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quarta-feira, 2 de abril de 2025

DILÚVIO - PEDRO HENRIQUE

 



DILÚVIO

PEDRO HENRIQUE

 

     O som do trem rompe o espaço denunciando que ele está perto. Caetano, então sente sua espinha dorsal arrepiar e geme como se pregos penetrassem seu peito quando vê a bomba prestes a explodir pois sabe que o metrô carrega sua esposa com seu filho no ventre.


...



     O alarme incômodo soa pela segunda vez. Caetano rola para a direita recusando-se a levantar. Não quer, ainda, encarar o mundo lá fora. No entanto, na terceira vez ele se vislumbra coagido a tomar uma decisão: ou falta no trabalho ou levanta-se de uma vez por todas. Sendo assim, decide se pôr de pé. 

     Ele desce da cama e se dirige ao lado onde sua esposa está. Aproxima-se silenciosamente pois não quer tirá-la do hiato entre a realidade e o prazer de se estar no vácuo da vida.

    Quando chega a uma distância satisfatória, abaixa-se e sente um prazer inenarrável ao fazer com que seus lábios se encontrem com os dela. Em seguida, passa, calmamente, a mão em sua barriga sentindo um singelo e terno chute de seu bebê.

     Nesse momento, um ínfimo sorriso surge em seu rosto, revelando-te que a vida tem seus paraísos.

    Logo, parte para sua rotina matinal e quando se dá por si está em seu escritório na delegacia.

     A vida de policial nem sempre é fácil. Porém, é a única coisa no mundo que faz a alma de Caetano vibrar genuinamente.

     Desde pequeno seu sonho era levar a vida que hoje tem o prazer de viver. Lembra, quando pode, com saudosa lembrança, do dia que sua professora da turma de alfabetização reuniu todos os alunos em círculo e a cada um empreendeu a pergunta “O que você quer ser quando crescer?”

     Para o azar de Caetano, ele foi o último da roda, portanto teve que conter a ferro e fogo à ansiedade, que incontrolável, peregrinava por suas entranhas.

     Quando a professora, finalmente, lhe fez o questionamento, não teve dúvida: “policial”. Esse era o seu sonho e objeto de maior desejo. A coisa pela qual passara os anos seguintes, sobretudo depois do colegial, a se dedicar a ser.

     Muitos se questionavam o porquê aquele jovem rapaz queria tanto isso, mal sabiam esses que por trás da neblina do bosque existem viscerais mistérios e que por haver a muralha da distância, à nascente não lhes é descortinada.

     Não entenderam? Vou explicar. O pai, a outrora também fora policial. Morreu em uma operação. Porém peço ao leitor calma, a ti em breve será dado a verdade.

    No entanto, saibam que hoje quando, de supetão, uma reclamação pensa em sair da boca de Caetano, ele ceifa-a. Recusa-se a falar mal de tudo que conquistara, até porque só ele e a família sabem da dificuldade que tiveram para que pudesse prestar à prova. Então, reclamar da vida que tem: jamais.

     Porém, todavia, entretanto, ele foi forjado de carne e osso. E a carne, como o próprio Cristo disse, é fraca. E sim, há dias que quer jogar tudo para o alto e correr.

     Hoje, por exemplo, é um desses dias. Estava degustando da paz de ficar quieto quando foi convocado para ir à casa de um dos criminosos mais perigosos da cidade.

     A princípio quando ouviu o nome do sujeito as pernas bambearam, pois lembrou-se do pai e do dia que o levara em uma caixa preta para ser envolvido pela terra por culpa desse indivíduo.

     Foram oito balas que ele utilizou para exterminar o homem que, quando pequeno, Caetano chamava de herói.

     Sendo assim, sentiu medo de ir. Medo não do que o sujeito pudesse fazer contra sua vida. Seu temor era em relação a si.

    Sabia que não conseguiria conter a vingança. Assim que seus olhos cruzassem com os dele, não haveria volta. Socaria seu rosto até sentir o sangue quente escorrer. 

     “Não vou”. Disse ao superior, que por sua vez, possuído de toda incompreensão, afirmou que aquilo era trabalho e que se ele não sabia fazer a dicotomia de vida profissional e vida pessoal era para ir embora.

     Caetano que não se intimida diante das más respostas, já se articula para dizer tudo e mais um pouco ao chefe, todavia, uma recente e delicada memória corta sua raiva e lhe diz para se acalmar.

     Essa lembrança pertence a hora que se levantara, mesmo sem vontade, e sentiu seu anjinho se movimentando na barriga daquela que desposara há dez anos.

     Sim, leitores, acredito que agora entendam o porquê desse bebê ser tão precioso. É o oitavo de muitas desilusões e lágrimas.

     Entretanto, não falemos do trauma. Pensemos no hoje, porque o hoje é alegre, ou ao menos era antes de seu superior o obrigar a ir com ele e a equipe efetuar a prisão daquele que lhe mostrou que o mundo não passa de um altar onde a dor e a morte são glorificadas.

     Além disso, há mais raiva ainda quando recorda que o infeliz foi inocentado mesmo com todas as provas apontando que ele era o culpado. Mas soube que no final das contas o medo reinou no coração daqueles que se proclamam agentes defensores da justiça. Quem seria o corajoso de mandar para prisão Delci Bezerra?

     Nem o diabo ousa o assombrar. De todas as histórias mais macabras de tortura, só para o leitor compreender, encontra-se a de quando a polícia construiu uma operação para o capturar, o porém da narrativa é que eles não tinham provas, como a família de Caetano também não teve.

     Sobre a história, saibam que está relacionada ao irmão do criminoso, que para seu azar, animou-se em contribuir com a polícia. Síntese dos fatos? Bezerra conseguiu fugir e passando-se três meses após o conflito o irmão desapareceu, foi encontrado em uma lata de lixo com a língua arrancada, contudo o mais curioso é que acharam pequenos cacos de vidro perfurando sua boca, garganta e estômago.

     Acredito que o leitor possa inferir o que ocorreu, não é mesmo?

     Portanto, todos, da criança que grita enlouquecida na praça ao idoso que aguarda a passagem do tempo na cadeira em frente à sua casa, sentem o coração ganhar elevada aceleração em seus batimentos ao ouvir o nome “Delci Bezerra.” Mas voltemos os desdobramentos disso que vos escrevo.

     Caetano desce do carro e segue todo o protocolo posto pelo delegado. Os policiais entram na casa e muito tiro é ouvido pelas sofridas almas que ao redor residem.

     Oito dos homens que trabalhavam para o criminoso, foram abatidos. Agora, só resta achá-lo. No entanto, os policiais perdem a esperança após trinta minutos de procura e nada encontrarem.

     Até que, de cima da casa, uma figura ganha forma e corre, e como no passado, Caetano olha nos olhos dele como olhou no dia do julgamento e sente como naquela tarde o cobertor da fúria, da raiva e da perda o cobrir por completo, tampando tudo, sobretudo a visão.

   Ele corre. Segue Delci, que salta para o telhado do barraco ao lado. Um tiro ecoa de sua arma. Outro, da do bandido. Os colegas de trabalho de Caetano vão em sua direção, é preciso sair da casa e na mesma hora que seu pé joga o portão no chão, ele aponta a pistola e o meliante não tem para onde ir.

     Os policiais que ficaram do lado de fora o cercaram também, portanto ele coloca às mãos na cabeça e olha curioso para aquele policial que tem seus glóbulos oculares tomados pelo oceano do passado ao lhe encarar.

     Caetano treme, é agora ou nunca, sabe que seus amigos não se importariam. Quem tem estima por um indivíduo que personifica o lixo?

     Porém, mais uma vez ela veio... Calma, serena e pulcra. Podia sentir como sentiu pela manhã os pezinhos dele. Não queria que o filho olhasse e soubesse que o pai é um assassino, com isso as chamas da raiva foram apagadas pelo acalento daquele que no mundo não soou seu choro ainda.

     Com isso, abaixou a arma e nesse momento uma bala passou por ele e foi em direção a Delci, logo em seguida outra, depois outra e outra.

     Caetano, então, olha para trás, assustado, e sente as mãos do delegado tocar seu ombro e sua boca dizer: “Pelo seu pai.”

     Os demais policiais pegam o corpo e o arrastam para uma valeta que há ali perto. Enquanto isso, nosso protagonista sente sua alma orbitar seu corpo pois o que acabara de ver é um evento que se recusa a acreditar ter se concretizado.

     O que ele faz? Segue um passo de cada vez. Os colegas o colocam dentro do carro, lhe dão água e afirmam que não precisa se preocupar que tudo está resolvido. Aproveitam, ainda, o ensejo e escarneciam um pouco de como foi cômico ver Delci “cair como carne podre no chão.”

     Uma semana tendo se passado e o caso repercutindo na mídia, porque um dos traficantes mais procurados do município foi encontrado morto, Caetano recebe um envelope no trabalho e ao lê-lo vai, imediatamente, ao metrô.

     Quando chega, a bomba estava nos últimos segundos, tentou, todavia só teve tempo de ver o sorriso efêmero e singelo de sua esposa. Nesse momento, sentiu todo seu interior se romper como uma ponte que não suporta mais se manter de pé e ao olhar os fragmentos do local voando para diversos lados a existência, como no passado, se descosturou por completo.

    Hoje, ele só deseja a morte. Nada mais o toca. É como um lutador veterano, vencido pelo tempo, implorando piedade, mas sem resposta.

     Sua mesa é somente posta pelos episódios que dão ao corpo o desprazer da vida. Sua cama não suporta mais as fezes e o chuveiro desconhece seu nome. Se tornou vácuo, se tornou mudo à existência.

     E sempre quando a natureza brada pelo recarregamento e seus olhos são subjugados a se fecharem, lembra dos pezinhos dele se locomovendo, dessa forma, é impossível controlar as solitárias lágrimas que pelo seu rosto passeiam pois tudo lhe foi roubado pelos sentimentos que cultivara por toda vida, no entanto moravam nos olhos do filho de Delci.

 


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