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quarta-feira, 1 de julho de 2020

ENCANTAMENTO - Hirtis Lazarin



Lágrimas, Olhos, Triste, Chorar, Humano, Rosto

ENCANTAMENTO
Hirtis Lazarin
                                             


Ela era a menina que chega sem fazer alarde e vai sem que ninguém a veja.   Pacienciosa e tolerante, sabia que tudo tem seu tempo.  Não era vaidosa, mas cuidadosa com a aparência física.  Os cabelos longos e acetinados viviam presos no alto da cabeça e, as unhas bem lixadas e curtas nunca se fantasiaram de vermelho.  Eu a definiria com uma única palavra: simplicidade.

Mas era à noite, sozinha, no silêncio do seu quarto voltado para a rua, que a jovem tímida desvendava seus mistérios.  Lia e escrevia poesias.  Inspiração que brotava mesmo sem o brilho das estrelas, sempre encobertas por densa camada de poluição.  O caderno onde escrevia seus amores e lamentos já estava quase cheio e dentro dele, outro segredo: uma foto em preto e branco já desgastada pelo manuseio contínuo.  Um cantor e compositor não tão atual.  Ela gostava do cantor, mas admirava o compositor cuja poética rodopiava entre os sentimentos, na dosagem certa do mel.

Depois que se envolveu numa pesquisa de Português, sua vida sofreu uma revolução.  A lição era escolher uma parábola na bíblia e entender sua estrutura linguística.  Brincando com palavras da língua e, de um jeito simples e objetivo, Jesus fazia com que o povo humilde entendesse verdades elaboradas.

No início, a sugestão da professora contrariou-a muito.  Pensou seriamente em desistir do trabalho.  Nunca abrira uma bíblia na vida e a mãe nem se recordava que havia uma esquecida numa gaveta enorme e cheia de trecos no último andar do guarda-roupa.

Mas, no desenrolar da pesquisa, Marina foi se interessando cada vez mais pelos textos bíblicos.  Encantou-se...  E não foi difícil descobrir um curso teológico ministrado na igreja Nossa Senhora das Caixinhas.

Aos sábados, enquanto suas melhores amigas não saiam da frente do espelho cuidando dos cabelos que já nem se lembravam mais da cor natural e esvaziando armários na troca de roupas pra atrair os olhares masculinos, a moça tomava o ônibus em direção ao salão paroquial.  As aulas eram ministradas por um casal e o pároco da igreja.  A presença da moça prolongava-se muito além do horário, num bate-papo produtivo e animado com dois rapazes participantes e o padre.

Apenas cinco meses havia se passado e Marina não era mais a mesma.  Pensativa, vivia no mundo da lua.   A voz mansa e pausada tornou-se áspera.  Falava pouco e se irritava quando questionada.  As conversas animadas com a família no horário das refeições viraram tormento.  Passava horas seguidas no quarto.  Com os ouvidos encostados à porta, quantas vezes a mãe ouviu-a chorando baixinho...  Várias consultas com a psicóloga foram desmarcadas.  Os pais não sabiam mais o que fazer,  mas não  desistiriam da filha.

A igreja Nossa Senhora das Caixinhas estava cheia, o altar  paramentado, as luzes e velas acesas  Eram quase sete horas da noite e nem sinal do padre que chegava sempre antes da missa pra conversar com os fiéis.  O sacristão impaciente e atordoado buscava-o por todos os cantos, o tempo passava e nada...  As pessoas, na maioria idosas, desistiram do compromisso cristão e abandonaram o recinto inconformados.

Já era meia-noite quando os responsáveis pela paróquia chegam à delegacia pra registrar o desaparecimento do padre.  Logo em seguida, uma família desesperada e uma mãe histérica entram pela mesma porta.  Marina estava desaparecida também.



A mariposa borboletou


A sala paroquial apareceu terrivelmente arrumada quando ela acendeu as últimas luzes.  Os frequentadores do curso bíblico, quase todos já estavam acomodados, aguardando o padre que chegou logo em seguida acompanhado de Marina.  O papo estava bem animado.

As senhorinhas Zilca e Terezinha, talvez as mais antigas paroquianas, não só frequentavam as cerimônias religiosas da igreja como também eram voluntárias prestativas nos bastidores do altar.

Dona Zilca, a mais idosa, a mais experiente, a mais ardilosa, tinha olhos investigativos e inquisidores.  Sempre atenta a cada detalhe, a cada movimentação diferente ao seu redor.  E, no momento, sua atenção voltava-se exclusivamente para Marina, a aluna de pouca idade.

A jovem chegara tímida e reservada.  Pouco se comunicava, chegava só, e só deixava o local.  Namorado não tinha.  Mas, nas últimas semanas, não era mais a mesma.  A timidez evaporou...  Uma mente prodigiosa emergiu.  Participava das reuniões com perguntas inteligentes, expunha ideias próprias, argumentava com coerência e até discordava de verdades consideradas absolutas.  E, se não bastasse, assistia à missa todos os sábados, às dezenove horas.

A transformação foi além...  Os cabelos soltaram-se da presilha inseparável e caíram cacheados e volumosos sobre os ombros.  Os tons sóbrios e apagados das roupas deram lugar ao colorido de bom gosto.  A calça apertadinha mostrou o corpo esguio e cheio de curvas, até então, escondido sob vestidos largos e soltos.  O jeans tornou-se o "coringa do seu  "look".

A inteligência e a jovialidade exuberante de Marina acenderam os faróis de milha das beatas. 


As detetives "PRECISAVAM" entrar em ação.

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