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terça-feira, 21 de setembro de 2021

O Visionário - Adelaide Dittmers

 


O Visionário

Adelaide Dittmers

 

A lua banhava as pedras da praça com sua luz prateada.  O silêncio espalhava-se pela pequena cidade adormecida.  Ao longe, ouvia-se o latido de um cão.

Atrás de grossa grade de ferro, um homem olhava a lua, extasiado.  Os grandes e doces olhos castanhos refletiam a inquietação, que lhe pesavam na alma.

Estava preso há um ano por ter se defendido de um soldado, que o agredira por ele expor ideias inaceitáveis na época.  Seu crime: acreditar que um dia o homem chegaria à lua.

Era considerado louco.  O clero naqueles tempos obscuros o considerava herege, mas ele não tinha medo de dizer o que pensava.  O universo o atraia como um imã.  Havia muitos mistérios a descobrir no mundo, refletia.

Naquela noite iluminada pela lua cheia, o homem não conseguia tirar os olhos do pequeno satélite.

Dentro da cela, três homens conversavam e um deles dirigiu-se ao

— O que você está olhando, Tomé?

— A lua! É maravilhosa!

— Olhe para coisas mais perto, como sair desta infernal prisão.

— Gosto de pensar que um dia o homem chegará à lua!  Disse com firmeza.

Os homens caíram na gargalhada e um deles exclamou:

— Homem, por isso está preso e o chamam de louco.  Pare de dizer asneiras.

Tomé ignorou as risadas. Estava acostumado com as chacotas de que era alvo por suas crenças.  Não se importava de ser considerado maluco.  Achava que as pessoas não enxergavam além da ponta do nariz.

Voltou-se para a janela e os pensamentos voaram para sua difícil vida.  Desde menino perguntava-se sobre tudo o que o rodeava, querendo compreender como as coisas funcionavam.  Os pais não sabiam como lidar com aquele filho esquisito e curioso, que os enchiam de perguntas.  Eram modestos lavradores, analfabetos e supersticiosos.  Tinham um pequeno pedaço de terra, onde plantavam mandioca e a curiosidade do filho os deixava muito preocupados: por que o tempo influenciava na colheita?  Por que as frutas só apareciam em determinadas épocas?  Ao ver os bois puxarem o arado, dizia que deveria ter outra maneira de se fazer isso sem usar os pobres animais.

Cresceu admirando o céu estrelado.  Sentava-se observando o firmamento infinito, que se perdia de vista.  Sentia-se minúsculo diante daquela vastidão.  Será que havia outros mundos iguais ao que vivia? Haveria pessoas naqueles mundos? Haveria rios e animais?

Foi expulso da catequese por expor suas dúvidas.  O pai então o proibiu de fazer perguntas, que considerava estúpidas.  Tomé tornou-se calado e taciturno.

Muito jovem, perdeu os pais.  Continuou a cuidar do pedaço de terra, que lhe dava o sustento, mas não conseguia estancar da alma a necessidade de expressar a torrente de suposições, que tinha dentro de si.

Imerso em suas recordações viu a aurora surgir com os tons rosados e alaranjados, que anunciam o nascer do sol.  O sono apoderou-se dele.  Como um sonâmbulo, foi trôpego até o catre e adormeceu.

Acordou sobressaltado sacudido por um guarda, que o chamava:

— Acorda Tomé!  Acorda!

— O que aconteceu? Perguntou ainda atordoado e confuso.

— Venha: o juiz autorizou sua liberdade!

Sacudindo a cabeça para ligar os fios apagados pelo sono, olhou para os companheiros de cela.  Um deles gritou:

— Vai rapaz e vê se tem juízo e não anda por aí dizendo bobagens.

Tomé derramou um olhar triste neles.  Como queriam estar em seu lugar. Podiam ser ladrões ou assassinos, mas eram humanos como ele.  Aproximou-se e despediu-se com um forte aperto de mãos.

Virou-se e seguiu o guarda.  Quando saiu, o sol já aquecia o lugar com raios dourados.  Uma carroça puxada por um burro passou, fazendo barulho ao se chocar com as pedras irregulares da praça.  Uma negra com uma cesta na cabeça também passou por ele requebrando as fartas ancas.

¨Pobre mulher¨ pensou observando-a.  Uma mercadoria nas mãos de homens ignorantes e brutos.

Estava voltando à vida, mas a mordaça, que abafava sua voz não o deixava ser completamente livre.  Era refém daquilo que enxergava ao longe, tanto quanto aquela escrava negra era por não se pertencer.

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