Fala, fala espelho meu...
HIRTIS
LAZARIN
Dona Luíza entrou apressada no quarto da Elisabeth. Tinha pouco tempo para colocar ordem. Estava atrasada com os serviços do dia; as crianças e o marido logo mais chegariam para o almoço. Às quintas-feiras, Rui tinha que sair voando. As audiências no fórum não esperavam.
Como sempre, encontrou tudo como ela não queria: gavetas abertas, tênis jogados, roupas espalhadas por todo canto. Já tentou muitas vezes, com jeitinho e outras vezes, aos gritos, conscientizar a filha. Já estava na hora dela cooperar com a mãe.
Assim
que abriu a janela e a claridade entrou, percebeu que alguma coisa estava
diferente. A bagunça era a mesma, mas...
Bem, não tinha tempo para ficar pensando. Ouviu o ronco do carro da família entrando na garagem e correu para terminar o almoço.
Elisabeth não é mais a menina que coleciona bonecas. Não foi de uma hora pra outra que seus pensamentos mudaram. Tudo aconteceu aos pouquinhos, em doses homeopáticas. E ela foi guardando para si. Não era extrovertida o suficiente para contar à mãe.
Não
demorou muito e o primeiro sintoma extravasou: sentiu vergonha da coleção de
bonecas que enchia a prateleira do quarto. Num ímpeto, escondeu todas.
E o
espelho, o malvado espelho da penteadeira apareceu e tirou-lhe o sossego e a
espontaneidade da infância.
Ele contou-lhe um segredo: ”a menininha manhosa foi embora”.
Elisabeth
sentou-se à sua frente e ali ficou parada alheia à vida, como se nunca tivesse
reparado que esse espelho existia.
Teve tempo para conferir todos os detalhes do próprio corpo, dos cabelos e até das unhas mal lixadas. Examinou suas roupas e não gostou do que viu. As expressões faciais, ora bem-humoradas, ora contrariadas, contavam seus sentimentos.
Dali
em diante sua vida mudou. Passou a ser monitorada pelo espelho, o personagem
que apareceu forte e autoritário em sua vida.
E, assim, a vaidade brotou em flores e espinhos.
Ir à escola, até então, momento de alegria, passou a ser um tormento aos pais. Elisabeth colocava o relógio para despertar, levantava-se bem mais cedo que todos e perdia-se no tempo. O tênis não podia ser o mesmo usado no dia anterior, o moletom estava velho, a presilha tinha que combinar com o humor do dia. E o cabelo, coitado, era puxado pra cá, pra lá e perdeu a liberdade de seguir o caminho do vento. Chegar atrasada à aula virou rotina.
Descer
à portaria para pegar uma pizza “delivery”, caso a mãe estivesse ocupada, era
um inferno. Elisabeth consultava o espelho e ele, sem dó, sempre torcia o nariz e apontava um item
errado. Ela obedecia fielmente.
Já
ocorreram vezes em que o motoboy, responsável pela entrega, perdeu a paciência
e voltou com a mercadoria.
Os pais estavam preocupados, mas acreditavam que a crise, comum entre os adolescentes, era passageira.
Elisabeth
foi convidada, com bastante antecedência, para ser dama de honra, no casamento
da prima mais velha. Durante um mês, mãe e filha rodaram lojas e lojas de
grife, em busca do vestido mais bonito e apropriado para a ocasião. Depois de desentendimentos,
malcriações, mudanças nos detalhes e muito choro, a roupa foi escolhida.
Não era o que a mãe queria, mas o espelho orgulhoso venceu a parada mais uma vez.
O
dia do casamento chegou. Estava bem frio, mas nada demais para o esperado no
mês de julho.
A
daminha de honra passou a manhã toda no salão de beleza. Deu trabalho, mas
chegou em casa satisfeita. Horrorizadas ficaram as profissionais que atenderam
a cliente. “Nunca mais”, cochichavam
entre elas.
Dona Luísa nunca passou tanta vergonha na vida e nunca desembolsou tanto dinheiro para pagar uma conta de cabelo. Foi esfolada viva.
O casamento estava marcado para as vinte horas. Já eram dezenove e Elisabeth ainda não estava pronta. Ao colocar o vestido, reclamou que alguma coisa, no avesso, cutucava-a. A mãe procurava... Procurava... E não achava nada. Esse processo se repetiu, acho que por três vezes. Nessa confusão, o cabelo, preso no do alto da cabeça, despencou.
Fim
de festa. Fim da tolerância.
“As
regras, nesta casa, a partir de AGORA, serão outras. Aguarde, Elisabeth”.