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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

O revés - Adelaide Dittmers

 


O revés

Adelaide Dittmers

 

Na grande e luxuosa sala uma discussão acalorada acontecia.  Dois homens disparavam palavras ásperas e acusações mútuas.

— Você me roubou, gritava o mais velho.

— Não, não nunca roubei o senhor.  Sempre lhe fui fiel, mais até do que deveria ter sido. Trabalhei como um burro de carga para o progresso de sua firma.  Aceitei trabalhos que nunca deveria ter aceitado.  E o que recebi em troca, nada, nada.  E agora ainda me acusa de roubo, justo o senhor.  O que ganhei da empresa era meu por direito. 

Você sabe que tenho poder para colocá-lo na prisão! Gritou o homem.

— O senhor é que tem que confessar muita coisa seu traidor miserável!  Não vai me colocar atrás das grades, usando o seu poder. Não pode forjar um roubo que não fiz!

Nesse momento, o mais jovem saca uma arma e atira várias vezes. E sai apressado daquele lugar.

O velho cai no chão e o sangue espalha-se pelo luxuoso tapete persa.

Uma jovem sai detrás de uma porta. Tinha escutado parte da discussão e viu quando o pai foi atingido.  Corre em direção dele.  Tenta desesperadamente reanimá-lo, mas percebe que não pode fazer nada.  Seu pai está morto.  Cai num pranto sentido e convulsivo.  Seu querido pai, a quem sempre admirara e amara fora morto por um homem, em que sempre confiara.

Uma ira intensa a invadiu. Um sentimento forte e desmedido de raiva apossou-se dela.

Era uma moça, que crescera protegida, que recebera tudo o que quis, mas ao mesmo tempo era independente e firme nas suas decisões.

Levantou-se. Seu rosto parecia feito de pedra.  Seus olhos soltavam faíscas de ódio.  A revolta enrijecia seu corpo.  Pegou o celular e ligou para a polícia, e em voz alta falou para si mesma: “Borges, você vai pagar pelo que fez, eu juro, pai.

Depois de uns vinte minutos chegou a polícia e ela contou tudo o que vira.

O agente perguntou:

— Por que não interferiu para evitar o crime?

— Não imaginei que ele estivesse armado, nem que tivesse coragem de fazer algum mal a meu pai. Me escondi para ver o que estava acontecendo, mas não me passou pela cabeça que iria ter esse desfecho.

— Você o conhecia bem? Perguntou o policial.

— Sim, era o braço direito de meu pai e frequentava minha casa com a família. É casado e tem dois filhos pequenos.

—Você é a única testemunha. Vai ser chamada para prestar declarações.

— Estou à disposição.  Quero justiça! Respondeu a moça, firmemente.

Depois de examinar a cena do crime e tirar várias fotos, os agentes de polícia providenciaram a retirada do corpo e o encaminharam para o IML.

Roberta foi para o quarto.  Estava extenuada.  Ligou para a mãe, que estava viajando com amigas.  Seu rosto estava sério.  Suas lágrimas haviam secado.  Uma aparência fria apareceu em seu rosto e seus olhos brilhavam, parecendo tomados por um fogo interior.

No dia seguinte, Borges foi indiciado por homicídio, mas como não foi localizada a arma do crime, e a filha foi a única testemunha do acontecido, não houve provas suficientes para prendê-lo, embora as investigações continuassem.

Roberta não se conformou ao ver o assassino de seu pai não ser preso e ficou mais revoltada ainda ao saber que, como era a única que estava na casa e assistira a tudo, seria alvo de investigações.  Contudo, sua mãe e várias pessoas ligadas à sua família, inclusive os empregados da casa, testemunharam a seu favor, contando a relação de afeição e respeito recíprocos entre pai e filha e ela foi ilibada.

Essas averiguações a deixaram mais transtornada ainda.  Como puderam suspeitar dela?  Uma onda de indignação a invadiu e o desejo de vingança cresceu, atingindo o mais profundo de seu ser.

Já passava da meia noite e ela não conseguia dormir.  Seu olhar perdia-se na penumbra do aposento, onde os móveis lhe pareciam fantasmas que conspiravam com ela.

Aos poucos foi delineando seu plano e no fim da madrugada, com o dia já querendo entrar pela janela, adormeceu com um sorriso nos lábios, pois sabia o que iria fazer.

Naquela mesma manhã, ligou para o Borges.  Sempre percebera nele um interesse por ela.  Era uma linda mulher, inteligente, decidida e corajosa.  Fascinava muitos homens e Borges não pareceu indiferente aos seus encantos e mais do que isto, muitas vezes ela notava nele um olhar apaixonado, que a deixava constrangida.   Fingia não perceber suas atitudes, afinal era um homem casado e de confiança de seu pai.

Borges olhou para o celular que tocava, e a surpresa estampou-se no seu rosto. O que Roberta quereria com ele.  Acusá-lo novamente. No entanto, a curiosidade o venceu e atendeu a chamada.

— Alô, Roberta! Falou em tom seco.

—Olá, Borges! Como você está?  Ela perguntou em um tom, que aparentava tristeza.

— O que você quer de mim? Ele indagou meio exaltado.

— Calma! Pode baixar o tom.  Não liguei para acusa-lo.  Quero conversar com você e saber os motivos que o levaram a matar meu pai, com quem você trabalhou por anos e o ajudou a chegar aonde chegou.

— E aonde cheguei, por acaso a mocinha sabe? Pare com essa conversinha! Não vou cair nessa!

— Deve haver um motivo muito forte para justificar o que você fez. Ela falou em um tom irônico.

— Não vou falar nada.  Pensa que sou idiota! Você deve estar gravando a conversa para usar contra mim.

— De jeito nenhum, e para provar isso, gostaria de marcar um encontro com você.

— Para que?

— Pensei muito em tudo e conclui que houve algo muito sério entre você e meu pai para você fazer o que fez.

— Você ficaria surpreendida se soubesse.   Não sei se devo contar.  A imagem de santo, que tem de seu pai cairia por terra.

— Eu quero saber.  Eu preciso saber para continuar a levar minha vida daqui por diante.

  Mas se alguém a pudesse ver naquele momento, constataria a descrença e o desprezo pelas palavras do rapaz;

OK, então que tal amanhã, às três da tarde nas proximidades da Oca, no Parque Ibirapuera.

— Fechado! Até amanhã!

Roberta sorriu.  Seus olhos brilhavam de satisfação. Conseguira o encontro.  Iria começar a sua vingança.

A tarde estava linda, a primavera desabrochava pelo verde do parque.  O céu, bordado de nuvens brancas, que, empurradas pelo vento brando, formavam várias figuras diferentes, tingia-se de um azul profundo.  As árvores balançavam seus ramos suavemente, numa dança ritmada. 

Na hora marcada, Roberta postou—se perto da Oca.  Respirou fundo várias vezes, como que ganhando forças para o que ia acontecer.

Após uns instantes, Borges chegou, um belo homem na casa dos quarenta, cabelos já meio grisalhos e traços firmes e definidos.

Roberta o cumprimentou, sem estender a mão.  Ele devolveu o cumprimento.  Estava sério e com um ar inquisidor. O que queria ela, perguntava-se intimamente.

— Vamos para perto do lago.  Podemos nos sentar num banco ou mesmo na grama, disse ela.

— Vamos, então!

Andaram pelo parque até chegar quase à beira do lago e se sentaram em um banco à sombra de uma alta e frondosa árvore.

Roberta soltou um suspiro vindo de dentro de sua alma e disse num tom firme:

— Pois bem, me diga seus motivos.

— Primeiramente, preciso dizer que foi um ato desesperado e impensado!

— Não, você premeditou o crime. Estava armado!

— Queria só assustá-lo com a arma. Não pretendia usá-la.  Ele precisava confessar o que tinha feito! Falou, alterando sua voz.

— Mas o que ele tinha que confessar?  Pelo que ouvi, você estava sendo acusado de roubo!

— Outra mentira de seu pai!  Calma, vou lhe contar tudo.

E com palavras lentas e pausadas contou a sua história.

—Trabalhei com ele, como você sabe, por muitos anos, desde muito jovem e o admirava muito, mas com o tempo fui descobrindo que sua fortuna era conseqüência de inúmeros atos ilegais para atingir seus fins de lucrar cada vez mais.  Ele não hesitava em lesar alguém para conseguir o que queria e comprava as pessoas para aumentar mais e mais o seu patrimônio. Várias vezes, pedi minha demissão, mas ele não consentia. Eu sabia demais!

— Não é possível, meu pai não era assim. Você está mentindo!  Ele fazia tanta filantropia! Era muito admirado por isso! Interrompeu ela, levantando a voz.

— A filantropia disfarçava as falcatruas.  Ele falou sério. E continuou: E tem algo que nunca lhe falei.  Eu sempre fui apaixonado por você, Roberta.  Tinha baixado a voz e olhou-a nos olhos e seu rosto refletia uma tristeza, que parecia ter sido guardada por muitos anos.

 — Não acredito!  Você se casou com a Júlia! Disparou exaltada.

—Casei.  Mas, anos antes tinha falado a seu pai sobre o que sentia por você. Achava que tinha que lhe dar satisfação de tudo.  Ainda confiava nele naquela época. Ele com muita firmeza me dissuadiu da idéia.  Falou da diferença da idade de doze anos que existia entre nós e que, apesar de eu ser seu fiel escudeiro, ele esperava que você fizesse um casamento com alguém com as mesmas condições financeiras e que nunca notou seu interesse por mim. Nesse momento, bateu nas minhas costas, como querendo se desculpar pelo que havia dito.  Nesse dia fui para casa desiludido e decepcionado, me sentindo inferior.

— Não estou entendendo! Você nunca me falou sobre seus sentimentos. Por que passou por cima de mim e falou direto com meu pai.  Como podia saber o que eu sentia por você?

— Sempre percebi que você retribuía a meus sentimentos. Seus olhares, suas atitudes...

— É verdade! Eu o admirava muito.  Achava você o máximo, um homem lutador, inteligente e gentil.  Por que não falou comigo? Por que não lutou por mim?

— Mais do que ninguém, você sabe que seu pai era um homem carismático e convincente.  Conseguia subjugar qualquer um com seus argumentos e falsos gestos de afeto.

Roberta estava pasma. Seu rosto refletia um mar turbulento, repleto de dúvidas e angústias. As acusações de Borges não poderiam ser verdadeiras.  No íntimo, no entanto, lembrava do pai carinhoso e sempre disponível para ela, mas altivo e firme para com todos.  Lembrou—se que muitas vezes ele se trancava no escritório de casa, para ter longas conversas veladas com pessoas, cujo nome e assuntos tratados, nunca mencionava.  Pensou em sua mãe, que disfarçava sua infelicidade por ele não ter tempo para ela e talvez por isso levasse uma vida fútil e sem sentido.

— Mesmo assim, se tudo isso for verdade... ela falou com uma voz apagada.  Você não tinha o direito de assassiná-lo.  Não tinha!

— Perdi a cabeça.  Estava fora de mim. Naquele momento, odiei-o e a mim mesmo por ter sido                                                                                                                                          seu pau mandado, por tantos anos, respondeu ele num tom exaltado.

— E tem mais! Acrescentou devagar.

Roberta aguardou calada e receosa, o que tinha por vir.

— Descobri há pouco tempo que seu pai mantinha um relacionamento com minha mulher. Nunca a amei perdidamente.  Foi para mim uma grande amiga em quem confiava e me entendia.  Por isso casei-me com ela. Tinha perdido meus pais, me sentia muito só. Então, quando descobri a traição dos dois, meu mundo desabou.  Não poderia nunca mais confiar em alguém.  Fui usado muitas vezes por seu pai em suas negociatas e minha melhor amiga me enganou descaradamente.

Lágrimas desciam pela face de Borges.  Silenciou e baixou a cabeça envergonhado pela sua fraqueza.

Roberta estava atônita.  Empalideceu. Tinha tramado todos os passos de sua vingança com todo o cuidado e agora toda essa revelação.  Pelo estado emocional do rapaz, percebeu que tudo era verdade.  Como ela não enxergara quem era seu pai.

— E Júlia, por que traiu você?  Sempre pareceu tão apaixonada e ciumenta até demais.

— Ambição.  Apesar de ser uma boa companhia, adorava dinheiro.

Num impulso, que nem ela conseguiu entender, a jovem abraçou aquele de quem queria se vingar.  Um abraço longo e amoroso.  O rapaz surpreendido abraçou-a também.  Amava aquela mulher, como nunca tinha amado ninguém. As lágrimas dos dois se misturaram como um rio que se encontra com outro.

— Me perdoe! Queria me vingar de você. Tinha engendrado um plano terrível para feri-lo.  Agora sei que nunca conheci meu pai.  Ele foi uma farsa.

Os dois continuaram unidos por aquele abraço inesperado como dois edifícios que ficam juntos para não ruir.

Depois de algum tempo se afastaram e se olharam ternamente. Borges contou—lhe que se separara de Júlia. Falou que toda sua vida foi uma mentira e que não tinha nenhum orgulho de sua fraqueza em não sair da empresa e romper com  o pai  dela.  Agora ainda teria que carregar para o resto da vida o remorso por ter matado um homem.

Roberta fitou-o longamente e de súbito empertigou-se e com uma voz firme e decidida falou:

—Vou te confessar uma coisa, que sempre guardei dentro de mim a sete chaves.  Sempre te amei desde menina, mas te achava inatingível como um ídolo, que só poderia ser admirado de longe.  Por isso, quase enlouqueci ao presenciar a morte de meu pai.  Minhas emoções se atropelavam, iam da desilusão ao ódio.  Não sabia o que fazer com elas.  Agora tenho uma certeza.  Não podemos nos deixar abater. Vamos reconstruir nossas vidas. Vivi um engano até hoje.  Você foi usado e traído.  Levantou—se.  Ele, aturdido, olhou para ela e um sorriso triste estampou-se em seu rosto.

Deram—se as mãos e com passos lentos seguiram para seu futuro.

Um pássaro cantou alegremente.  O céu vestira—se de sua roupagem rosa, azul e roxa do entardecer e se refletia no plácido lago, onde um chafariz jogava sua água para o alto, formando pequenas ondas ao seu redor.  O sol, vestido de um laranja intenso, lançava seus raios luminosos, numa linda despedida ao dia que morria até o outro nascer. 

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