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terça-feira, 30 de março de 2021

A AFLIÇÃO DE LUCIANA - Leon Vagliengo

 

ÉDOUARD MANET


A AFLIÇÃO DE LUCIANA

Leon Vagliengo

 

Um conto elaborado com a colaboração da pandemia, da arte e do sonho.

 

Luciana estava mesmo muito cansada. Passara o dia inteiro, desde cedo, a estudar pelo Google as imagens de quadros famosos e a história de seus autores, aceitando a sugestão que lhe fizera a sua prima, quando lhe perguntou sobre um bom passatempo para enfrentar o isolamento imposto pela perigosa pandemia que a todos ameaça.

Como mora sozinha desde que enviuvou, os novos tempos de isolamento estavam sendo para ela muito entediantes, e já começava a sentir que lhe crescia uma sensação de muita tristeza. Algumas vezes ouvira falar em depressão e temia que essa tristeza se convertesse naquela grave doença. Foi isso que comentou ao telefone com sua prima e motivou a sugestão dela recebida.

Animada com a nova ideia, logo cedo ligou o computador e acessou o Google, procurando por alguns nomes de pintores, de que tinha apenas vago conhecimento, pois nunca se interessara por pinturas ou qualquer forma de arte. Seria uma nova experiência.

Aos poucos, nos sites consultados, foram surgindo novos nomes de pintores e imagens dos seus quadros. Ao expandi-las na tela de seu computador, Luciana foi-se encantando com a beleza daqueles quadros, pelas cores, temas e detalhes.

Ainda na primeira abordagem, um quadro do pintor francês Édouard Manet, O Almoço na Relva, a impressionou muito pela sensação estranha de desproteção e insegurança que lhe causou uma certa identificação com a circunstância retratada.

Depois, à medida em que prosseguia na pesquisa, os comentários que ia encontrando no Google auxiliaram a sua percepção e o entendimento do que observava, e Luciana foi descobrindo detalhes impressionantes em todos os quadros que examinou. Estudar a arte era uma atividade cultural, um entretenimento muito melhor, mais variado, enriquecedor e interessante do que resolver as palavras cruzadas e o Sudoku, ou assistir as notícias repetitivas da televisão.

Muito empolgada, naquele dia Luciana fez apenas um breve almoço e logo voltou às pinturas. Aos poucos foi-se amplificando a sua pesquisa, pois as informações que encontrava iam formando para ela uma estrutura do conhecimento sobre a arte. Haveria muito a estudar. A história dos pintores, as várias escolas seguidas, e outras abordagens e formas de manifestação da arte, como as representadas pela escultura e pela música.

O interesse foi tanto que passou praticamente todo o dia naquela nova atividade, sem se dar conta do passar das horas. Naquela situação de isolamento devido à pandemia não havia mesmo nada para interrompê-la, e nem mesmo recebeu nenhum telefonema naquele dia.

À noite estava faminta e exausta, mas feliz com a nova perspectiva que para ela se abriu. Avaliou que teria que moderar o seu interesse, havia mesmo exagerado. Após um belo banho, jantou fartamente, o que não fazia há algum tempo. Viu ainda o jornal e uma novela na televisão e foi deitar-se, esperando um belo descanso.

Não foi isso o que aconteceu.

Em breve Luciana estava sonhando, um sonho agitado, e em seu sonho foram se sucedendo, de maneira rápida e confusa, imagens de muitas pinturas, a cena que mais a impressionou, artistas com suas tintas e pincéis em plena criação, e um, em especial, que a olhava com muita insistência. Memórias de um tempo passado, distante, foram então substituindo aquele cenário: ela estava com um belo vestido de baile, era a sua formatura do curso colegial. Ao seu redor estavam vários rapazes muito bem trajados em seus ternos de formatura, seus colegas também formandos, todos com bigode fininho e cabelos pretos, mas não conseguia identificar nenhum deles. Começou uma música suave, ela foi tirada para dançar por um dos colegas. Deslizou pelo salão nos braços de seu par num momento de rara felicidade, logo interrompido, porém, pela desesperadora insegurança que a invadiu ao descobrir que agora estava completamente nua e exposta, em pleno salão de baile, mas continuava a dançar, cercada por tantas pessoas; elas, porém, não pareciam estranhar a sua nudez.

Aquela situação insólita provocou uma sensação de vulnerabilidade e insegurança tão forte em Luciana que o sono não resistiu. Acordou sobressaltada, dando-se conta de que tivera um pesadelo, como sempre ocorria quando exagerava ao jantar.

Aos poucos foi passando a aflição e também a taquicardia provocada pelo agitado sonho. A respiração voltou ao compasso normal, e então ela sentiu que, desta vez, valera a pena.

Que lindo pesadelo!

Agora mais calma, Luciana reconheceu o artista que tanto a observara em seu sonho e ficou muito agradecida a ele, Édouard Manet, pelo seu quadro Almoço na Relva, que lhe proporcionara tão boas lembranças, curtidas com deliciosa aflição.

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