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quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Abelha rainha - Hirtis Lazarin

 

Abelha rainha

Hirtis Lazarin

 

Quem diria que aquela garotinha se transformaria numa jovem tão inconsequente?  Uma garotinha que chegou a esse mundo pra trazer esperança, alegria e vida a um casal que a esperou por quase dez anos?

Uma criança mimada que cresceu não num quarto infantil rodeada de brinquedos, mas num aposento de princesa.

Ana Vitória descobriu bem cedo que tinha superpoderes naquela família. Usou e abusou deles.

Aos quatro anos, quis muito fazer balé,  igualzinho à menina do desenho animado.  Mas não entendia que bailarina não combina com pratos de macarronada acompanhados de brigadeiro.  A sapatilha de ponta sofria cada vez que era obrigada a acomodar aqueles pesinhos gorduchos. Vi muitas e muitas delas descartadas no cesto de lixo, boca aberta pedindo socorro. A desistência só aconteceu depois de uma queda roliça no “PLIE”.

Na adolescência foi a vez do piano.  “Quero um piano.   A Júlia tem piano. Adoro o som do piano. Quero também tocar piano”.   A ladainha  durou alguns meses,  até os pais conseguirem a quantia necessária.  Professores?  Vários.  Impossível tolerar tanto capricho e nenhum talento.

Depois veio a pintura e outras artes...

Eu me angustio quando me lembro daquele corpinho jovem e gracioso carregando uma menina que não sabia ouvir Não;  que esperneia  e dá vexame se contrariada. Pais batendo a cabeça nas paredes e cheios de culpa  quando o erro foi só amar demais.

Ana Vitória não se dava por vencida. A mente criativa e alerta, um farol iluminando o mar bravio, criou um perfil falso nas redes sociais, uma rede de intrigas e fofocas que se tornou a brincadeira mais gostosa de jogar. Misturava verdades e mentiras, um jogo de xadrez onde movimentava as peças ao seu bel prazer. Criar conflitos, brigas, inimizades era muito divertido.

Além de embaralhar a vida dos amigos e colegas, mirava também a vida dos vizinhos. Da janela do seu quarto de frente pra rua e protegida pelas cortinas, ela via, ouvia e arquitetava planos. Bisbilhotar era o verbo que movia suas ações.

Era uma noite chuvosa. Ela abriu parte da janela para o último cigarro. A rua arborizada cobria-se de folhas soltas e levadas pela ventania intensa e passageira. Um carro com faróis desligados apontou na esquina. Deslizava silenciosa e morosamente. Parecia à procura de algo sem chamar a atenção.  Ana Vitória apagou a luz e o cigarro. Escondeu-se atrás da cortina. Não perderia essa oportunidade de ouro, uma boa história de suspense pra espalhar. Do seu jeito, é claro.

O carro parou onde havia sacos de lixo empilhados à espera do coletor que viria só ao amanhecer.  O ouvido  aguçado prestou atenção no “tec tec” da maçaneta que se abria. O motorista olhou pra todos os lados, rua vazia e silenciosa;   abriu a porta e desceu.  Conferiu novamente a solidão,   tirou uma mala grande do banco de trás e escondeu-a  entre os sacos de lixo acumulado.

Ao retornar ao veículo, relâmpagos simultâneos fotografaram, detalhadamente, o rosto do rapaz.  Ana sufoca um grito antes que ele denuncie sua presença ou acorde os pais. Ela conhece o rapaz que, sorrateiramente, entra no carro e desaparece na escuridão. Aquilo não lhe cheirava bem. Ali rolava um mistério.

Ela reacendeu o cigarro não fumado. Mil pensamentos... O primeiro foi sair e abrir a mala. Caminhou até a porta da sala e abriu-a cuidadosamente. Já descia as escadas quando desistiu. Ainda bem que o bom senso   nessa hora venceu a curiosidade. Tentou dormir, mas como?  Pegou o telefone e ligou ao serviço policial e fez denúncia anônima. Sua ansiedade só diminuiu quando dois carros policiais estacionaram em frente ao endereço indicado.

Sem dificuldade, encontraram a mala e arrastaram-na   até o poste de luz mais próximo.  O zíper estava quebrado.  O couro resistente demorou a ceder.   Foi um tempo agonizante até que conseguiram abri-la.  Dentro estava o corpo desmembrado de uma mulher.  Só foi retirado do local quando o sol já ia alto e com autorização da polícia técnica.

Durante as investigações, muitos moradores da rua foram convocados pra depoimento, inclusive Ana Vitoria. Um “conflitaço” atormentava-a. A fama de fofoqueira, de inventar e distorcer fatos e brincar com a vida das pessoas conspirava contra ela. Não contou a ninguém o que viu. Essa decisão custou-lhe noites e dias de tortura. A consciência pesava e a razão gritava: “Não conte nada”.

Numa dessas noites em que não conseguia pregar os olhos, a perturbação era tanta que não sabia mais o que fazer. Acendeu a luz, tomou um calmante e, displicentemente, buscou um livro na estante. Qualquer um serviria.  Um deles veio ao chão aberto numa página qualquer.

A moça nem se deu ao trabalho de ler o índice e começou a ler o texto que se apresentou espontaneamente. E, ali, num canto “ESCONDIDO”,  estava escrito: “ Síndrome de Abelha – tem gente que pensa que é rainha, mas é apenas um inseto”.

Ela leu e releu essa frase milhões de vezes.  Copiou-a num cartaz em letras garrafais e colou-o em seu quarto.

Hoje, é na terapia intensiva que Maria Vitória busca forças pra se libertar do prazer que o vício da fofoca lhe proporciona e da sensação de empoderamento que a faz sentir superior aos outros.

E, quem sabe, esclarecer o assassinato da mala, até então não esclarecido.


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