suas almas tivessem se abraçado ao ouvir o som pulsante de seus corações.

Teria Ana encontrado, de fato, o amor?  São, indubitavelmente, imprecisos os caminhos do idílio. Um relevo de cores tomava o coração dessa doce menina. Ícaro havia chegado pouco antes da partida do pai dela, que morrera vítima de um infarto. Tal acontecimento tinha abalado o coração da jovem, mas ter ao seu lado alguém tão carinhoso, prestativo e gentil, trouxe o conforto e o consolo de que precisava.

Todas as vezes que ela estava ao lado dele, o tempo parecia repousar como se tivesse em uma rede tecida de ternura. Ícaro era apaixonante e apaixonado por música popular brasileira, por livros, por jogos e por Ana. Pelo menos era o que parecia.

Ele também amava fazer surpresas. Certa vez, acordou sua namorada com o som do violão, cantando uma bela música de Chico:

“O meu amor

Tem um jeito manso que é só seu

E que me deixa louca

Quando me beija a boca

A minha pele toda fica arrepiada

E me beija com calma e fundo

Até minh’alma se sentir beijada”

Três anos de namoro e tudo continuava perfeito. As brigas eram sensatas, as risadas eram intensas e a alegria arrebatadora. Ela era ciumenta, mas na medida certa para não desandar a massa que a vida sovou. Ele já não se importava tanto que a beleza dela atraísse olhares, pois dizia que era privilégio seu ter o amor de tão bela moça.

Ícaro, no entanto, teve que viajar por uns dias — disse que era uma viagem a trabalho. Ora, Ana morria de saudades, pois não se acostumara a ficar longe do seu futuro noivo. Eles haviam combinado que o noivado sairia assim que ele voltasse e conseguisse esse novo emprego.

Os dias se passaram e Ícaro não retornou conforme o esperado. Suas conversas com Ana também diminuíram. Ele quase não pegava mais o celular. Ela o percebia distante. Será que o amor por ela havia perecido? O que estava acontecendo? Tanta coisa passou pela cabeça dela, mas seu coração não queria acreditar que algo tão vívido estava ficando tão frio. Ela o perguntava diversas vezes o que estava atrasando sua chegada e ele dava respostas que não a satisfazia.

Já estava fazendo um mês que Ícaro havia viajado. Os pais dele foram ao seu encontro dizendo que trariam notícias. Isso deixou a pobre garota ainda mais apreensiva. — O que ele estava escondendo? Será que ele encontrou outra e não sabe como terminar? Será que não me quer mais? Estou tão triste, disse Ana ao desabafar com uma amiga em uma cafeteria perto de sua casa.

Gleice, sua melhor amiga, a aconselha dizendo que sabia que aquele relacionamento já tinha dado o que tinha que dar e que Ana tinha que se permitir conhecer novas pessoas, afinal, Ícaro era o primeiro e único namorado que ela teve. Gleice achava que sua “best friend” não merecia ser tratada assim e que muito possivelmente ela estivesse sendo traída. Lágrimas desciam dos olhos de Ana que jamais pensou que esse amor fosse afundar.

Ela reuniu suas forças depois de alguns dias e resolveu ter uma conversa firme e definitiva com seu namorado. Ligou para ele na certeza de que seria a última vez.  Seu coração dançava no ritmo da chamada. De repente, uma mulher atendeu. Ana desligou, sem falar nada. Entendeu, finalmente, o que estava acontecendo.

Mais tarde, o celular toca, mas Ana está triste demais para atender. Se antes ela passava o dia esperando que seu amor ligasse, agora ela não quer mais saber. A pessoa insiste, então ela atende. Na linha, está o pai de Ícaro, com uma voz de trovão, cuja amargura incomodava a pele tal qual um espinho na carne:

— Ana, eu preciso te dizer uma coisa sobre o meu filho.

— Eu já sei de tudo, Seu Lauro, seu filho me trocou por outra.

A voz, que antes parecia um trovão, foi diminuindo a intensidade até que ficasse apenas um sussurro.

— Não, Ana, Ícaro está doente.

— Como assim? Ele não me disse nada. Saiu daqui muito saudável. Não estou conseguindo entender.

— Ele saiu da cidade visando confirmar um diagnóstico do qual já desconfiava. Ele nos proibiu de contar a você, pois a ama tanto que não suportaria vê-la sofrer.

Ela chorava de maneira tão profunda que o céu se inclinava para ouvir o seu clamor. Era um espinho que entrava na carne e penetrava a alma de Ana.

Em desespero, viajou para ver o amor de sua vida que estava passando por uma cirurgia no hospital. Ansiava em vê-lo, mas teve que esperar o momento certo para matar a saudade e dizer para ele o quanto ela havia se enganado e os dois iam rir daquilo como sempre faziam depois de uma briga.

Ao entrar no quarto e olhar para o seu amor, Ana viu que a fragilidade o deixara ainda mais forte, ainda mais belo e ainda mais amado. Aproximou-se dele timidamente. Não estava habituada a vê-lo tão inerte. Cantou para ele a música de Chico Buarque com mais emoção do que o próprio autor. Deitou em seu peito e tocou-lhe as mãos enquanto recitava versos de Vanessa Proteu:

“Minha voz a te seguir

  E a sua a fugir,

Preferindo quietude

Sobre os pés não há chão

Há um tapete de nuvens

Chegará ao coração?...

Minhas mãos cálidas

Conversam com as suas

Que descoradas

Não têm nada a falar...”

O amor, no entanto, tem uma força mágica capaz de remover qualquer farpa do coração. Às lágrimas de Ana, regadas de oração, Ícaro foi despertando. Pensou que estava no céu, pois via a figura de um anjo em sua frente. Suas almas fizeram uma permutação. Ele chorava, ela sorria. Era o encontro mais perfeito que tiveram, ainda que no hospital.

— Estou aqui, meu bem, de volta para você. Não deixei de te amar, só não queria que meu sofrimento a machucasse.

— Ora, sofri por estar longe de ti. Mas não ia permitir que morresse me devendo.

— Eu estou te devendo, meu amor?

— Sim, me devendo um noivado.

— Ah, é verdade. Assim que conseguir me mexer pagarei minha dívida com amor.

 

O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA - Pedro Henrique

  O SEGREDO DE UMA LÁGRIMA Pedro Henrique        Curioso é pensar na vida e em toda sua construção e forma: medo, terror, desejo, afet...