A CASA
Dinah
Ribeiro de Amorim (Amora)
“Sinto-me
velha e feia. Solitária e triste em rua barulhenta, cheia de carros zunindo o
tempo todo, gente passando, entrando e comprando. A rua virou um centro
comercial.
Outrora,
alegre, cheia de vida, recém-construída por um jovem casal, eu vivia cercada de festas animadas,
brincadeiras de crianças, admirada por pessoas que me achavam linda, em lugar
especial, totalmente residencial, com famílias semelhantes à minha: Sr.
Arnaldo, Dª Kiqui e filhos.”
“Ah!
Bons tempos aqueles! Até um gracioso gatinho de porcelana enfeitava o telhado
colonial, atraindo os olhares dos passantes. Minha senhora era mesmo genial, um
encanto de patroa.
As
janelas, pequenas, de cortinas coloridas, semelhantes às das bonecas, eram
enfeitadas com vasinhos de flores, nos parapeitos, decorados por ela. Talvez eu
fosse considerada a mais bonita do
bairro. A mais feliz, sim!
Aos
poucos, foi tão rápido, os donos, envelheceram, filhos cresceram, viajaram ou mudaram, não mais os vi. O
entusiasmo diminuiu. Começou a decrescer o cuidado com paredes, jardins, telhados,
culminando com chuva forte derrubando o gatinho de porcelana, minha atração.
A
rua também se transformou, casas sendo demolidas, prédios altos surgindo, lotados
de pessoas novas; lojas de bugigangas, tecidos, restaurantes modificaram antigos
lares amigos, o sossego que existia, a natureza dominante que enfeitava a
paisagem.
A
melancolia que desconhecia, foi aparecendo. Aumentou muito com a morte dos meus
donos, primeiramente, Sr. Arnaldo e, mais tarde, Dª Kiqui. Tentava animá-la, fazendo
brotar uma rosa no jardim, ou abrir repentinamente uma janela, para entrar um
pouco de ar. Que nada! Passava horas sentada, olhando para mim, pensando talvez
no que fui e no que me transformei.
Tristezas da velhice! Chegou ao seu fim, quase levando-me junto!
Fui
colocada à venda, para reforma, aluguel ou compra. Apavorei-me! Cada batida que
sentia machucar meu coração já deprimido e só.
Muitos
visitantes interessados, mas, desconheço o motivo, até agora, ninguém me
comprou.
Esperançosa,
outra família nova se interessando, aguço meus ouvidos e tento atraí-los,
mostrando melhor os raios de sol que entram por algumas frestas existentes. Mas,
nada. Não retornam.
Para
meu desespero, escuto uma noite, vozes estranhas tentando invadir. Arrebentam
as janelas de baixo, abrem as portas e entram.
Pessoas esquisitas, falando
alto, vasculham-me toda como se ainda houvesse algo de valor. Depois, procuram
comida! Não encontram nenhuma sobra deixada pelos ratos da cozinha. Com
palavrões, arrumam cobertas velhas e se instalam no meu chão, tomando antes uns
goles de uma bebida forte porque dormem e roncam logo em seguida.
Pensei
em fazer algum barulho, atrair algum guarda passante. Nem telefone, mais,
possuíamos! Sabia fazer ligações, de tanto observar meus donos. Quem sabe,
algum vizinho estranha o movimento e aparece. Ninguém escuta! Somente ruídos de
carros buzinando, com pressa. À noite, ninguém passa, ninguém dá atenção.
Fui
invadida por malandros e vagabundos, que aumentam, cada dia mais. De vez em
quando, um carro de polícia estaciona, dá uma espiada, faz perguntas, afugenta
todos. Sinto-me aliviada e menos triste, mas assim que a poeira assenta, poeira
do assunto, porque sujeira, há muita, eles retornam e inicia-se tudo.
De
repente, uma briga séria, drogados e bêbados: Um crime! Um rapaz enraivecido
ataca um velho com uma faca. Que susto, meu Deus! Acontecer tudo aquilo, dentro
da sala, não aguentei...
Atordoada,
sentindo também meu fim, percebo vagamente policiais chegando, pessoas entrando
e saindo, corpo arrastado e levado. O outro, algemado. Um policial é colocado à
porta. Seria guardada, afinal.
Tarde
demais, fui sumindo antes de mim, dos meus tijolos que seriam finalmente
destruídos. Perdi a vontade de viver. Que nova construção reviva, traga outras
vidas, outras famílias, outras histórias!
Não
consigo ver mais nada, parece que escorrego. Uma ventania, uma chuva forte,
raios e trovões, atingem, de repente, a casa que eu fui. Janelas se abrem com
força, portas arrombadas, telhas caem, paredes racham, pedaços tombam. Até os
guardas, assustados, refugiam-se do temporal que ameaça aquela rua. Eu, ainda
percebo, mas não me incomoda mais. Sinto o final de uma época, de um tempo.
A
chuva passa tão rápida como veio. Silêncio total! No dia seguinte, alguns
homens aparecem para examinar os estragos. Não entendem como, na cadeira de
balanço do quarto, ainda vive uma senhora, desfalecida, semelhante ao quadro da
sala, segurando nas mãos uma rosa vermelha, recém colhida do jardim.