Nem sempre o que parece é
Ana Catarina Sant’Anna Maués
O tempo
avançava sem dar trégua e Aurora naquela situação delicada. Não podia deixar
vir a público a situação financeira que vinha atravessando, pois sempre ocupou
lugar de destaque nos palcos e no cinema com papeis de sucesso. Em jornais e
revistas seu status era visto por décadas como vip. Era figura conceituada sem
dúvida, mas não conseguia um bom papel há meses, estava caindo, caindo, como
estrela cadente e ultimamente nem comerciais fazia, nem recebia acenos para participar
de programas de entrevistas. O fato de estar sendo esquecida no meio artístico
a deixava sem chão. Foi então que teve a ideia de pegar os últimos tostões e
aventurar-se numa viagem que divulgou, sendo para produzir um filme de própria
autoria. Esta atitude desembaçaria sua imagem, dando a impressão de que ela
agora queria ocupar outro posto, o de produtora de filmes. O tiro foi certeiro,
a notícia rendeu-lhe algumas notas na mídia e lustrou provisoriamente o ego dela,
mas nenhum convite aconteceu. Iniciou então o plano, chamando um velho e
conhecido amigo para atuar como cinegrafista e, portanto, registrar as cenas da
aventura onde ela havia apostado todas as fichas.
Aurora
alugou um automóvel e providenciou um motorista, bem vistoso, alto, musculoso,
sorriso perfeito, bem galante era Otávio, pois mataria dois coelhos com uma
cajadada, ele dirigiria o carro e faria par romântico com ela, caso precisasse.
Sua equipe tinha que ser reduzida devidos aos custos. Tudo pronto para a viagem,
dias antes, na porta do edifício, uma admiradora dela. Vinha procurá-la com a
proposta de seguir nesta viagem e no caminho ir registrando os feitos da
consagrada atriz nesta nova empreitada, o que renderia no final, um
documentário da sua vida. Aurora não teria gastos com a escritora. É claro que ela
ficou lisonjeada e não resistindo, permitiu que Paulete a acompanhasse.
Tudo
pronto lá foram os quatro rumo ao desconhecido. Na verdade Aurora não tinha um
plano, não tinha um roteiro. Ela necessitava figurar nas notícias para
conseguir um bom papel quem sabe numa novela, e seguiria com isto até alcançar.
Pensava já, numa desculpa caso algum convite ocorresse, e ter que adiar seu
projeto auspicioso de produzir um filme.
Pelo
caminho dizia ao cinegrafista que registrasse a paisagem, o pôr do sol, a
revoada de pássaros, pois tudo seria usado no filme mais tarde. Paulete seguia
com a série de perguntas para o documentário, as quais eram respondidas com
delicadeza por Aurora, que amava falar dela própria.
Eles
haviam tomado o rumo do interior, querendo alcançar outro estado, mas a noite os
surpreendeu e o cansaço bateu forte, resolveram pernoitar na primeira
cidadezinha que avistaram, e hospedar-se no único hotel que a cidade possuía.
Logo na
recepção Aurora foi reconhecida e como que tapetes vermelhos lhe foram
estendidos. Ela muito esperta e devido o tratamento recebido, pediu o melhor
quarto, mesmo querendo economizar, precisava ostentar, pois calculou que com
aquela recepção nem lhe fosse cobrado o pernoite. Dito e feito, o proprietário
ficou tão embevecido com a presença da atriz que foi logo dizendo da honra de
tê-la ali, e que seria cortesia a estada dela. Ponto para Aurora que só pagaria
a hospedagem do motorista e do cinegrafista. Paulete registrava tudo em seu
livrinho de notas.
Os
primeiros raios do sol banharam o corpo alvo da Aurora, acarinharam os longos
cabelos claros dela, e fizeram-na espreguiçar-se já plenamente recuperada da
viagem do dia anterior. A cabeça, porém, fumaçava de preocupações. Contava com
sua perspicácia para sair de tudo que se metia.
No café
oferecido, ela foi rodeada pelos outros hospedes, e entre um autógrafo e outro,
falava do motivo de estar ali. Seguia procurando um local para produzir seu
primeiro filme onde atuaria também como diretora. Nesta hora um garçom gritou
lá no fundo:
— Fique aqui grande dama, teremos a honra de tê-la
em nosso hotel.
A cabeça
de Aurora acendeu “sabe que não é má ideia eu aqui sou reconhecida as portas
abriram-se não tenho mesmo um projeto estou toda enrolada dívidas chegando aqui
tenho hospedagem gratuita faço qualquer “misancene”,
e viro notícia e logo, logo estarei de volta à capital com um bom papel. E sem
ficar com a face rubra respondeu:
— Quanta gentileza, mas será que o jovem
proprietário ainda me quer por aqui?
Ouvindo-a,
quase que de boca aberta, embasbacado que estava pela beleza dela, o proprietário
derreteu-se e confirmou a súplica do garçom.
Foi nesta
hora que Paulete saiu, a um canto da sala, para atender o celular.
Misteriosa, falando baixo e com monossílabos. A
verdade é que Paulete trabalhava para um programa de tv, de fofocas. Ela desconfiava
que a atriz estivesse alquebrada e planejou se passar como escritora de um
documentário para viver mais de perto com Aurora, e em confirmando sua
suspeita, estampar como escândalo a notícia, mas até o momento não tinha
descoberto nada.
Ela já
estava há uma semana na cidadezinha, e nada. Passava bastante tempo no quarto e
quando saia dizia que esteve escrevendo, repassando algumas cenas que filmaria.
Numa manhã
ela acordou animada e disse ao cinegrafista e ao motorista, que iriam fazer
algumas cenas ao ar livre.
Ela
contava com a experiência do cinegrafista que tomaria as cenas do suposto
romance, mas isso ainda estava bastante nublado em sua mente, precisava de
tempo e contava com a sorte de ser logo contratada e parar de vez com aquele
projeto emblemático.
Era bem cedo,
a cidade ainda dormia, quando os quatro saíram, cada um na sua função. Aurora
parecia que havia feito um pacto de encantamento com o dia, pois vestia um
floral esvoaçante onde a cor rosa saltava aos olhos e a deixava especialmente
mais doce. Ela precisava montar uma cena e seguir com seu falso projeto. Sugeriu
uma tomada onde caminharia pelo calçamento e vez por outra colheria violetinhas
que espalhadas coloriam o verde da grama, e iria colhê-las até que formasse um buquê.
Quando isto acontecesse Otávio entraria na filmagem, e enquanto ela caminhasse
distraída, ele se aproximaria dando um encontrão nela, fazendo-a desequilibrar,
mas a segurando imediatamente, impedindo- a de cair. Tudo isto captado pela lente
do experiente cinegrafista. Como espectadora, apenas Paulete, fingindo anotar
tudo em seu caderninho.
Foi dada
largada, o cinegrafista disse “ação”. Acontece que o encontrão combinado aconteceu
bem em frente ao casarão do único advogado da cidade, e, diga-se de passagem,
advogado sem causas, por isto totalmente falido. Que se aproximou muito
irritado de ver que a jovem estava colhendo as violetinhas, fruto de grande e árduo
trabalho que teve para plantá-las.
Chegou esbravejando,
porém de pronto reconheceu Aurora e logo se desculpou. E após muitas desculpas
para cá, desculpas para lá, pois ela também se desculpou por colher, todos
entraram na mansão de Douglas.
Ele
gentilmente ofereceu uma xícara de chá, mas ruídos desconcertantes vinham do segundo
andar e ele tratou logo de fazer todos irem embora.
Após
saírem, Douglas muito revoltado, chamou as três filhas fantasmas para uma
conversinha.
— Será
possível que não posso trazer ninguém aqui em casa que vocês tratam logo de fazer
bagunça?
— Ora, papai, disse uma delas, que teria dez anos se
estivesse viva. Não queremos que você namore ninguém, o senhor é viúvo e vai
continuar sendo.
— Mas esta moça
é uma atriz famosa, não olharia para mim, só quis ser gentil.
— Mas é
assim que começa, tudo começa com um chá, mamãe disse isto para mim um dia, interpelou
a outra que contava oito anos de idade.
— Margarida, disse Douglas, você é a mais velha
minha filha, controle suas irmãs por favor.
— Papai, o senhor
sabe que eu te amo, mas elas são mais fortes que eu, unem-se contra mim. Eu peço,
peço e não me escutam. Eu só estou aqui papai por que tenho algo a contar e quando
contar vou embora. É que ...
— Margarida não se atreva, disseram as duas quase a
uma só voz.
E assim
sumiram as três.
Douglas
ficou encantado com a beleza suave de Aurora e à noite a lembrança do dia, povoaram
seu coração e mente e pela primeira vez, depois de anos, adormeceu com um
sorriso nos lábios.
No outro
dia sentiu grande ímpeto de procurar Aurora e abrir seu coração do porquê de praticamente
tê-la expulsado da casa.
Tomou
coragem e foi.
No hotel,
Paulete não conseguia avançar em suas investigações. Queria ter uma oportunidade
de entrar no quarto da atriz e mexer em armário, bolsa, documentos, precisava apresentar
algo que fosse um grande furo de fofoca, o mais cedo possível, pois já estava aborrecida
de fingir ser escritora. Resolveu então, aproximar-se do cinegrafista, envolvê-lo,
prometendo soma em dinheiro, caso soubesse de algo, ou descobrisse algum passo maldado
de Aurora. Por enquanto, o cinegrafista disse, suspeitar de problemas
financeiros, mas não podia afirmar nada, pois ela o pagava semanalmente de forma
correta, mas prometeu ficar atento. Otávio chegou mansinho e escutou a conversa
entre os dois e disse saber sim de algo bombástico, mas queria também uma pontinha
no acerto entre eles. Os três então fizeram um pacto. Otávio contou que antes
de partirem nesta viagem, trabalhando como motorista dela, levou a atriz até um
banco de penhor, certamente para penhorar joias, e perguntou se isto serviria como
fofoca para a mídia. Paulete argumentou que ela poderia ter apenas guardado as joias
e não penhorado. Daí precisava da cautela do penhor, o documento que provasse a
ação. Isto sim seria uma prova boa para mostrar a falência de Aurora em todos os
sentidos, pois até desconfiava que o fato dela estar dizendo que reproduzia um
filme, era puro blefe.
Enquanto isto, Douglas chegou na recepção do
hotel procurando por Aurora.
O recepcionista a chamou e ela desceu para
encontrar o recém amigo. Os dois saíram a caminhar até uma praça próxima e ali
permaneceram. Douglas abriu o coração e disse ser viúvo, que sozinho vivia, não
tinha filhos. Perdeu a família num desastre aéreo e as filhas assombravam a
casa, pois não aceitavam que ele se aproximasse de qualquer moça, sentiam
ciúmes, e explicou que o barulho no andar de cima, no dia de ontem, foram as
meninas querendo assustar a todos. Ele estava muito cansado de toda esta
situação.
Aurora apiedou-se dele e dali surgiu algo
envolvente.
No hotel os
três tramavam entrar no quarto e revirar as coisas de Aurora.
Dentre eles o mais ousado era o cinegrafista e para
ele coube a façanha. Paulete foi até a praça atrasar à volta de Aurora ao hotel.
Otávio ficou no corredor observando a circulação dos funcionários, dando
cobertura ao cinegrafista. Já dentro do quarto a busca foi frenética, até que
numa sacola com zíper, o cinegrafista encontrou a cautela, prova de que as joias
de Aurora foram mesmo penhoradas.
Ele fotografou
com o celular e colocou o documento no mesmo lugar.
Na praça Paulete
recebeu recado de Otávio para dar uma chegadinha até a recepção. Ela deixou
Aurora e Douglas conversando animadamente.
Quando a
atriz retornou, não encontrou mais nenhum dos três. Apenas o aviso de que tinham
ido embora. Aurora ficou surpresa e intrigada. Chegou no quarto achou tudo em
ordem, até pensou que a tivessem furtado em algo, mas não percebeu nada de anormal.
No outro
dia quando desceu para o café, encontrou um jornal sensacionalista sobre a mesa,
com a manchete “ARTISTA AURORA PENHORA ÚLTIMAS JOIAS E FOGE PARA O OSTRACISMO “.
Foi como
um soco no estômago. Império ruído. Desmascarada no seco, sem dó nem piedade. Fama
e glória para debaixo do tapete como poeira. Não houve como não chorar
copiosamente. Funcionários e proprietário do hotel ficaram penalizados com a
visão.
Aurora foi
para a rua atordoada, caminhava sem rumo, cabisbaixa, envergonhada, humilhada e
chorosa. Quem veio encontrá-la foi Douglas, que já tinha lido o jornaleco, e quando
a viu a abraçou e a levou para sua casa.
Chegando, não
foi bem recebida pelas fantasminhas, que iniciaram uma série de ruídos,
arremessavam utensílios, arrastavam móveis, mas para surpresa delas, Aurora não
ligava, não se impressionava, tinha os olhos inchados de tanto chorar.
Douglas a
consolava e a encorajava. Resolveu contar a ela seu infortúnio.
— Sei bem o que você está sentindo, pois já tive
fama, já fui aclamado por muitos quando era advogado famoso, com dinheiro e
poder. Recebia inúmeros convites para festas, entrevistas, tive até um programa
onde as pessoas buscavam esclarecer dúvidas jurídicas. Fui alvo de uma trama
por pura inveja de alguns amigos da mesma profissão. Que não interessa
relembrar agora. Cidade pequena, já viu né, fui para o esgoto, sem notoriedade
alguma. Até minha esposa inventou uma viagem com minhas filhas e disse que
quando retornasse não me queria mais aqui na nossa casa.
As
fantasminhas escutaram esta revelação e ficaram com peso na consciência pelo
muito que perseguiram o pai tantos anos, por pensarem que ele era que queria se
separar da mãe delas. Resolveram então deixá-lo finalmente, mas não sem antes
devolver o cofre com muitas notas de dinheiro e papéis de muito valor.
— Papai,
disse uma delas, queremos pedir seu perdão. Mamãe nos disse que você queria nos
deixar e por isso antes de viajarmos, escondemos o cofre para você não ir
embora, mas agora escutamos a verdade, o cofre está enterrado no quintal,
próximo ao mamoeiro. Vamos deixá-lo papai, queremos que seja feliz e você
também Sra. Aurora.
Um
silêncio se fez ouvir na sala onde estavam Douglas e Aurora.
Dez anos
já se passaram. Aurora e Douglas casaram e vivem na casa antes assombrada. Ela
conseguiu um papel de destaque num filme, mas a carreira perdeu o encanto,
agora não pensa mais em ser famosa, apenas em ser feliz com Douglas.