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quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Era muito bom pra ser verdade - Hirtis Lazarin

 



Era muito bom pra ser verdade

Hirtis Lazari


Flutuando, ela deixou a sala do diretor da empresa,  não sabia onde estava nem pra onde ia. Perdeu-se no corredor imenso cheio de salas fechadas. Leu algumas plaquinhas afixadas às portas e nenhuma delas permitia a entrada.  Não encontrava ninguém para orientá-la.  Onde ficavam os elevadores? Passou pelo mesmo lugar várias vezes, até que encontrou uma saleta bem decorada e duas poltronas à sua espera. Sentou-se. O corpo todo tremia. Não se lembrava de já ter perdido o controle antes, mesmo nas situações mais difíceis. Agora, depois de receber a melhor notícia do ano, Laura desequilibra-se de tal maneira que é muito difícil para ela mesma acreditar.  Sempre foi uma mulher calma, sempre capaz de controlar seus sentimentos.

Respirou fundo diversas vezes até sentir-se menos ofegante e o coração bater mais compassado. Tomou dois copos de água e abriu a bolsa; tirou aquela carta, precisava ler novamente para acreditar nos últimos acontecimentos.

Percorreu os parágrafos e selecionou aquele que mais lhe interessava. Leu em voz alta mais que duas vezes. Precisava acreditar.

 “Laura, você foi selecionada para trabalhar conosco. Bem-vinda ao nosso time”.

Quatro anos na Faculdade de Economia, mais dois anos de estágio e vários cursos de aperfeiçoamento. Sentia-se preparadíssima para trabalhar no setor de recursos humanos, para o qual fora selecionada.  O salário era ótimo, principalmente num período em que a economia do país estava em crise. A taxa de juros e o dólar subindo e as vagas de emprego caindo.

Na segunda-feira seguinte, Laura chegou ao escritório confiante, carregando muitos sonhos acumulados. Depois de conhecer os colegas do escritório, a chefe do setor, Dona Divina, conduziu-a à mesa fria e sem expectativas, que a aguardava. De palavras poucas e sem nenhuma expressão, a senhora comentou baixinho sobre o terninho que Laura usava: “está conforme as regras da Empresa”.

Pegou um pequeno folheto do bolso e leu:

“A roupa tem que ser discreta e de cor neutra. Nada de bijuterias extravagantes, quando muito, permite-se uma pequena joia. Tudo para não desviar a atenção e suscitar comentários”.

Entregou-o e, antes mesmo que a moça argumentasse, afastou-se em passos apressados e pesados. Nada mais se ouvia além do ploct...ploct...

Laura entendeu que as normas eram para serem cumpridas e jamais questionadas.

Levantou os olhos e todos trabalhavam indiferentes. Organizou a mesa do seu jeito; pegou a foto da sua filha Elisa, deu-lhe um beijinho rápido e colocou-a bem a sua frente. Não demorou meio segundo e uma voz áspera pediu que a retirasse. Laura nem ousou questionar porque o tom de voz era bem autoritário e a fisionomia de quem estava ao seu lado era de gente mal-humorada. Entendeu que não era uma sugestão, era uma ordem.

 Aquela atitude a incomodou, mas não podia se dar ao luxo de gostar ou não gostar. Precisava trabalhar. O trabalho estava bastante acumulado e ela precisava dar conta do recado; e tinha certeza de que sua “expertise” na área, dispensaria intervenções da superiora.

D. Divina parava pouco em sua mesa e circulava muito pelo escritório. Seria uma necessidade de controle para sentir-se minimamente estruturada? Os gestos, alguns aspectos da sua linguagem corporal  e até seu vocabulário causavam constrangimento.

Mas a nova funcionária precisava trabalhar...

Num dia como outro qualquer da semana, Laura saiu de casa com bastante antecedência.  Esse cuidado já fazia parte da sua rotina. Uma regra imposta a si mesma para sempre chegar à Empresa antes do horário estipulado.  Atrasos não eram perdoados.  

Mas, os policiais interromperam o trânsito por conta de uma discussão entre motoristas, e a avenida ficou interditada por quase uma hora.

 E, justamente, naquela manhã, ao chegar apressada e apreensiva à porta da Empresa, um garoto aproximou-se dela, entregou-lhe uma rosa branca e saiu correndo. Confundido em meio às muitas pessoas que circulavam, gritou bem alto: — “Seja paciente, foi ele que falou”.

Laura não tinha tempo para entender aquilo. Entrou apressada e, por sorte, o elevador estava no térreo; eram vinte andares para subir. Foram os minutos mais ansiosos e, talvez, os menos desejados da sua vida. Uma hora atrasada. Sabia que as justificativas nunca eram justificáveis.

Entrou esbaforida no escritório, o corpo gelando e a mente fervendo.  Suportou o olhar preocupado dos colegas e o olhar inquisidor da chefe. Foi até a cozinha, colocou a rosa num copo plástico e enfeitou sua mesa com o símbolo da paz.

A paz não durou meia hora e a flor morreu no lixo.

Laura ouviu, fingindo atenção, as grosserias da D. Divina. Abaixou a cabeça como quem concorda com o que ouve e começou a trabalhar.

Não posso, neste momento, desistir dos meus propósitos e, eu sei, claramente, quais são. Preciso valorizar-me como profissional e não me abater com o que acontece ao meu entorno”.

Não parou para almoçar e trabalhou até terminar tudo que havia programado para aquela quinta-feira, não sem antes avisar aos familiares o motivo do atraso.

Eram dez horas da noite quando ela saiu do prédio. Entrou num barzinho, logo ali ao lado, e num só gole, ingeriu uma dose de Whisky, o melhor da casa. Tomou um táxi e se foi. Cansadíssima, mas não derrotada.

Os horários da Empresa eram rígidos, a roupa que se vestia era monitorada, a conversa entre colegas, se não fosse sobre trabalho, nem pensar. Era uma Empresa que investiu na mais alta tecnologia, mas conservadora e autoritária, com uma estrutura fortemente hierárquica. A tomada de decisões estava centralizada na líder, D. Divina. De “divina”, ela não tinha nada. Seus raios de luz estavam todos queimados. E o cheiro amargo propagava-se no ar distribuindo solidão e melancolia. Sim, todos eles trabalhavam melancólicos. Até ouviam vozes fantasmagóricas que cochichavam aos ouvidos.

Os funcionários pareciam robôs programados a cumprir ordens. A criatividade deles, treinados à inovação, era ignorada; não podia ir além das boas intenções.  

O que os prendia a este lugar?

Laura já sabia responder: “O alto salário pago, numa fase de crise do país, era o que os amarrava ali”.

A maioria das empresas estava demitindo os funcionários ou fazendo acordo de menores salários. Não era o momento de pedir as contas.  Ela tinha responsabilidades e várias pessoinhas dependiam dela.

Mas, nesse ambiente doentio, sintomas de ansiedade e perda de sono começaram a manifestar-se. Quando conseguia dormir, Dona Divina aparecia em seus pesadelos sob a forma de bruxa. E a bruxa servia-lhe uma poção venenosa que a transformava num animal deformado e fiel.

Laura acordava aos gritos.

A ansiedade virou pânico e, em pânico, comia sem parar.

Só percebeu que aumentou quilos, quando as roupas não lhe cabiam mais. Estava doente. Foi afastada do trabalho e os médicos encaminharam-na a uma clínica para tratamento. Ficou internada.

E aquele menino que entregou à Laura uma rosa branca? Ela investigou e nunca conseguiu encontrá-lo.

 

Um comentário:

  1. Essa Dona Divina era mesmo infernal, hein? Muito legal esse conto, várias figurações apropriadas, sem exagero, e ainda uma pequena dose de mistério, com o menino da rosa branca. Descrições bem Hirtinianas. Gostei, parabéns.

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