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quinta-feira, 19 de novembro de 2020

O DIA EM QUE ELA VOLTOU - Leon Vigliengo

 




O DIA EM QUE ELA VOLTOU

Leon Vigliengo

 

 

Quantas vezes a nossa mente nos libera memórias que nos trazem fortes emoções e nos fazem sonhar, mesmo acordados...

Quando eu era ainda muito pequeno, os meus pais foram morar provisoriamente na casa de meus avós maternos, no bairro do Bom Retiro, na Rua Ribeiro de Lima, 444, bem próximo ao Jardim da Luz, onde sempre me levavam para passear e brincar.

Ainda me recordo dos coquinhos amarelinhos que se destacavam no gramado muito verde e bem cuidado; muito doces, seus fiapos ficavam presos em meus dentes após saboreá-los. O verde das árvores predominava no Jardim, difundindo uma sensação de tranquilidade, e meu pai sempre encontrava e me mostrava algum bicho-preguiça movendo-se lentamente entre os galhos de alguma jaqueira, cujos frutos me impressionavam por seu tamanho. Lembro-me ainda de um lago redondo que lá existe, onde viviam muitos peixes coloridos. Enfim, o Jardim da Luz era um ótimo local para divertir e mostrar novidades a um menino de quatro ou cinco anos.

Naquela época, início da década de 1950, viviam no bairro, em casas modestas e até em porões, muitos imigrantes italianos, poloneses, espanhóis, portugueses, e uma representativa colônia judaica, todos contribuindo com seus hábitos culturais e seus sotaques para a formação de uma interessante e amistosa comunidade. As ruas do bairro e de quase toda a cidade eram calçadas com paralelepípedos, muitas ainda de terra batida, e à noite apresentavam uma iluminação fraca e com muitas sombras.

A casa de meus avós era de bom tamanho, embora antiga e modesta, daquelas que tinham a porta de entrada diretamente na rua, como era bastante comum na região. Se bem me recordo, tinha dois quartos, uma boa sala de jantar e uma área de passagem, ligados por um corredor que ao final passava por um banheiro e chegava à cozinha, lugar preferido por meu avô Manoel. Lá também ele recebia os amigos que vinham visitá-lo, como era costume naquela época. Lembro-me bem do senhor Domingos, que sempre me trazia garrafinhas de chocolate com licor.

Em sequência à cozinha vinha um patamar e uma escada que descia ao quintal, onde as roupas lavadas por minha avó quaravam sobre folhas de zinco, nas quais eu costumava arranhar as minhas pernas quando pedalava o meu velocípede, sempre seguido da Bolinha, a cachorrinha da casa.

No quintal, ladeando a cozinha e o banheiro, havia um corredor bem sombreado, largo e sempre fresquinho, com muitas avencas, begônias e samambaias cuidadas por minha avó Camila; nesse corredor estavam duas passagens abertas para o porão, que se estendia por baixo de toda a casa.

Um quartinho na lateral dos fundos do terreno, onde meu avô guardava algumas ferramentas, e um pequeno galinheiro ao lado desse quarto completavam a área.

Nesse ambiente reinava Dona Camila. Espanhola, muito católica, com o seu jeito altivo e seus conceitos austeros, próprios da época e de suas origens, viera para o Brasil já casada, mas ainda jovem, na década de 1910. Ela e meu avô, que por profissão conduzia trens como Maquinista da São Paulo Railways, conseguiram estabelecer-se em São Paulo e criar suas quatro filhas. A mais velha, porém, minha tia Rosalia, adoentou-se e faleceu aos dezenove anos. Um mês depois o sofrimento dessa perda já havia marcado de branco todos os cabelos de Dona Camila, que contrastavam com a sua vestimenta inteiramente de cor preta pelo luto que manteve durante todo o restante de sua vida. Suas três filhas se casaram e os sete netos que vieram lhe deram grande alegria, mas nunca se reduziu o seu sofrimento pela morte de sua filha.

Havia uma creche na esquina com a Rua Prates, onde ela me levava para brincar com as crianças. Desconfia-se que foi lá que peguei catapora, caxumba e sarampo, ficando imunizado para essas doenças. Durante o tempo em que morei com os meus pais em sua casa pude sentir todo o amor que uma avó tem por seus netos. Nada que eu fizesse era errado, eu tinha a companhia permanente e o total apoio dela, mesmo nas traquinagens. Ela ria feliz e me incentivava sempre. Esse relacionamento de convívio durante a primeira infância criou raízes muito profundas que permaneceram para sempre.

São memórias muito antigas, e o tempo as havia escondido de minha lembrança.

O meu avô Manoel faleceu em 1956 e a minha avó Camila em 1970.

Foi num domingo de 2019. Voltei para casa bastante cansado, mas feliz, após fortes pedaladas num longo percurso de bicicleta, como os de meu costume aos domingos. Após almoçar com muita gula e exagero, sentei-me no sofá da sala para assistir a um filme na televisão. Aos poucos, porém, o sono me alcançou e as imagens ficaram instáveis; ora sumiam, ora voltavam, até que sumiram de vez.

Não sei quanto tempo depois ela apareceu. Inicialmente apenas um vulto em um cenário escuro, que foi clareando até a nitidez. Ali estava a minha avó Camila a me olhar e sorrir para mim, depois de quase cinquenta anos de saudades. Mesmos cabelos brancos, mesmas vestimentas pretas; nada disse, não foi necessário. Amigos e cúmplices se entendem sempre, a qualquer tempo.

Acordei chorando pela emoção e pela saudade. Nesse dia ela voltou.


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