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terça-feira, 15 de junho de 2021

CINQUENTA ANOS DEPOIS - Hirtis Lazarin

 



CINQUENTA ANOS DEPOIS

Hirtis Lazarin

 

As dores nas costas eram bem maiores que a vontade de dormir.  Com dificuldade, acendi a luz fraca do abajur e vi que já era depois de uma hora da manhã.

Liguei a televisão e fiz um “tour” com o controle remoto.  Poucas opções.  Bem, notícias são sempre bem-vindas, mesmo que repetidas.

“O vilarejo de Curon, ao norte da Itália, acaba de emergir, após o esvaziamento das águas da represa para conserto de equipamentos da hidroelétrica”,

Levei um choque e, até agora, momento em que estou escrevendo este texto, não me restabeleci.

Escombros do que foram paredes, muros, risos, preces, degraus, parabéns à você, cômodos, sonhos estavam ali misturados feito barro.  Ainda gritando...

Foi então que, sem querer, destampei o frasco como o de um perfume, e liberei lembranças guardadas por cinquenta anos. Cinquenta anos!  Acreditava que a passagem do tempo já as tivesse descolorido.  Que nada!  Saltaram vivas e multiplicadas.

Pés descalços, cabelo desgrenhado, mãos abanando para a felicidade e sorriso atravessado de poesia.  Era assim que nossa turminha, cheia de pensamentos longe de compreender a vida, virava e revirava os cantos do vilarejo de Curon.

Algumas de nossas tantas alegrias eram: correr atrás das cabras até se perderem no descampado, saltar muros, pular cercas em busca de manga verde apanhada no pé, colher matinho e flores pra enfeitar o altar da padroeira, Santa Catherina, aquela à quem os adultos tanto rezavam e faziam pedidos.

O padre Piero tinha o rosto cheio de preguinhas e ensinava-nos o catecismo toda sexta-feira. A gente nunca faltava porque ele nos servia suco de groselha e pão com queijo fresco.  Podíamos comer quantas vezes quiséssemos. 

Obrigava-nos a rezar dez ave-marias e dez padre-nossos quando ficava bravo com nossas sapequices.  Descobrimos que a moradora que não se casou e ia rezar todos os dias era quem nos dedurava.  De bronca, a gente batia na porta da sua casa e saía correndo.

A torre da igreja era tão alta que cutucava as nuvens.  O sino, não sei como, avisava que já eram seis horas da tarde.  Ai de nós se não estivéssemos de banho tomado e prontos pro jantar, comida quentinha e cheirosa na mesa preparada por Mamãe  Rosina.  Lembro-me que todo dia, papai repetia: “Ela não é uma artista?  Mas comer que é bom ... só depois de cinco minutos de oração.

 Nosso maior sonho era poder subir a escadaria que levava ao pico da torre.  Eram mais de mil degraus.  O padre, muito cuidadoso, pendurava no pescoço a chave da porta que dava acesso às escadas.  Era de ferro, bem pesada e maior que duas mãos juntas.  Ele só permitia chegar ao primeiro degrau.  Era ali que esticávamos tanto o pescoço e nossa fantasia brotava como grama no pasto.  A torre escura e gelada deixava os pelinhos do corpo arrepiados.  Lá no alto, com certeza, moravam fantasmas.  Podiam-se ouvir sussurros e gemidos.  Acho que as pessoas que morriam viravam fantasmas.

A maravilha de tudo era que, para nós, tudo era maravilha.

Até que um dia, três homens desconhecidos, vestidos de terno escuro e gravata vermelha, chegaram a nossa vila, num carro Ford.  Nunca me esqueci desse nome “FORD”.

A notícia era de que, no prazo de trinta dias, deixaríamos as casas e seríamos transferidos pra outras aldeias. Era uma ordem e não opção.  Curon seria inundada para a construção de usina hidroelétrica.

Foi a primeira vez na vida que vi tanta gente junta agarrada a uma dor tão intensa e tão igual.

 Era sofrimento de alma.

 

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