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quinta-feira, 1 de julho de 2021

O ANJO DO CÉU E A LIBERTAÇÃO DE MIGUEL - Leon Vagliengo

 

 


O ANJO DO CÉU E A LIBERTAÇÃO DE MIGUEL

Leon Vagliengo

 

Um conto baseado em recortes sobre o sofrimento e o resgate do viver.

 

Ser feliz é uma responsabilidade muito grande. Pouca gente tem coragem. As razões possíveis são muitas, uma delas aqui exemplificada na história de Miguel, que passo a lhes contar:

Nascido de família de classe média, Miguel carregava em sua personalidade os efeitos de uma educação familiar básica, mas correta, moldada ao longo de sua infância e adolescência para que se tornasse um bom cidadão, capaz de enfrentar as circunstâncias da vida adulta.

Nesse processo, porém, um fator havia prejudicado a formação de seu equilíbrio emocional: o seu pai era um homem bom, correto e trabalhador, mas alcoólatra; não conseguia evitar a bebida, embora ele mesmo tanto o desejasse. Costumava embriagar-se quando não estava no emprego e brigava muito com a sua mãe, submetendo o seu lar a frequentes conflitos.

Outras vezes, embalado pela bebida, causava situações vexatórias perante os conhecidos, em situações como festas de casamento ou aniversário, ou provocava grande tensão e risco ao guiar o seu carro levando a família, apesar de sua grande habilidade na direção.

Nesses momentos Miguel a tudo assistia, às vezes com medo, sempre com muita vergonha, pois o protagonista era o seu pai.

Sua pequena família, porém, mantinha-se estável graças à inabalável consciência que ambos, seu pai e sua mãe, mantinham de suas obrigações familiares, apesar de tão prejudicada pela abominável doença do alcoolismo.

Apesar do amor que tinha por seus pais, essas situações marcaram profundamente e de forma indelével a personalidade de Miguel, pois aconteciam repetidamente durante todo o período mais intenso e sensível da formação de sua personalidade, consolidando nele um sentimento de muita insegurança. Tinha medo de que os amigos percebessem a embriaguez de seu pai, e ficava muito tenso e envergonhado quando eles o viam naquelas condições.

Filho único, tornou-se um adulto muito tímido, e ainda jovem aos seus trinta e poucos anos, permanecia morando com os pais. Não tinha estímulos para realizar os seus sonhos e acreditar em si mesmo na tomada de atitudes, algumas até necessárias para o seu bem-estar.

Tinha consciência de sua inibição, e sofria muito por seus efeitos. Inseguro, era muito difícil para ele aproximar-se de alguma moça para tentar um relacionamento, pois sentia que não saberia como agir e, muito pior, apavorava-se ao imaginar que poderia passar por algum vexame quando em algum inevitável momento se encontrassem com o seu pai naquelas temidas condições.

Não obstante, Miguel era uma pessoa afável, sempre solícito e amigo, simpático a todos que o cercavam, que não percebiam o seu conflito interior.  Mas, como sabemos, o fato de o mar estar calmo na superfície não significa que algo não esteja acontecendo nas profundezas.

Assim, nessa insegurança, passara a sua infância e adolescência; e a sua vida seguia, solitária e sem brilho, voltada quase que tão somente para as atividades formais de estudo e trabalho, em que ele se dedicava com afinco por vê-las como a obrigação a ser cumprida e até como uma forma de descarregar as suas tensões.

Em verdade, todos temos a guerra dentro de nós. Às vezes ela nos mantém vivos. Outras vezes, ela ameaça nos destruir. Com empenho no estudo e no trabalho Miguel compensava as suas guerras internas e sobrevivia, evitando, assim, a sua própria destruição.

 

Apesar de tudo, graças a essa dedicação Miguel obteve bastante sucesso na vida profissional e conseguiu um emprego promissor e estável, onde, apesar de jovem, já era respeitado por sua competência e saber, conquistando um bom salário. Deduzia que, no fundo, esse sucesso era fruto de seus terríveis temores, e que as pessoas são capazes de ir muito mais longe por causa daquilo que temem do que por causa daquilo que desejam. E ele temia desejar alguma coisa que lhe exigisse atitudes.

A sua timidez era um terrível incômodo, sempre presente a atormentá-lo. Procurava ficar longe de festas e outras situações de relacionamento social, dificilmente tomava a palavra nas reuniões de trabalho, sofria muito só em pensar que poderia ser convidado para alguma apresentação em público, pois achava que iria gaguejar, dizer coisas tolas ou sem propósito, perder-se na argumentação, enfim, submeter-se a um imaginário e temido vexame.

A sua vida era por isso uma permanente tensão, sentia como se a qualquer momento tudo iria desabar. Miguel tinha a consciência de que todo aquele sentimento negativo era fruto de sua imaginação, mas estava profundamente arraigado em sua mente, bloqueando as suas ações. Sabia também que tinha tudo para ser feliz: era ainda jovem e já estava bem financeiramente, percebia a admiração que despertava em algumas moças, mas tinha medo de tomar atitudes, inclusive para aproximar-se delas.

Em verdade, achava que ele próprio era o seu maior inimigo, a impedir-se de ser feliz. Às vezes sentia raiva e uma estranha vontade de vingar-se de si mesmo. Em suma, Miguel não conseguia sentir-se feliz. Faltavam-lhe as atitudes.

Foi quando ela entrou em sua vida.

 

A nova secretária do diretor da empresa a quem Miguel estava subordinado, Maria do Céu, com esse nome diferente e doce logo chamou a sua atenção. Na apresentação, ela lhe pareceu muito educada e simpática; e o melhor: era uma morena muito bonita, mais ainda por efeito do belo sorriso, e pareceu interessar-se por ele. Evidentemente, Miguel logo reagiu a essa impressão, concluindo que ela estava apenas mostrando-se educada.

 

Os dias seguintes se encarregaram de mostrar a Miguel que ele estava enganado.

 

 A todo momento Maria do Céu aparecia com algum assunto de serviço, feliz em encontrar pretextos verdadeiros para vê-lo, e a amizade entre eles foi se firmando.  Ela não teve dificuldade para perceber a inibição de Miguel e, inteligentemente, passou a abordá-lo sempre com o devido cuidado para não despertar a sua insegurança.

 

A habitualidade desses momentos teve o mérito de dissolver a timidez de Miguel em relação a ela, e ele sentia-se confortável com a sua presença. Em pouco tempo passou a esperar com ansiedade por essas oportunidades, ainda achando que, da parte dela, fossem motivadas apenas pelo trabalho...ou será que não?

 

A resposta partiu dele mesmo, numa dessas ocasiões. Repentinamente, surpreendeu-se ao ouvir a própria voz romper corajosamente as suas barreiras imaginárias, convidando-a para jantar. Ela olhou para ele com ar de incredulidade, durante o que lhe pareceu, aproximadamente, um século. Então, abriu o seu belo sorriso e aceitou, deixando claro o seu contentamento.

 

Depois daquele jantar muitos outros se sucederam e o relacionamento entre eles se estreitou. Maria do Céu teve o cuidado de respeitar o protocolo romântico e esperou que ele, não ela, revelasse as suas intenções, embora fossem as mesmas. Assim, por causa da timidez de Miguel, demorou um pouco para que se confirmasse o compromisso; mas, em verdade, muito antes da confirmação ele já era sabidamente irreversível.

 

Miguel continuava tímido, mas agora tinha um amparo, não se sentia mais sozinho para enfrentar as suas angústias. Maria do Céu procurava incentivá-lo, sempre cuidadosamente para não ferir o seu amor-próprio.

 

Com o passar do tempo Maria do Céu foi conquistando a confiança de Miguel, até que um dia ele criou coragem para abrir-se com ela sobre os seus temores e a culpa que sentia por ser uma pessoa tão inibida e sem atitudes importantes. E concluiu dizendo que, por isso, considerava a si mesmo o seu maior inimigo.

 

Pacientemente, Maria do Céu o ouviu e ao final, sabiamente, sugeriu que ele se perdoasse, pois, como ela aprendera com a sua mãe, a maior vingança contra um inimigo, é perdoá-lo. No caso não seria exatamente uma vingança, como no dito popular, mas este perdão seria o reconhecimento de que ele não tinha a culpa que imaginava, não era o seu próprio inimigo. Tinha que perdoar-se, não mais martirizar-se, e ela o ajudaria a tomar as atitudes que lhes trariam alguma felicidade.

 

E assim tudo aconteceu.

 

Com a ajuda de Maria do Céu, Miguel assumiu o comando de sua vida, deixando a casa dos pais e formando com ela o seu próprio lar.

 

Sentia que nunca superaria completamente a timidez e a inibição geradas pelas circunstâncias que as implantaram em sua mente durante a infância e adolescência, pois as raízes eram muito antigas e profundas. Isso seria muito difícil, se não impossível.

 

Porém, Miguel conseguiu finalmente compreender-se e conviver melhor consigo mesmo, graças ao apoio do Anjo que um dia desceu do Céu para protegê-lo e ficou para viver ao seu lado.

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