A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

FIGURAS DE LINGUAGEM

DISPOSITIVOS LITERÁRIOS

FERRAMENTAS LITERÁRIAS

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Foi só um descuido - Hirtis Lazarin

 



Foi só um descuido

Hirtis Lazarin     

 

A primavera bateu mansamente na porta da mansão como faz todos os dias.  Desta vez não conseguiu entrar.

Na cozinha, o casal toma café.  Hoje está diferente.  Cada um senta numa ponta da mesa comprida.  Não se olham nem se falam.   Abatida e olheiras profundas mostram que Christina passou a noite acordada.  Roberto, vez ou outra, disfarçadamente, lança lhe um olhar enfurecido e cheio de azedume.  Sai apressado e bate a porta com raiva.

Estão casados há quase trinta anos.  Dois filhos: Lucas, engenheiro e casado, mora no exterior; Vitor estuda Direito.

Um casal esforçado e bem-sucedido.  Ele, administrador de multinacional; ela psicóloga e orientadora vocacional.

Colecionam amigos e não lhe faltam motivos para comemorar a vida.  A casa espaçosa está sempre movimentada e aberta a todos.

 Naquele dia, Fernando voltou do trabalho bem mais tarde que o habitual.  Estacionou na garagem por volta das vinte e duas horas.  A casa estava no escuro.  Era quinta-feira e toda quinta era dia de um jantarzinho especial.   A comida era repartida na panela; os problemas, divididos, as soluções, somadas e o carinho multiplicado.

Roberto percorreu o corredor comprido e estreito, paralelo à construção, até alcançar a cozinha.  Porta aberta.  Acendeu as luzes.  Sobre a mesa da cozinha, o caderno de receitas especiais, aberto às páginas quarenta e cinco, comia farinha de um saco rasgado; no chão, ovos quebrados viraram lama amarela e escorregadia.

Na sala de jantar, ao pé da escada de mármore em caracol e que dá acesso ao piso superior, Christina está caída, rosto voltado para cima.  Um fio grosso de sangue escorreu da cabeça e o fluxo interrompeu-se no canto esquerdo dos lábios volumosos.  

Roberto desespera-se.  Agacha e tenta reanimá-la.  Infelizmente, não há sinal vital.  O corpo gélido diz que não há mais nada a fazer.

Um mal súbito e Christina despencou escada abaixo?  Desequilibrou-se no sapato de salto altíssimo?

O laudo expedido pelo IML indica morte causada por forte golpe na cabeça com traumatismo craniano.

MISTÉRIO!  Não havia sinais de arrombamento, nada fora levado.  

Ela fora morta na cozinha e arrastada.  O luminol indicava rastro de sangue até as escadas. 

Enquanto pessoas eram convocadas a depor, a casa foi liberada.  O viúvo demorou semanas para enfrentar a nova realidade.

A governanta Amália, inconformada com tamanha brutalidade, foi autorizada a encaixotar os pertences de Christina para doação.  Foi muito estressante sentir o perfume impregnado nas roupas finas da patroa, desfazer os armários rigorosamente organizados, tantos sapatos novos de salto alto...  Sua presença, seus conselhos acompanhados de reprimendas suaves fariam muita falta.  Trabalhava ali desde que os meninos eram pequenos.

Abrir aquele punhado de bolsas...  Numa pequena e antiga, encontrou a agenda do ano. Sem pensar abriu.   Havia anotações até a véspera do assassinato, dezenove de setembro.  A página estava toda preenchida. Muitos rabiscos e borrões de lágrimas.  Leu de cabo a rabo diversas vezes.  Chorou ajoelhada e rezou inconsolável.

"O relógio marca duas horas da manhã.  Reuni força e coragem.  Contei tudo ao Fernando.  Guardo esse segredo há mais de vinte anos.  Dezembro estava chegando e a formatura do Vítor também.  Eles tinham o direito de saber a verdade.  A mentira queimava-me.  Não suportei mais o peso desse fardo.  Olhei firme nos seus olhos, contei-lhe tudo.  Contei-lhe que o menino é filho de Afonso, meu primeiro namorado.  Encontramo-nos por acaso numa loja masculina.   Roberto viajava a trabalho e ficaria ausente quase um mês.

 Encontros amorosos, ardentes e rápidos, foram suficientes para eu engravidar.

A boca de Fernando espumava de raiva.  Ouvi uma ladainha de palavrões e ofensas.  Eu merecia...

Ergueu os braços, cerrou os punhos para me agredir, mas desistiu no caminho.  Gritou que não valia a pena.  Mas se vingaria.

Trancou-se no quarto de visitas e deu muitos murros nos móveis".

Uma oportunidade conduz diretamente à outra; assim como o risco leva a outro risco; a vida, à vida; a morte, à morte.

Amália sabia exatamente o que tinha que fazer...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

DEIXE AQUI UMA MENSAGEM PARA O AUTOR DESTE TEXTO - NÃO ESQUEÇA DE ASSINAR SEU COMENTÁRIO. O AUTOR AGRADECE.

A ÚLTIMA CARTA - Helio Fernando Salema

  A ÚLTIMA CARTA Helio Fernando Salema     Ainda sentada em frente ao gerente do Banco, Adélia viu, no seu celular, a mensagem de D. Mercede...