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quinta-feira, 19 de novembro de 2020

CICLOS - Hirtis Lazarin

 


CICLOS

Hirtis Lazarin

 

Apesar dos quase oitenta anos, ele caminhava a passos largos e em ritmo acelerado pela trilha estreita, ladeada por arbustos espinhosos e agressivos.  Todo cuidado era pouco pra não ser espetado.

Em casa, a esposa inquieta ranzinzava por todos os cômodos:   "Teimoso como ele só. Não era pra ir sozinho até o vilarejo, mas quem é que segura aquele velho.  Só Nossa Senhora pra dá jeito".

Meia hora mais tarde, Seu Joaquim chegou esbaforido, pingando suor.  Jogou-se na cadeira de palha e bebeu quase meio litro de água, sem tirar o caneco da boca.

Passado um pouco do cansaço, tomou banho rápido pra evitar desperdício.  O momento era de economia.

Enquanto Dona Rosa preparava o jantar, o homem sentou-se nos degraus à porta da entrada, acendeu um cigarro e, entre as baforadas, pôs-se a observar a paisagem e a remexer em si mesmo.

Sentiu-se melancólico.  A tarde não estava como as outras.  Era o outono chegando sem aviso prévio.  O céu mais escuro, o ar com cheiro sonolento; as árvores, até então de um verde brilhante, começavam a ficar nuas; as folhas pálidas e amarelecidas soltavam-se leves dos galhos deixando-se levar.  O píer cheio de vento bom, o velho barco abandonado à espera de mãos que o tirassem do ócio.

A imaginação do velho senhor voou ao passado e colocou ali, naquele cenário, o menino que o acompanhava nas pescarias.  Ajudava-o a jogar o tarrafo bem longe e, pacientemente, os dois aguardavam os peixes se confundirem nas malhas prisioneiras.  Bons tempos aqueles...Saudade gostosa que dói...

E, sem que o casal percebesse, chegou a hora em que o menino virou homem e se foi como tinha que ser.  Uma despedida molhada e abraço enorme, aquele de se machucar quase sufocando.

Também as árvores, elas têm que deixar as folhas irem para que sobrevivam até a próxima estação.  É o ciclo da vida.

A natureza é sábia.  Mostra-nos que aquilo que não nos serve mais, precisa ser descartado.  É o desapego incitando-nos à renovação.  A natureza é também nostálgica porque a morte silenciosa lembra-nos que a vida é finita.

Seu Joaquim, homem de olhar analítico e personalidade forte, aprendeu muita coisa, não com os livros: onde os peixes nadam; pra onde as andorinhas voam; que não vivemos sempre na calmaria, mas que ela volta e que, pra dar certo, tudo tem planejamento.

"Joaquim, a janta tá pronta".

Ele nem se deu conta da chegada da noite, pois a escuridão veio devagarinho e aos pedaços.

Sentados à mesa, Dona Rosa, cabeça baixa, nem percebeu que dos olhos vermelhos do marido escorreu um bando de lágrimas.  Elas caíram sobre o prato e deixaram o caldo da sopa um tantinho mais salgado.

 

Títulos sugeridos; 

1 -  "Ciclos"  (escolhido)

2 - "Era uma vez..."

3 - "O retorno do velho pescador"

 

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