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quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Parece, mas não é - Hirtis Lazarin

 


Parece, mas não é

Hirtis Lazarin

 

Ele tinha mais de oitenta anos. Fumou sempre e agora os pulmões cobravam um preço bem caro por terem sido tão prejudicados. Os acessos de tosse não eram tão frequentes, mas quando vinham, os balões de oxigênio eram acionados. Seu Jerônimo não reclamava, pois sabia que era o único culpado pela falta de saúde. Os conselhos da esposa que o amava tanto, nunca foram levados a sério. “Pratico esportes”, era sua desculpa de sempre. Esses momentos de reflexão sobre a vida eram difíceis e arrancavam-lhe um punhado de lágrimas escondidas.

 Quando decidia sair do quarto, eram os chinelos fofos que arrastavam suas pernas doloridas.  O cantinho preferido da casa era a varanda, projetada por ele. Sua familiaridade e seu amor pelas plantas criaram um espaço colorido e cheio de vida. Um contraste para quem sabia que não lhe restava muito tempo pela frente. Os pássaros vinham e as pessoas que circulavam pela calçada também, atraídas pela beleza e pelo perfume que cantarolava suavemente. Era o momento em que Seu Jerônimo comunicava-se com o mundo exterior e sentia-se feliz.

Eu o conheci quando me mudei para o bairro e fazia uma caminhada. As casas eram afastadas uma das outras e pouco movimento nas ruas. Na verdade, a única pessoa que encontrei, disponível pra bater um papo, foi esse senhor sentado na varanda.  

Um cumprimento de boa tarde e mais meia dúzia de palavras foram suficientes para começar uma grande amizade. A gente combinava e, toda semana, lá estava eu com meu amigo. E para completar a empatia, tínhamos a mesma profissão, engenheiro civil.

Ele era uma pessoa inteligente e de raciocínio rápido. Tinha uma linda história de vida. Ensinou-me que: “Ser homem não é ser pura natureza; ser homem é saber que o mundo não nos foi dado de presente, mas que precisamos criá-lo”. Eu, bem mais jovem, aproveitava cada segundo em sua companhia.

Mas Seu Jerônimo tinha também um lado bem engraçado e sabia contar suas peripécias, nos mínimos detalhes. Ouvi muitas e rimos juntos pra valer. Selecionei uma das histórias, a mais “sui generis” e vou contar a vocês.

Recém-formado, ele foi morar em KISSIMMEE, na Flórida. Uma cidade pequena, com expansão na área de construção. Foi uma ótima escolha:   muitas opções de trabalho e continuação dos estudos.

A casa, ao lado da sua, foi ocupada por novos moradores. Um casal jovem e duas crianças. Comunicativo como a maioria dos brasileiros, Seu Jerônimo procurou os vizinhos para um relacionamento cordial. E, prontamente, foi correspondido. Nos finais de semana, ensinou-os a apreciar um bom churrasco e até aprendeu a fazer a famosa “apple pie”. Foram quase dois anos nessa convivência harmoniosa.

De um momento para o outro, e por conta de um desentendimento, aparentemente, bobo, o casal afastou-se dele.  Nos finais de semana, viajavam e, quando se encontravam na rua, abaixavam a cabeça e, arredios, entravam rapidamente no carro ou abriam o portão de casa, ignorando-o.

Seu Jerônimo ligou várias vezes, mas o número do telefone já não era mais o mesmo. Tentou interceptá-los na frente de casa e não teve sucesso. Era melhor fingir que aceitava aquela situação.

Mas não se conformava. Uma amizade verdadeira não termina assim. Não aceitava aquele afastamento sem uma conversa esclarecedora. A raiva tomou conta.  Nasceu, então, naquele momento, um detetive. Um novo Sherlock Holmes foi empossado e a investigação começou.

Uma vez por semana, geralmente às segundas-feiras, chegava um carro sem placa.  Homens vestidos de negro permaneciam na casa ao lado, durante mais ou menos, duas horas. Os demais dias da semana corriam normalmente até o final de semana, quando a família desaparecia. Os muros foram erguidos e câmeras instaladas ao redor da casa. As janelas permaneciam quase sempre fechadas.  A família estava fugindo? Que segredos guardavam?

A década era de 80, período em que os jornais e a televisão noticiavam, incessantemente, os perigos da guerra fria. Um conflito político-ideológico travado entre os Estados Unidos e a Rússia, um alinhado ao capitalismo e o outro aliado ao comunismo. Cada um tentava provar sua superioridade bélica, espacial e econômica.

A população mundial passou a entender o que significava o adjetivo “fria”. Um conjunto de práticas no campo da espionagem, das disputas diplomáticas e ameaças. A palavra “espião” começou a fazer parte do vocabulário dos americanos.

E Jerônimo colocou na cabeça que morava ao lado de um espião, a serviço da KGB russa.

Apesar de trabalhar menos e espionar mais, não conseguia apurar nada. Se conseguisse provas e denunciasse o casal, com certeza, levaria o título de herói. E a palavra “herói” vibrava!

Postou cartas anônimas ao vizinho e nenhuma reação. Ofereceu dinheiro à moça que trabalhava na casa e ela sempre afirmou que lá não havia nada suspeito. Dobrou a quantia e nada. A única coisa diferente é que os vizinhos ouviam música com muito mais frequência e num volume mais alto que o amigável. “Com certeza é para esconder sons estranhos. Talvez bombas...”

Remexendo na caixa de correspondências do casal, Jerônimo encontrou uma carta cujo remetente era a KGB. Num primeiro momento, acreditou que o cerco se fechara. Encontrou a prova que precisava. Depois, pensando melhor: “um descuido da espionagem oficial russa? Improvável”.

 Mas a empolgação era tão grande, que ele não conseguiu suportar que estava enganado. Procurou a polícia americana, fez a denúncia e entregou a prova. Missão cumprida. Agora era só controlar a ansiedade.

Semanas se passaram até que Jerônimo recebeu um grupo de policiais e uma notícia arrasadora: “A senhora e o senhor Smith são inocentes. Não há nada que desaprove o comportamento deles. São americanos cumpridores dos seus deveres”.

— E a carta da KGB”?

— Não existe carta nenhuma da KGB. Você não sabe ler. A carta é sobre o lançamento, aqui nos Estados Unidos, de uma banda brasileira, a “KLB”, “KLB”, ouviu?  Seus vizinhos são empresários e, há algum tempo têm sido vigiados por você. Temos aqui vários boletins registrados por eles.

Jerônimo desmaiou. O fingimento foi tão bem fingido que convenceu os policiais e ele só voltou a si quando a ambulância chegou ao hospital.

Recebeu alta e no dia seguinte, juntou roupas, objetos pessoais, passou na empresa em que trabalhava e se demitiu.  Desapareceu do mapa, antes que a notícia se espalhasse pela cidade pequena, onde a maioria das pessoas se conhecia. Ele não suportaria ver seu nome, em letras garrafais preenchendo manchetes nos jornais ou então aparecer na T.V.  e virar chacota na boca dos jornalistas.

Eu e o Seu Jerônimo caímos numa risada bem debochada e histérica.

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