A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

FIGURAS DE LINGUAGEM

DISPOSITIVOS LITERÁRIOS

FERRAMENTAS LITERÁRIAS

sábado, 16 de janeiro de 2021

O confronto - Adelaide Dittmers

 



O confronto

Adelaide Dittmers

 

As vielas da grande favela estavam vazias.  Os moradores fecharam-se em seus barracos, assustados.  O medo pairava no ar.  Um tiroteio zumbia alto naquela tarde quente de verão.  Dois chefes, que controlavam o tráfico se enfrentavam.

Rato, cognome do maior traficante do local queria manter o seu poder diante de Dodó, um menino, que tinha sido seu aviãozinho e, agora, já um rapaz, desafiava-o para dominar o lugar.

Rato estava no alto de uma laje protegida por um muro de alvenaria.   Seus olhos eram frios, inquietos, atentos. Suas feições contraídas pelo ódio que sentia pelo antigo ajudante, distorciam seu rosto, transformando-o. Era um homem alto e forte.  Impiedoso, tirava com crueldade qualquer um que lhe entravasse o caminho.

De repente, outros tiros foram ouvidos.  A polícia subira o morro para acabar com o embate e tentar prender os traficantes. Dodó desviou sua atenção ao sentir que os policiais se aproximavam e, neste momento, Rato aproveitou para fuzilar o ex-companheiro.  Um sorriso de satisfação aflorou em seu rosto.   Era o chefe supremo daquele lugar.  Em seguida, rapidamente começou a fugir, saltando pelos barracos, desapareceu pelos becos da favela.

Pulou á frente de um barraco e com um pontapé abriu a frágil porta, entrando abruptamente na minúscula sala daquela casa pobre.

Uma mulher magra e três crianças soltaram um grito e assustados se agarraram uns aos outros, seus olhos estavam arregalados e tremiam de medo.  A criança menor, que devia ter perto de três anos desatou a chorar, um choro alto e descontrolado.

Rato gritou: ¨

— Faiz esse pirralho parar de berrar já, senão eu atiro.

 A mulher em desespero pegou o menino no colo com mãos trêmulas, abraçou-o fortemente e sem conseguir conter os soluços, cochichava ao seu ouvido, tentando tranqüilizá-lo.

O homem empurrou a mulher e o menino com força e segurou o pescoço da pobre criança.  As duas meninas, um pouco maiores, não se moviam, aterrorizadas.

A pobre mulher, com uma voz fraca, implorou:

— Não faiz mal a nóis!

— A polícia está atrás de mim e se esse filho da mãe não parar de gritar.  Vão me achar. 

— Para de berrar seu diabinho!  Gritou, com os olhos faiscando de ódio.

O menino, no entanto, não parava de chorar.  Então Rato, apertou o  pescocinho  da criança até  sua cabecinha cair  sobre o ombro da mãe.

A mulher despencou no chão da pobre morada.  As meninas se debruçaram e soluçando baixinho, abraçaram a mãe e o irmãozinho.

 Rato olhou a cena com desprezo.  Era um homem cruel demais para sentir piedade por quem quer que seja.  O silêncio era só quebrado pelo choro contido e abafado das crianças. 

Ao longe, os tiros cessaram. Parecia que nada se movia naquele lugar.  Depois de algum tempo, com muito cuidado, o homem abriu a porta e espiou para fora, olhando de um lado para outro.     Apenas um gato passou correndo e se escondeu embaixo de um carrinho de mão.

Sem olhar para trás, o criminoso saiu e correndo sumiu entre os becos da favela.

Dentro do barraco, Joselina começou a voltar a si.  As meninas choravam convulsivamente.  Aturdida, levantou-se com dificuldade e sentou-se no chão, olhou para o menino, que caíra ao seu lado, pegou-o, abraçou-o e desatou a chorar, um choro doído, revoltado, maior que ela, maior que o mundo que a rodeava e com um ódio e uma revolta jamais sentidos, grito então:

— Monstro, monstro, monstro!

Josué era um homem trabalhador, honesto e de bom coração.  Trabalhava como pedreiro em várias obras da cidade e muitas vezes ajudava os vizinhos e amigos, quando queriam melhorar alguma coisa em seus pobres barracos.  Era muito estimado e respeitado por todos que o conheciam.

Seu único objetivo era proteger sua família e fazer tudo ao seu alcance para não faltar o arroz e feijão de cada dia.  Sua companheira, Joselina, era diarista em casas de família.  Assim viviam com muita dificuldade, mas não lhes faltava o essencial.

Naquela tarde, subia o morro, depois de um longo dia de trabalho, quando viu uma aglomeração numa das ruelas da comunidade.  Todos falavam ao mesmo tempo.

— O que aconteceu? Perguntou.

Um rapazinho assustado respondeu:

— Rato e Dodó se enfrentaram e teve um monte de tiros.  Rato matou Dodó.  A polícia chegou e Rato fugiu por ali.  E apontou para a direção em que Rato tinha fugido.

— A polícia tentou caçar ele, mas não deu, completou o rapaz.

Josué estremeceu. Rato tinha ido para o lado de onde morava.  Um mau pressentimento o assaltou e com passos rápidos dirigiu-se para casa.  Odiava e temia aquele homem horroroso e cruel, que tinha matado e torturado tanta gente.  Sempre evitava passar por ele.

Quase correndo chegou ao seu casebre.  A porta estava aberta e várias pessoas estavam lá dentro.  Choros e lamentações eram ouvidos. Seu coração disparou, empalideceu e quase sem forças, com as pernas bambas, entrou. O que aconteceu, perguntou-se.

— Meu Deus! Gritou.  Lá estava Joselina sentada em uma cama, chorando copiosamente e sendo ajudada pelos vizinhos, que a abraçavam e a consolavam.  Tinham tirado o menino de seu colo e o colocado na cama. Uma das vizinhas havia levado as outras duas crianças para sua casa, afastando-as de tudo aquilo.

Josué ficou um momento paralisado e, depois, em desespero, compreendendo o acontecido, lançou-se sobre o corpinho do pequeno, gritando a sua profunda dor.

O rosto daquele bom homem estava transtornado. De repente, levantou-se e com uma voz cheia de ódio falou:

— Eu mato esse miserável!  Eu mato!

Os presentes se entreolharam.  Não podiam acreditar naquele desabafo.  Ele era muito bom para isso.  Acalmaram-no e deram-lhe algo forte para beber.

Quando a noite caiu, os amigos se juntaram.  Sabiam onde Rato costumava se esconder. Silenciosamente seguiram pelos becos, concentrados no seu objetivo.  Um deles levava uma lanterna, outros tinham armas escondidas em seus bolsos.

Chegaram a um lugar em que tinha uma pequena mata. No meio dela havia um casebre. Com muito cuidado, muito quietos aproximaram-se do esconderijo, Entreolharam-se. O lugar estava escuro.  A portinhola estava fechada e nenhum movimento era sentido dentro do lugar. Uma única janela estava entreaberta.  Postaram-se em frente a ela e com um gesto calculado e muito devagar para não serem ouvidos, abriram-na. Da escuridão Rato atirou.  O homem que havia aberto a janela foi atingido no braço. Uma rajada de tiros de ambos os lados ecoou e tudo ficou silencioso.  O homem da lanterna iluminou o interior.  Rato jazia no chão.  Os homens abriram a porta e se aproximaram.  Estava morto.  Satisfeitos, deram-se as mãos. A justiça tinha sido feita.  Tinham ajudado o amigo e evitado que ele sujasse suas mãos com o sangue daquele facínora.

No dia seguinte, uma multidão acompanhou o enterro do inocente menino.  Quando seu caixãozinho desceu a uma simples cova, a tristeza era geral.

Josué, Joselina as meninas abraçavam-se unidos pela mesma dor.  Josué olhou para os amigos, balançou a cabeça tristemente e seu olhar cansado dizia um muito obrigado.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

DEIXE AQUI UMA MENSAGEM PARA O AUTOR DESTE TEXTO - NÃO ESQUEÇA DE ASSINAR SEU COMENTÁRIO. O AUTOR AGRADECE.

A ÚLTIMA CARTA - Helio Fernando Salema

  A ÚLTIMA CARTA Helio Fernando Salema     Ainda sentada em frente ao gerente do Banco, Adélia viu, no seu celular, a mensagem de D. Mercede...