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quarta-feira, 4 de junho de 2025

IDEIAS DE CANÁRIO - MACHADO DE ASSIS - COMENTÁRIO DE HIRTIS LAZARIN

 

 


Comentário sobre o conto de Machado de Assis:  “Ideias de um Canário”

HIRTIS LAZARIN

 

Eu li o comentário da Sra. Helga Marte Carvalho Pacheco e achei bem interessante. Fiz um resumo e apresento-o abaixo:

1 – No início do texto, o canário se refere ao seu dono como sendo seu escravo e pensa, egoisticamente, que tudo que acontece é por causa dele. O canário se vê como o “centro do universo”.


      Esse é o pensamento próprio de uma criança

 

– O personagem Macedo (ornitólogo) compra a ave na loja Belchior, leva para casa e o coloca numa gaiola maior (universo maior).


                   É o período da adolescência

 

        Há uma troca de informações e conhecimento entre os dois. Macedo trata-o como sua criação, como sua obra-prima. Pretende ficar famoso.  Todo

seu tempo é consumido pelo canário.  Macedo adoece. A ave sente-se se segura e quer aumentar seu horizonte (acha que já absorveu o conhecimento necessário.


                                É a juventude

 

3 – O canário foge da gaiola:

       - sobe no telhado

       - sobe numa árvore grande próxima

       - voa até uma chácara

 

4 – Encontro dos dois:

 

Canário – sente carinho e ao mesmo tempo                   desdém pois:

                    -  não precisa mais do professor

                    -  ele é seu próprio professor

                    - quer ser livre

 

Professor – terno e egoísta

                     - faz chantagem para que ele vote a sua

                        Casa.

 

 

                            Concluindo

Para Helga, há, entre o professor e o canário, uma relação semelhante à paternal. Os filhos têm que partir para ampliar seu mundo e desenvolver responsabilidade. Muitas vezes os pais, com chantagens e controle, castram seus filhos deixando-os dependentes e sem iniciativa.

 

 

 

 

O ROMPER DO ÁTOMO - Pedro Henrique Pereira

 



O ROMPER DO ÁTOMO

Pedro Henrique Pereira   

 

 Fugir parece inevitável. Não há como fugir. O que é seu, é seu. O seu destino é seu. O fio de cabelo da sua cabeça é seu. O copo com que dá ao corpo vida é seu. Até a maldição de seguir os dias como uma galinha a quem arrancaram a cabeça e corre com a ideia de vida que não tem mais, é sua.

     Portanto, cato meus trapos e sigo recolhendo os galhos do chão. E o faço de queixo erguido, embora eles me escarneçam. Riem de meu pobre ser, afirmando convictos que é um saco de palha sem palha.

     Ah, mas o que posso fazer? Até a mosca vem na madrugada narrar que meu marido há muito foi beijado pela terra e que meus filhos me veem como uma roupa usada que depois de um tempo só a lixeira lhe ambiciona.

     Sigo e pego mais um galho, marcho em direção à minha casa com o abraço do medo que me cerca e me constrange.

     Quando chego, não demora muito para ver a chama consumir a lenha. Sento-me, então, com cautela para ver o átomo ser rasgado pelo fogo.

     Será que um dia ele volta? Será? 

     Há tanta vida lá fora. Há tanto medo aqui dentro. Ou talvez não. Quiçá há mesmo o perpétuo grito dos desmoronamentos que forjam a casca e que dão ao hoje a saudade dos tempos que não podem ser pegos na mão.

     Lembro-me de quando menina. Lembro de como era divertido brincar de pegar as bolinhas de sabão que Laura, minha irmã mais velha, soltava.

     Eram dias de louvor à infância e deleite no lago da existência. Eram momentos de ralar o joelho com sorrisos largos. Tempo de pular no parque. Não havia este tal de amor, nem aquela tal decepção, muito menos a quebra da expectativa da maternidade.

     Tinha amigos, risos e bolas de sabão, que como o tempo não duram muito na mão.

     Bem que o tempo podia ceder a esse desejo. Bem que poderia ser paralisado. Eu queria tanto residir na boca imortal de alguns momentos.

    Um deles seria de quando Augusto era menino. De quando seus olhos me observaram cautelosos pela primeira vez. Daquele ínfimo espaço de horas surgiu em mim uma palavra simples: “mãe”.

     Queria ter tido mais desse momento. Queria ter tido mais de Augusto. Queria ter tido mais de mim.

     Outro galho vai ao fogão a lenha. Lentamente virando pó. Lentamente se dissolvendo. “Queria mais de mim.” Bom, eu era bonita. Eu acho. Namorado foi o que nunca me faltou. Dava para ter sido melhor? Nada. Rodolfo foi o melhor marido que uma mulher poderia ter.

     Nunca vou conseguir excluir de minha mente a imagem viva dele ao me ver entrar de branco ao som da Marcha Nupcial. Nunca vou me esquecer de seu calor. De seu primeiro toque.

     Mais galhos. Levanto, pego o líquido e derramo na porta, na mesa, no sofá. Levo até o fogão.

     Só vejo o caixão descendo a cova, só vejo Augusto me olhando como um trapo usado, só vejo a chama consumir o átomo, só vejo os galhos queimando, só vejo as bolas de sabão no ar.

     Será que um dia ele volta? Será?

A FORÇA DE JUSSARA - Dinah Ribeiro de Amorim

 



A FORÇA DE JUSSARA

Dinah Ribeiro de Amorim

 

Vivia lá pelos confins do sertão, estado de Mato Grosso, longe, muito longe da civilização. Uma região de ranchos pobres, distantes uns dos outros, de pouca comunicação.

Resistiam, simplesmente, habituados à pobreza. Nasciam, cresciam, envelheciam e morriam. Quase não se comunicam e poucos ficam sabendo, uns dos outros.

Jussara era uma idosa de noventa e dois anos, última geração da família Ramos, de quatro representantes: pai, mãe, irmão Joca e ela. Todos falecidos, restou ela. Sozinha, acompanhada do cão Zito, fazia ainda a limpeza das terras, cuidava da alimentação, das poucas ervas que tinha e buscava água diariamente no lago existente, que se enchia fartamente, na temporada das chuvas.

Jussara mesmo não entendia como ainda sobrevivia, tão velha já, somente com o cão Zito como companhia. Ainda tinha forças para arar a terra, varrer o chão, acender o fogo e pegar água todos os dias, no pequeno ribeirão.

Usava chinelas de dedo ou andava descalça mesmo, quando o mato não ficava muito crescido. Ainda o podava, ocasionalmente.

Sentia, às vezes, um aperto, uma espécie de pontada no peito, que a fazia pressentir a hora da partida, mas ia conseguindo passar os dias, por enquanto. A única preocupação era o cão Zito, quem cuidaria dele?

Os vizinhos já tinham seus problemas e também não os conheciam para solicitar algum favor. Deveriam ser velhos, como ela.

Numa manhã, quando ia até o riacho pegar água com o balde, encontra um homem ainda jovem, barbudo, rosto estranho, caído por perto. Estava meio sonolento, acho que desmaiou, pensa ela.

Joga um pouco d’água em seu rosto e ele se mexe, olhando-a, assustado.

Ajuda-o a se levantar e não pergunta nada. Simplesmente, leva-o para casa. Repara que está com leves ferimentos, mas deve ter se machucado com as plantas, pensa.

Cuida dos ferimentos e ele a olha, espantado, com olhar de medo ou astúcia. Também não pergunta nada, vai aceitando os cuidados de Jussara e sua desconfiança, passando. Percebe logo que é uma mulher velha e sozinha, dona daquelas paragens longínquas, esquecida do mundo.

Quando começa a falar, diz-lhe chamar-se Lúcio, foragido de uns inimigos que queriam matá-lo, fugiu da capital e veio parar ali, sem nem saber como? Ignora o lugar.

Jussara, com seu jeito calmo, sem malícia ou desconfiança, vai cuidando de Lúcio, alimentando-o com o pouco que tem, cuida do homem como um pobre coitado, não se importa muito como veio dar naquelas paragens. Sua idade avançada a impede de maquinações mentais ou grandes curiosidades. Acredita no seu trabalho e no que faz, melhorar a saúde do homem estranho. Se der certo e ele quiser ficar por ali, melhor para ela, um braço forte a mais para lhe ajudar com a terra, com seus últimos anos, se é que ainda os terá.

Final de vida, sem sonhos futuros, nada mais a espanta nem a ilude como antes.

Lúcio, rapaz forte e ainda com boa saúde, lentamente se refaz e acha que deve ajudar a velha, em retribuição. Não era dado a agradecimentos nem a bondades, mas admira como uma mulher tão velha, vive sozinha e ainda cuida de tanta coisa. Sabe que esse trabalho com campo, terras, plantações é difícil para qualquer homem. Fugiu disso quando mais jovem, preferindo as jogatinas e bandidagens das cidades maiores.

Olhando para Jussara, percebe logo as dificuldades que encontra e já presume que o seu fim está próximo. Não demora muito e a velha morre, pensa, com calma. Dó não sente, é incapaz de sentir piedade, desde que cresceu, mas um certo agradecimento lhe deve.

Passam-se dias, algum mês talvez, não registram nada de calendário, vivendo apenas através das mudanças da luz do sol, quando nasce é dia, quando se põe, anoitece. E assim passa o tempo, os dois humanos, uma velha e um rapaz novo, sem muita conversa, fazendo apenas o necessário.

Jussara não lhe faz muita pergunta, também não se interessa, admira-se somente de Lúcio não fugir dali, querer continuar naquele lugar, ajudando-a nos afazeres mais pesados. Parece estar gostando do local ou tem alguma ideia nova. Não perde muito tempo pensando nisso. Faz tempo que o presente, o trabalho do dia, preenche os seus pensamentos.

Zito, o cão amigo, que sempre a acompanha, deu agora para gostar de Lúcio, não o deixa só. Isso a entristece um pouco. Sente falta do único companheiro com quem conversava.

Numa manhã, de sol alto, quando acordam para a lida do dia, Jussara pega o balde e vai ao riacho buscar água. Não percebe que Lúcio, acompanhado de Zito, vai atrás dela, com outro balde. Abaixa-se com dificuldade à beira d’água e vê o cão e o rosto do rapaz refletido na água, atrás dela. Vira-se lentamente e recebe o balde de Lúcio na cabeça, empurrando-a para a água. Assustada, debate-se lentamente, o cão Zito late forte, mas ninguém a socorre. Naquelas paragens, ninguém ouve nada. Morre afogada, em poucos instantes, a idosa Jussara, antes da hora para ela reservada, com a ambição de Lúcio, rapaz educado para ser mal, viver somente para a sorte e ambição.

É preparado um funeral, mas Lúcio até se arrepende do preparo. Poucos visitantes aparecem e se interessam em saber como foi. Em consideração à ajuda que teve, enterra a idosa Jussara perto dos seus familiares, dizendo aos que o interrogam que caiu na água pela força do balde.

Lúcio continuou a morar ali em companhia de Zito, já se sentindo o novo dono das terras. E quem irá contestar isso?

 

 

JUSSARA - Adelaide Dittmers

                                                               



JUSSARA

Adelaide Dittmers

 

 

Dona Jussara foi buscar água no rio.  Passos trôpegos, encurvada pelos anos de uma vida, despida de prazeres e farta de decepções, muda, pela longa solidão, quando tropeçou em uma pedra do caminho e caiu. O balde soltou-se de sua mão e rolou barulhento pela pequena encosta. Um grito silencioso saiu da boca calada. Quantas pedras a derrubaram na sua caminhada.  Quantas vezes teve que se erguer e seguir em frente?  Tentou se levantar.  Não teve forças. A pobre mulher, que quase nada tivera, ficou ali deitada e esquecida pela vida vazia e solitária.

Depois de algum tempo, foi se levantando devagar, com o mesmo vagar, que enfrentava o caminho que trilhara até aquele dia.

Noventa anos desenharam em seu corpo franzino um mapa rico em vincos, cujas profundezas guardavam desilusões, perdas, a necessidade de trabalhar incansavelmente e revezes traiçoeiros, que mataram muitos de seus mais íntimos sonhos.  Ser mãe era o mais precioso deles.

Pôs-se de pé e olhou em volta.  Somente o vento brando do começo da manhã lhe fazia companhia, silencioso como ela.

Abaixou-se, pegou o balde e seguiu até o rio, que corria pelo seu leito, seguindo indiferente seu destino até o mar.

Dobrou-se, encheu o balde até onde aguentaria carregá-lo e o colocou de lado.  Enfiou com prazer as mãos na água fria e as levou para o rosto.  Era o único prazer de que dispunha.  Sentir a água lhe acarinhar as faces cansadas.

De repente, o barulho de algo se aproximando assustou.  Era muito raro alguém passar por aquelas paragens.  Ela virou-se e, no estreito caminho, surgiu uma velha carroça, que sacolejava ao passar pelos buracos do chão de terra.  Em cima, um casal e duas crianças espremiam-se.

Jussara ficou parada. A boca se abriu sem dizer nada.

A pequena família estacou perto dela e o homem gritou:

 — Bom dia, senhora!

Ela abaixou a cabeça e uma voz desacostumada de se fazer ouvir respondeu:

— Dia.

— Com quem a senhora mora nesses confins? Perguntou o homem.

— Moro só,

— Sozinha? Espantou-se a mulher.

— É.

— Como pode.  Já está entrada em anos.

— Muito tempo, só.  Costumei.

O homem desceu da carroça e explicou que comprou um terreno logo adiante, com uma velha casa, que conhecera só por fotografia, e iria morar lá com a família e plantar milho para ganhar a vida. A mulher dele acrescentou que iriam ser vizinhos e poderiam ser amigos.

Jussara arregalou os olhos.  Um sorriso há muito esquecido acendeu o seu rosto acostumado à solidão. Ergueu o olhar para o céu e agradeceu a Deus por esse presente inesperado. E da mudez de sua alma surgiu um muito obrigado.

— Amigos, sim!

A mulher desceu da carroça e, trêmula pela emoção que a mulher curvada pelos anos lhe despertou, segurou as mãos ásperas por tantos anos de trabalho duro.

Jussara abaixou a cabeça. Não esperara mais nada da vida.  Superara tantos desafios.

Fechara-se em si há tanto tempo.  Apenas vivendo sem realmente viver.

Timidamente, levantou os olhos para a mulher que acabara de conhecer.

— Meu nome é Jussara. E o seu?

 

Amor - Clarice Lispector

 





Amor

Clarice Lispector

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles… Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível… O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo… E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite – tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada… Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado… O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha… Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles… Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água – havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d’água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

Extraído no livro Laços de Família, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998

 

 

 

ARIANO E SUA SINA - VIDA / OBRAS / CURIOSIDADES DE ARIANO SUASSUNA

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