ICAL — GINCANA
LITERÁRIA INTENSIVA
Este exercício literário coletivo exalta a criatividade, as circunstâncias do trabalho em equipe, o treino de entendimento de texto, a aplicabilidade de ferramentas literárias, e a compreensão de que um texto não brota de um dia para outro, ele sempre carece de lapidação.
Início 16/11/22
Autores: Adelaide Dittmers / Hirtis
Lazarin /
Claudionor Dias da Costa / Hélio
Salema / Alberto
Landi / Henrique Schnaider / Leon
Vagliengo
FINALIZADO (agosto/23)
VINGANÇA A QUALQUER CUSTO
A TRAIÇÃO DE HELENA
FAMÍLIA CIPRIANO E FLORA
Helena
e Américo eram muito queridos. Ele era fazendeiro, pecuarista, dono de cobiçada
propriedade na região, toda cercada por rios, o melhor pasto estava ali no
pedaço de terra da família Cipriano.
Helena era bonita, fazia alguns trabalhos voluntários para famílias
carentes, tinha o sorriso sempre pronto, era educada e gentil. Há quem tivesse
inveja dos trejeitos charmosos dela.
Flora,
que nasceu numa das fazendas da família Cipriano, não teve tempo de ir para
escola como gostaria, ficou apenas o suficiente para chegar ao final do ensino
fundamental. Com o tempo, com exercício de leitura, ela aprendeu o básico da
língua portuguesa, A caligrafia dela era de um nível de clareza, que fazia
inveja aos demais empregados da casa.
Teve que aprender bem cedo a cuidar da limpeza, lavar roupa e cozinhar.
Era uma garota curiosa, lia o caderno de receitas da patroa e os pratos iam
brotando à mesa. E como diziam os patrões, ela era uma “locomotiva” de
eficiência, rapidez nos cuidados da casa.
Após
o casamento de Américo e Helena, passou a servi-los com muito carinho. Limpava,
arrumava e cozinhava. O casal parecia ter momentos de grande felicidade, mas
como ele viajava muito, Helena começou a se sentir sozinha.
E
aí, começaram algumas suspeitas sobre a existência de certo amante, que fazia
visitas noturnas quando Américo Cipriano viajava a negócios. Era o coronel
Borges, o sujeito não tinha medo de ser descoberto, e frequentava a casa como
se sua fosse.
A
governanta via tudo, ouvia tudo, mas não falava nada. Não falava, mas anotava
suas emoções e medos, suas desconfianças e descobertas, num diário que ela
mantinha em segredo.
Uma
manhã bem cedo, deu de frente com o amante da patroa na casa. Entreolharam-se
com olhar de reprovação de ambos os lados. O olhar dela o excomungava. E ele
foi embora no mesmo instante, mas com sorriso irônico nos lábios.
Flora
tinha muita consideração pelo patrão “Ele não merece ser traído! ” —
Queixava-se.
Ela
observava tudo e se remoía. Um ódio brutal
por Borges, nasceu dentro dela. Ele tinha atitudes repulsivas, e muitas
mentiras suspeitas. Então, ela, indignada com o amante da patroa, passou a
“acompanhar” detalhadamente suas atitudes, passou a investigá-lo.
A
governanta passou a sondar também a patroa, preocupada com o que poderia
acontecer. Doutor Américo era um homem muito educado, bondoso, mas se
enfureceria com a deslealdade. E, Flora, procurava demonstrar abertamente sua
reprovação àquela traição.
Flora
não gostava nada daquela ousadia do Borges, nem de sua prepotência, nem de sua
índole. Também não aprovava aquela atitude de Dona Helena. Andava tão
incomodada com os rumos daquela família, tanto, que se sentia no dever de
colocá-la nos trilhos. Lembrava sempre que o Dr. Américo a chamava de “locomotiva”
por ser muito despachada e por dar conta de colocar sempre as coisas em ordem.
Não
há situação tão ruim que não possa piorar…
A TRAGÉDIA
O
ASSASSINATO DE AMÉRICO
Numa
manhã de verão, Américo, que chegara de viagem na noite anterior, nem ficou
para o desjejum, e já saiu para a fazenda. Fazia sempre assim, mas desta vez
havia um chamado para que ele fosse imediatamente. Tão apressado saiu que
esqueceu o livro da contabilidade. Flora mandou o moleque Ezequiel montar um
cavalo e levar o livro para o patrão. “O patrãozinho é assim mesmo, leva uma
vida agitada de compromissos urgentes, e ter muitos afazeres é normal para ele,
mas acaba esquecendo coisas pra trás. Vai logo, menino!”. Não demorou muito, o
garoto já via a poeira do cavalo do patrão, mas ainda não o alcançara. Até que
vislumbrou de longe um amontoado de gente numa briga, freou o animal antes da
curva, não queria ser visto. É o bando do coronel Borges – constatou o garoto,
recuando mais alguns metros. Quem será que está lá apanhando? – Pensou,
curioso, o menino. Quando o entrevero terminou, ele seguiu adiante, e percebeu
o cavalo do patrão num terreno mais aberto do campo, o patrão estava estirado
na terra batida, todo ensanguentado. “Meu Deus!”. Voltou correndo e avisou
Flora, que chamou a patroa, e ela avisou a polícia.
—
Moleque, não conta o que você viu senão vão matar você, hein!
Foi
assim a notícia que receberam na casa. Uma morte violenta, alguém disse. Tinha
escoriações pelo corpo todo, sinais visíveis de linchamento. Mas, o Dr. Nereu,
médico mais conhecido na cidade, atestou escoriações por um tombo que ele,
possivelmente, levara do cavalo. Isso era muito estranho, pois, Américo era
exímio cavaleiro, e Dr. Nereu não merecia confiança, uma vez que era médico do
coronel Borges também. O Borges ainda teve a pachorra de ir ver a amante nesse
mesmo dia. Disse que foi levar os pêsames. Talvez ele estivesse criando um
álibi.
Sobre
o assassinato de Américo, não se sabe como as investigações não se aprofundaram
o quanto merecia, mas a verdade é que, até hoje, não foi considerado um crime,
mas um acidente, mesmo com todos percebendo o que realmente aconteceu naquele
dia. O menino Ezequiel foi poupado de ser testemunha para não ser perseguido
pelo coronel. A pequena cidade interiorana ficou em polvorosa, pois os crimes
por ali eram tidos como crimes domésticos, eram leves e não passavam de roubo
de reses, ou insultos. Um assassinato era um evento de cidade grande. Um
linchamento era coisa cruel demais.
Essa
fatalidade abalou a governanta, mas, estranhamente, nem tanto a Dona Helena.
Apesar do acontecimento trágico, Helena não chorou o bastante pela morte do
esposo, rendia-se ainda aos cortejos de Borges, que frequentava a casa com
regularidade, sem nenhuma cerimônia. Agora, mais que antes.
A
empregada se tornou mais cautelosa, ficara um tanto circunspecta, mas muito
mais atenta. Sabia que o assassino do patrão, era o tal Borges, que
imediatamente passou a frequentar a casa como se fosse ele o proprietário. Tão
descarado que até alguns afazeres ele ordenava para ela, no que ela recusava
dizendo trabalhar para Dona Helena, não para ele.
Uns
dois meses depois da morte de Américo, Flora estava na cozinha e pode ouvir
claramente o casal em uma barulhenta discussão com ares de violência, ao Helena
anunciar sua gravidez. Quando o Coronel Borges ouviu falar da gravidez,
tornou-se hostil, gesticulava grosseiramente, uivando que não gostava de
crianças. Flora tremia, iria lá defender Dona Helena se fosse necessário. Ficou
postada no umbral segurando fortemente o cutelo. Dentro dela uma ira quase
incontrolável. E, depois de muito alvoroço e insultos, sem mais explicações,
ele se afastou. Saiu esbravejando e, depois disso, nunca mais o Coronel Borges
apareceu na casa, desaparecendo da vida de Helena.
Helena
se viu desamparada, ficou inconformada com aquela atitude áspera. Mas, ainda
assim, o queria. Alguns dias depois ela ainda esperava que ele voltasse. Esperou por muito tempo.
MATILDE
NASCIMENTO
Uma
linda e saudável menina, nasceu poucos meses depois. Chamou-se Matilde em
homenagem à avó, uma imigrante italiana que veio fugindo da guerra, misturada
às tantas outras famílias. Tinha os olhinhos espertos e os cabelinhos
avermelhados, como os da avó italiana.
A
criança mudou o clima da casa, era disciplinada, cheia de curiosidades. Gentil
e educada, Matilde cresceu se tornando uma menina muito estudiosa. Assim que
começou a frequentar a escola, se destacou pela inteligência e dedicação aos
estudos. E, à medida que o tempo foi passando, sua beleza juvenil foi desabrochando.
A
convivência com a mãe era básica, sem grandes carícias. Mas com Flora, sua
babá, o convívio era de grande amizade e confidências. Cuidava da menina como
se fosse sua própria filha…
Na
adolescência Matilde estudou na Capital, e voltava de tempos em tempos para um
final de semana em casa. Flora e Helena bajulavam a menina com doces, laços de
fita, até vestidos costuravam para a garota.
Aos
dezoito anos, quando Matilde cursava o primeiro ano do ensino superior, veio o
falecimento de sua mãe. Um baque sem precedentes. Não conheceu o pai, e agora
com a perda da mãe, agarrou-se à Flora.
“Mas
o que é isso? Tantas perdas importantes na vida dessa menina! ” — Choramingava
a governanta. Veio-lhe o assassinato do patrão, a prepotência do coronel Borges,
o abandono à Helena, ainda grávida. “Agora essa menina sem pai, nem mãe! ” —
Repetia sem parar.
Flora
bem que pensou em contar para Matilde que, ele foi amante da patroa. Que ele
matou o Doutor Américo. Mas ponderou, aquele traste iria perseguir a menina.
Então, não contou nada.
No
final daquele ano, Flora precisou viajar, tinha que ajudar uma tia adoentada
que morava em outra cidade. Pediu à
Matilde que não voltasse para casa, que permanecesse no dormitório da Faculdade
até a formatura. “Lá você estará mais segura, menina”.
—
Segura? Por quê?
—
Preciso viajar para o interior, meus parentes precisam de mim. Não sei quando
poderei voltar. Você ficará bem lá na Faculdade. Seu dormitório é ótimo, tem
tudo que precisa, além de boas amigas. Se precisar de mim, mande-me uma carta.
Naquele fim de mundo é tudo muito distante. Não se meta em confusão, garota.
Assim que possível voltarei para cá.
E
assim que Matilde viajou para BH, Flora nem esperou clarear. Amarrou um lenço
na cabeça, guardou suas economias na bolsinha que Matilde lhe dera, ajeitou
algumas peças de roupas na malinha, ajoelhou-se, rezou pedindo proteção para
Matilde. Examinou a casa, as janelas, as portas, rodeou o quintal, e como tudo
lhe parecia em ordem, mais do que depressa rumou para a estação.
Estava
apreensiva de deixar a menina por tanto tempo na Capital, mas não tinha jeito.
Isso a preocupava.
Lembrou
do coronel, da maldade dele linchando o patrão na estrada da fazenda. Sentiu o
coração saltar. Tinha ódio dele, e um plano na cabeça.
“Ela
vai ficar bem na Faculdade” — pensava a mulher, insistentemente.
“Ela
está cansada de ir e voltar” — Justificava-se. Isso a tranquilizava, poderia
ficar longe por muito tempo.
Foi
morar por uns tempos com a tia que já estava bem idosa, lá ela ajudava nos afazeres
da casa e cuidava da mulher. Era raro receber alguma notícia da cidade. O tempo
passou depressa, e a tia estava cada dia pior de saúde.
Dois
anos depois, Matilde já estava de volta, já era uma professorinha, foi direto
buscar emprego na escola da cidade. Preferiu não avisar Flora de sua chegada,
não precisava atrapalhar a vida dela com a tia doente.
MATILDE VOLTA PARA CASA
AMOR A PRIMEIRA VISTA
Matilde
acabara de voltar para casa, fazia alguns dias. A casa solitária, ninguém para
conversar. Não imaginou que Flora demoraria tanto tempo com a tia.
Aquela
noite haveria uma quermesse, e Matilde decidiu que iria à festa.
Talvez
não reconheça ninguém por lá, mas me divertirei um pouco – Pensou.
Na
idade em que o amor desperta, Matilde sentia-se sozinha e vulnerável, tudo foi
muito intenso em sua vida. Gradualmente, aceitou o flerte claro de Francisco,
mas percebeu com algum receio o flerte dissimulado do Coronel Borges, um homem
bem mais velho.
Para
o Coronel, era a primeira festividade que participava desde o falecimento da
esposa Amélia.
E
se encantou profundamente com aquela discreta moça ruiva. Vinha de uns tempos
obcecado com a ideia de um novo casamento, pois considerava que um homem
poderoso como ele, até chamado de Coronel, para ser respeitado precisava ter
uma bela esposa.
Claro,
era visível a diferença entre as idades, mas ela já era uma mulher adulta,
parecia. E, ele, um homem ainda vigoroso, rico e respeitado em toda a região,
considerando a si próprio um partido irrecusável. A moça, certamente,
reconheceria seus méritos e teria interesse em um relacionamento sério com ele
— planejava o coronel.
Voltou
a examinar a moça que caminhava por entre as barracas. Certamente, era bem mais
jovem que ele. Tinha a pele alva e cabelos ruivos, brilhantes. Destacava-se
entre as demais. Decidiu abordá-la, mas, eis que chegou um rapaz antes dele.
O
Coronel Borges, esperto como ele sempre foi, um homem de atitude, nunca perdeu
uma briga, rapidamente, estabeleceu uma ligeira estratégia, aproximando-se do
casal, tentando parecer simpático:
—
É, meu rapaz, você tem sorte! Ela é a mais bonita moça desta festa, a mais
simpática e atraente.
Ele
então examinou o ar de lisonjeio da garota, e constatou que ganhou um round…
Mas fingiu desinteresse: “Vocês são jovens, vivam a vida e o que ela lhes
oferecer”, e continua, “Estou viúvo, e asseguro que a solidão não faz bem a
ninguém. A vida tem muita coisa boa a nos proporcionar”. Analisa o rosto do
rapaz, que demonstra receptividade…
A
moça observou com ressalvas a ousadia daquele homem. Ele percebeu que ela o analisava, então ele
aproveitou a oportunidade e estendeu a mão para o rapaz:
—
Borges, sempre ao seu dispor.
E
o rapaz apertou sua mão vigorosamente: “Francisco, muito prazer! ”. Nesse
momento lhe veio à mente que o Borges era bem famoso na cidade.
Ambos
olharam para moça que, timidamente, estendeu a mão para Borges. “Matilde,
prazer”.
Depois,
voltando-se para Francisco, pensou “Este é um dia muito especial para mim…”
E
os lábios dela, logo se abriram num terno sorriso que encantou o jovem
Francisco. Tudo indicava que ali nasceria um relacionamento amoroso.
Tudo
indicava que ali nasceria uma amizade entre os três…
AMEAÇA — PERSEGUIÇÃO — FUGA
Francisco
e o Coronel Borges só pensavam em Matilde. Tornou-se uma obsessão, uma acirrada
disputa entre os dois. O primeiro, jovem e atraente, engenheiro-agrônomo,
herdeiro de uma propriedade muito produtiva, cheio de planos e com muita
vontade de vencer na vida. O outro, um homem vivido, astuto e de muitas posses,
capaz de proporcionar-lhe vida de princesa.
Mas, Matilde se rendeu aos encantos de Francisco, e em pouco tempo
estavam morando juntos na casa dela, que ficava na cidade, já que a dele ficava
na zona rural. Com ele, ela se sentia feliz e protegida. Uma proteção que
sempre lhe faltou. A morte dos pais e a falta de irmãos eram um grande vazio
que carregava. Ainda mais que sua babá estava longe, sem comunicação. E eis que
surge alguém capaz de preencher essa lacuna e de proporcionar-lhe alegria. Ao
lado dele, sentia-se realizada, como nunca. Passou a ouvir músicas, cantar e
dançar pela casa. Regava o jardim, colocava flores nos vasos e a casa lhe
sorria. Falavam de suas famílias, e Matilde falou de Flora, que voltaria assim
que as coisas estivessem resolvidas por lá.
—
Você vai adorar a Florinha, um encanto que está na minha família desde sempre,
uma quase mãe para mim.
Quando
Borges percebeu que o casal estava cada vez mais unido, passou a presenteá-la
com objetos valiosos, mas a bajulação exagerada do Coronel não funcionava, e
seu amor-próprio foi posto à prova. “Mas o que é isso, eu sou um coronel
humilhado? ” — Doía-se. Justo ele que era o valentão, não podia perder,
portanto, usaria métodos escusos para alcançar seus objetivos.
E
a perseguição começou sem tréguas contra Francisco. Capatazes sondavam o casal
e, perseguiam o rapaz de modo intimidativo e violento. Quando menos se
esperava, apareciam do nada, exibindo armas e ordenando que a abandonasse. Tudo
era feito de um jeito tão ardiloso, intimidativo, ameaçador e bem-planejado,
que se impossibilitou juntar provas e denunciá-lo à Justiça.
Matilde
precisa saber que cobra venenosa é essa víbora que finge ser cordeiro –
pensava.
Certo
dia, quando Francisco estava decidido a contar tudo para Matilde, queria que
ela soubesse com quem estava lidando, ele foi surpreendido no trajeto de volta
para casa, próximo da estação e foi, covardemente, espancado nas proximidades
dos trilhos.
“Ou
você desaparece do mapa, ou matamos vocês dois. Porque se ela não ficar com o
Coronel, não ficará com mais ninguém! Então, fuja, rapaz! Desapareça para não
morrer! E não conte nada para ela. Se ela não souber o que acontece, não
correrá risco! ”
Seus
passos seriam mais duramente vigiados se ali permanecesse, e seu destino já
estava traçado. Não lhe restava outra alternativa senão desaparecer da cidade,
renunciando ao grande amor da sua vida. Subiu para a plataforma, alcançou uma
torneira, lavou-se. Tentava ordenar os pensamentos, os sentimentos. A
respiração sofregava, os olhos lacrimejavam. Havia muita dor no peito, teria
que abandoná-la, para o bem dela. Foi ao balcão de passagens, escreveu uma
carta, e pediu que entregassem à Matilde.
O barulho ensurdecedor da frenagem da composição, agitou-o. Precisava
mesmo partir. Olhou para a plataforma, os homens ainda o espreitavam.
E
foi assim que, no silêncio do sol poente, desapareceu de sua cidade.
MATILDE E O CORONEL BORGES
Logo
depois do desaparecimento de Francisco…Matilde se perguntava, o que fora feito
de Francisco. Quando ele partiu, ela o
esperou por um longo tempo, contava com a possibilidade de chegar alguma
notícia dele, mas essa espera foi em vão.
Foi à polícia, procurou amigos, e nada. Foi diversas vezes à fazenda da
família dele, conversava com o gerente, e ninguém sabia de Francisco. Desabafava
com Borges, que se tornara um grande amigo, afinal, ele a consolava e a
animava. “Temos que aceitar as mudanças, a vida é feita de escolhas, Matilde” —
dizia. — Justo agora que eu ia confessar-lhe minha gravidez – disse chorando.
—
Ahn, você está grávida daquele moleque?
—
Ele não é um moleque, é responsável e trabalhador.
—
Responsável? Então onde está ele agora?
Borges
tornou–se frequentador constante da casa da jovem, era gentil e compreensivo,
até que um dia ele, emocionado, lhe confessou amor. Matilde nem ficou surpresa. E, a solidão que
sentia com o silêncio de Francisco foi aceitando que o coronel encurtasse suas
rédeas. Não prometeu nada, não lhe dava nada, e ele frequentava sua casa.
Mas,
com o passar dos dias, foi se revelando um homem possessivo, ciumento,
intolerante e explosivo. Não aceitava a
gestação de Matilde. Queria que ela fosse morar com ele, mas ela estava
decidida a ser mãe.
—
Francisco é meu marido, Borges. Ele é o pai desta criança que vai nascer, e eu
vou esperá-lo para sempre.
Cada
fala de Matilde soava como um punhal no peito do coronel. O ódio que sentia por
Francisco se avolumava.
A CARTA NAS MÃOS DE MATILDE
Uma
manhã bem cedo, Matilde recebeu na casa, o gerente da fazenda do Francisco. Ele
perguntou como estavam todos. Estava ressabiado. Olhou para a barriga dela e
sorriu. Percorreu ambiente com os olhos. Pediu um copo de água. Perguntou se o
Borges estava por perto. Ele não virá mais aqui. Então fez sinal de silêncio
para Matilde, e lhe entregou um envelope aberto. É do Francisco. Nunca diga que
recebeu essa carta, senhora.
—
Do Francisco! Onde ele está?
E
ao abrir o envelope viu que Custódio já a tinha aberto.
—
Você leu?
—
O envelope estava bem escondido no armário do guarda da estação. Ele temia que
o coronel tomasse conhecimento dessa carta, e resolvesse punir a senhora, já
que não podia punir seu marido.
Ela
concordou fazendo um “sim” com a cabeça.
—
Preciso ir. Não é bom que me vejam aqui. Se a senhora precisar de alguma coisa,
pode contar comigo.
Disse
e saiu para a rua sem olhar para trás.
Matilde
ficou lendo de modo guloso o conteúdo da carta. Tomou conhecimento de que o
coronel era um bicho venenoso. Não o queria mais por perto.
Na
carta ele não dizia para onde viajaria, nem quando voltaria.
—
Ele precisa saber que vai ser pai!
Então
ela correu atrás de Custódio, segurou-o pela mão e disse:
—
Diga ao meu marido que estou esperando por ele. Que nós estamos bem. O menino
nascerá daqui a 30 dias.
Custódio
meneou com a cabeça, e seguiu em direção à praça, onde estava o automóvel.
Seguiu com os pensamentos atrapalhados, e a garganta seca. “Aquele coronel
desgraçado, não podia ter feito isso com o patrãozinho”.
Naquele
dia, Matilde chorou muito. Francisco precisava voltar para casa.
No
entanto, quem apareceu lá foi o coronel, mostrava-se mais e mais agressivo no
falar com ela.
“Não gosto de crianças, não quero nenhum
pirralho me chamando de pai” – disse Borges dando murro na mesa.
—
Pai? Não seja bobo. Ele jamais o chamará de pai. Você não é nada dele, e nem de
mim. E, já está na hora de cortarmos esse vínculo, Borges. Volte para seus
capangas que eu tenho uma gestação para curtir. Me esqueça.
Borges
estremeceu. Não toleraria tal ofensa.
—
Você não teme pela sua vida e pela vida de seu filho?
—
O pior já aconteceu comigo, perdi meus pais e meu marido, estou só neste mundo,
mas não ficaria com você nem que fosse o único homem deste planeta.
Disse
e foi conduzindo Borges para a porta aos empurrões.
Ele
a segurou pelos braços, tentou beijá-la à força, ela o empurrou com força.
—
Fora da minha casa e da minha vida, seu cafajeste!
Ela
chorava amiúde. Eu detesto você e sua gente! – Gritou lá de dentro.
Mais
do que truculento, um cretino! — Sussurrava para si mesma depois que fechou a
porta, dominada por um sentimento de raiva e decepção.
FLORA ESTÁ DE VOLTA
DURAS REVELAÇÕES
Flora
ainda permaneceu com a tia, até sua morte. Depois disso, retornou à cidade e
foi direto para a casa da família Cipriano, de onde havia saído. Lá, encontrou
Matilde e se espantou. A jovem mostrava alegre, uma mulher feita.
Houve
um abraço terno, demorado, e cheio de amor. Elas tinham muito a conversar.
“Nunca mais sairei de perto de você, menina” Me conta aí, e essa barriga, quem
é o pai dessa criança? Vem, vou fazer um café para nós”.
—
Florinha, que alegria ver você! Me conta tudo, e sua tia? Eu também tenho muito
para te contar...
Flora
não a encheria de notícias tristes, disse apenas que sentiu muita saudade da
menina.
A
governanta ouviu toda a história de Matilde, e quando ouviu o nome Coronel
Borges, Flora empalideceu. Era visível seu abatimento ao ouvir o nome do
coronel.
—
Mas, minha filha, essa criança é filha do coronel?
—
Não, Florinha. Essa criança é filha do Francisco. Moramos juntos alguns meses
aqui nesta casa, mas ele desapareceu de repente.
Flora,
imediatamente foi levada ao passado quando veio a notícia do assassinado de
Américo. Coronel tirou ele do caminho para ficar com Dona Helena.
Aquele
maldito coronel é capaz de qualquer coisa! – Pensou em silêncio, franzindo o
cenho.
Por
outro lado, Flora estava feliz por ter encontrado Matilde. Emocionada, não
parava de acariciar a barriga de jovem.
Apesar
de saber que não poderia interferir na vida da menina, Flora ainda fez
recomendações:
—
Não se aproxime jamais desse tal coronel Borges, ele é uma víbora, capaz de
violência para conseguir o quer.
—
Você conhece ele, Florinha?
—
Conheço sim, ele não é homem pra mulher nenhuma, é traidor, um assassino. Não
deixe que ele entre nesta casa, Matilde.
—
Desgraçado! — Pensava, Flora, bufando de ódio.
—
Sabe que estou de volta, Matilde, voltei para casa, e juntas vamos criar essa
criança com muito amor. — Dizia com o rosto marcado de dor.
—
Tome, leia a carta que o Francisco me escreveu no dia que teve que me deixar. –
E estendeu o papel para Flora, que ao ler, mostrava-se incrédula.
Depois
parou um instante como se estivesse buscando algo na história. Enfiou a mão na
bolsa e de lá trouxe seu diário, e o entregou para a jovem:
—
Sabe, minha filha, o coronel Borges assassinou seu pai, antes de você nascer.
Ele e o bando dele. Ezequiel era um garoto ainda, e viu tudo. Não deu tempo de
salvá-lo. Está tudo aí nesse diário, aí dentro está sua história.
—
Meus Deus, o que está me dizendo, Flora!
—
Não contei antes porque você ainda era uma criança, ia estudar longe, e eu tive
medo do que pudesse acontecer com você. Guardei todos esses anos esse segredo.
Ele e sua mãe eram amantes, ela estava apaixonada por ele. Mas ele era um
miserável, e sua mãe sofreu muito. Quando ela lhe disse que estava grávida do
Dr. Américo, o Borges começou a gritar com ela, avançou sobre ela, e eu peguei
uma arma na cozinha. Eu ia matar aquele infeliz naquele dia. Devia ter feito isso.
Enquanto
Matilde estava focada na leitura do Diário das Verdades, Flora ia
complementando com informações que não estavam lá “Menina, não culpe sua mãe
pelos atos dela. Ela era uma ótima mulher”.
—
Eu não posso acreditar que minha mãe se envolveu com esse homem, que traiu meu
pai! Ninguém sabia de nada?
—
As fofoqueiras da cidade desconfiavam. Mas, eu sabia de tudo, via e ouvia tudo,
mas ninguém acreditaria em mim, uma empregada da casa. Eu seria desacreditada, perseguida e
considerada louca. E, você me conhece, não sou de contar nada para ninguém.
À
medida que Matilde avançava nas páginas do diário, mais revoltada ficava. “Como
esse homem pode cometer tantas barbaridades e ficar impune”?
—
Só uma resposta justificaria essa impunidade: o poder do dinheiro! O dinheiro
que compra os políticos, os médicos e a polícia.
Matilde
chorava mansinho, com dor, com sofrimento pela perda de seus pais, pela vida
tão desgastada da mãe que se dava a um homem que não valia a pena, um
assassino.
As
duas estavam aos prantos.
—
E agora, aquele capeta, agora quer interferir na sua vida, menina! Por que não
matei ele antes de você nascer!?
Flora
estava inconsolável. E Matilde, agarrada a ela, se desfazia em lágrimas.
—
Ainda dá tempo, Matilde. Ainda o farei!
—
Não, Flora, não manche suas mãos. Ele vai encontrar alguém que o odeie tanto
quanto nós.
Se
tem alguém aqui que tem mil motivos para acabar com ele, sou eu. Mas não o
farei, tenho um filho para cuidar, e espero meu marido de volta. Preciso de
você, Flora, acalme-se, precisamos caminhar juntas.
Flora
respirou fundo, tinha descarregado os segredos que lhe doíam tanto guardar.
Levantou-se, foi a cozinha, logo voltou com um bule de chá e bolinhos. E ambas passaram
a falar do enxoval do bebê.
VINGANÇA A QUALQUER CUSTO
A VOLTA DE FRANCISCO
Àquela
hora da madrugada o silêncio sombrio ensurdecia as portas cerradas. A noite
estava fresca, mas a neblina densa impedia de se enxergar com clareza. De
repente, um latido não muito distante dali: “Hummm! Parece que não estou
sozinho! ”, concluiu de imediato. Consultou o relógio “Tenho que me apressar”.
Havia pavor dentro dele, pavor e urgência. Na cintura o Colt 32 que lhe fazia
companhia desde que saíra da cidade. Os passos desconexos desobedeciam sua
pressa. Era um agosto quando a primavera empurra o inverno para entrar em cena,
numa ruela de poucas casas, ao lado da estação ferroviária.
“Sei
que muitas foram as perguntas que deixei. Nunca pude respondê-las. Sofri e fiz
você sofrer. Mas, hei de reparar os danos! ”.
As
lembranças continuavam a dominá-lo, ora doces, ora trágicas, agora ainda mais
intensas por estar na sua cidade. Lembrava bem da quermesse, foi lá que
conheceu Matilde.
Ele
era um jovem maduro, bem-apessoado, vestia-se distintamente, chamando a atenção
das mocinhas, mas encantou-se com uma linda ruiva que transitava sozinha entre
as barracas.
Ali
brotaria um forte sentimento de paixão que mudaria suas vidas para sempre.
“O
coronel, sujeitinho repugnante! ” Pensou.
As
lembranças clarearam mais quando se deparou com as casas emparelhadas. Não posso permitir que o ódio me consuma,
tenho que acabar com o Borges para resolver minha vida, preciso ter frieza e
esperar o momento adequado de agir.
“A
carta, contei tudo para ela naquela carta”.
No
dia de sua partida enviou um manuscrito para Matilde. Era uma escrita
tumultuada, alvoroçada como o momento em que vivia, quando seu coração confuso
sofria tanto por não tomar outra atitude.
“Naquele
dia, eu deveria ter acabado com o infeliz! Mas eu estava com medo, aturdido,
estava ferido e não queria que ela soubesse o que estava acontecendo. Foi uma
partida sem despedida. Não, aquilo nem foi uma partida, foi uma fuga. Aquele
maldito coronel! Disso me arrependo, deveria ter ficado e lutado pela mulher
que amava. Não tive medo de morrer, meu medo sempre foi que algum mal fizessem
à Matilde.”
DE VOLTA AO LAR
FRANCISCO RETORNA PARA A FAZENDA
Enquanto
esteve fora, arranjou um bom emprego numa empresa de defensivos agrícolas,
afinal tinha ótimas qualificações. O trabalho com o pai na roça de milho,
estimulando a terra a novas culturas, tinha o levado aos estudos de Agronomia.
Adquirira o dom de trabalhar a terra, passou a desempenhar sua profissão
chegando a ter sua própria empresa de projetos de automação rural. Tinha
herdado um recheado pé de meia, dinheiro não seria problema para ele.
Frequentou o clube de tiro para melhorar sua qualificação, adquiriu um Colt 32
que planejava usar para resolver seu passado. Tinha pressa.
Não
teve um dia que não desejasse voltar para Matilde, mas antes precisava se
vingar do perverso Coronel, tirá-lo do caminho, e para isso teria que se
impregnar da mesma maldade, do mesmo espírito daninho, planejar a vingança com
sadismo.
Tudo
é uma questão de oportunidade — pensava ele.
Embrenhou-se
pela estrada vicinal a passos largos. De repente, se viu diante de sua casa,
onde passou a infância e parte da adolescência. Foi ali que seu pai lhe
ensinara a lidar com a terra, com as pessoas e com a vida. Não foi difícil
transpor o portão. Um leve empurrão e ele se abriu devagar, rinchando nas
dobradiças. Avançando por entre as gramíneas do jardim, chegou à varanda. “Que
solidão, meu Deus! ” Através da vidraça das janelas se viam as molduras,
retratos da família nas paredes. Seu pais estavam tão jovens e felizes naquela
foto do casamento.
Francisco
examinou o ambiente da estradinha, não havia ninguém, apenas um pio distante de
uma ave solitária. Solitária como ele. Lembrou que quando menino, àquela hora
seu pai o acordava para as ordenhas. Ouviu um mugido de vaca no curral mais
próximo da casa. Arriscou uma olhadela através da cortina da cozinha, e
percebeu que os animais estavam bem-tratados.
Esse Custódio é muito bom, manteve tudo em ordem sem minha ajuda –
pensou.
Já
começava a clarear, o dia já estava se abrindo, e as imagens já estavam
nítidas, embora ainda sentisse o peso da alvorada silenciosa. “Cá estou eu! Vim para concretizar meus
planos. Vim em busca da minha felicidade. Mas, antes, acabo com aquele patife!
Conseguirei viver com essa culpa, claro que vou! Porém, não conseguirei
continuar vivendo com a culpa de ter sido obrigado a abandonar a mulher que
amo, de ter me deixado escorraçar como um cão sarnento”.
Sentiu
ferver o sangue nas veias e o pulsar do coração se avolumou.
Os
olhos apertaram-se. Preciso encontrá-la! – E, de repente, pegou-se chorando.
“Será que ela recebeu minha carta? E se não recebeu?!”. — Desesperou-se. “Se
não recebeu, deve ter me odiado todos esses meses”… A cabeça parecia querer
explodir. Precisava ser frio, calcular
cada passo de agora em diante para poder concluir sua meta. Tinha que ter
cautela para não ser descoberto antes de concluir seu intento, as notícias
correm… e, é bom que não saibam que voltei… mais do que nunca, precisava descobrir
o paradeiro de Matilde.
Varreu
com os olhos toda a sala. A casa toda tinha um aspecto tristonho, quase
fúnebre. Esta casa assim, desabitada, um
colorido tristonho onde foi um ambiente tão feliz.
Enquanto,
desolado, olhava aquele cenário vazio, se aquietou num silêncio profundo,
deixando a alma mergulhada no pesadelo perturbador… E foi se acalmando, a
tremedeira passou, e as ideias começaram a se organizar.
Lentamente,
ele voltou à infância naquela propriedade conquistada com o suor de seu pai.
Viu-se correndo por entre a plantação e os animais. Uma vistosa plantação de
milho dividia as terras com algumas cabeças de gado. O gosto pela vida no
campo, o prazer de cuidar do milharal, de ordenhar as vacas e de ajudar o pai
nas tarefas tantas que a fazenda exigia, tudo veio à sua memória.
A
família Fagundes não era rica, mas podia viver sem dívidas, ter certo conforto.
“Que bons tempos foram aqueles! ” Viviam com simplicidade, mas o essencial não
lhes faltava. Estudara ali mesmo na
cidade, e mais tarde em BH. Tornou-se Engenheiro Agrônomo.
De
repente, o rosto contraiu-se ao lembrar-se da morte súbita do pai e da
responsabilidade de levar a vida adiante com a mãe, quando ele era ainda
recém-formado. Foram anos de muito
trabalho na lida da terra e trato dos animais, a mãe sempre frágil, adoentada.
Seus
pensamentos voaram para o dia em que conheceu Matilde na festa da igreja
“jamais esquecerei aquele dia”. Lembrou bem da paixão que os envolveu. Franziu de novo a testa quando se lembrou do
virulento Borges e sua falsa amizade. Borges se revelaria um odioso bandido ao
ameaçá-lo de morte e expulsá-lo da cidade.
Aos
borbotões, essas memórias desfilavam pela sua mente. O ódio ao Borges o
transformou num homem vingativo.
De
repente a fome o incomodou… Abriu os armários,
não havia nada ali. “Preciso comer alguma coisa”. Levantou-se devagar. As pernas dormentes de tanto tempo sentado e
esquecido de seu corpo. Caminhou meio
trôpego até a garagem. Abriu a porta com esforço, olhando de um lado para outro
para não ser surpreendido por ninguém.
Ouviu
passos vindo em sua direção, postou-se atrás da porta.
CUSTÓDIO – O BRAÇO DIREITO DE
FRANCISCO
—
Quem está aí? – Perguntou uma voz rouca.
Era
o Custódio, o gerente da fazenda. Francisco se apresentou e o abraçou como se
fizesse anos que não se viam.
—
Mas, o que aconteceu que o senhor sumiu da cidade?
—
Vou te contar tudo, Custódio, mas antes preciso comer alguma coisa, estou
faminto.
—
Vem, vamos lá em casa, Maria fez um pão, está quentinho. Vamos tomar um café.
E
ambos seguiram por dentro da trilha do pasto. Francisco foi contando tudo que
passara nos últimos meses.
—
Ahn... A dona Matilde veio aqui um par de vezes procurar o senhor. Ela está na
casa dela, está grávida. Dizem que é um menino.
—
Grávida!
O
sangue de Francisco, agora mais do nunca se embolava nas veias, precisava
resolver tudo o quanto antes, precisava ter de volta sua vida.
—
Mas, por que o senhor não veio aqui conversar com a gente? Arrumava uma turma e
dava uma coça naquele velho, e nos guardinhas dele.
—
Não é assim, o Coronel Borges tem as costas quente. Aqui nesta cidade ele é
protegido.
—
E o que o senhor pretende fazer?
—
Olha, Custódio, eu estou decidido a matá-lo. Deus que me livre, mas sou capaz
de fazer isso para ter a minha Matilde de volta.
—
E como vai fazer isso? Se ele é assim como o senhor diz, ele está sempre
guardado por aqueles capangas dele.
—
Sim, menos quando vai pescar. Aos sábados ele fica o dia todo no rio, naquele
ponto em que o rio fica mais largo, naquela pedra grande. Conhece?
—
Conheço sim, senhor. Eu se fosse o senhor, não sujava minha mão com sangue
daquele lazarento.
—
Eu preciso acabar com ele, Custódio. Só assim vou poder viver de verdade.
—
Seu Francisco, o senhor é moço, vai ser pai daqui a pouco, não vale a pena
fazer uma coisa dessa e viver com a culpa remoendo sua cabeça. Vai atrapalhar
sua vida.
Francisco
balançava a cabeça positivamente, mas logo empinava o rosto:
—
Mas aquele desgraçado precisa morrer. Senão, ele não me deixará viver em paz.
Neste mundo não cabe nós dois, só cabe eu ou ele.
—
Sabe, patrãozinho, eu tenho uma dívida impagável com o senhor seu pai. Ele
salvou minha família, a gente estava morando na rua, meu pai trabalhava em
Indaiá, na fazenda do Coronel Borges, e meu pai morreu num mangue que tem no pé
do morro, então ele colocou nós tudo na rua. Minha mãe estava muito doente, e
eu entrei em pânico. Um dia seu pai apareceu na loja de ferragens, eu estava
sentado no chão na frente da loja, e eu fui pedir ajuda para ele. Sabe o que
aconteceu? Ele mandou buscar eu e minha família, e colocou a gente para morar
naquela casinha branca onde eu moro até hoje. Minha mãe precisava de médico e
de remédios, coitadinha, e seu pai não economizou. Cuidou dela como se fosse a
mãe dele. Tenho uma gratidão impagável com sua família. Eu cresci entre esses
pastos, conversava com as vacas, e assistia tudo que seu pai te ensinava.
Aprendi de tabela, e quando o senhor foi estudar fora, ele me ensinou a ser
gerente. Casei quando o senhor foi para BH estudar engenharia. Seu pai foi um
pai para mim. E eu não vou negar ajuda para você, que tenho como irmão.
—
Mas, o que está me dizendo, Custódio? Não estou entendendo.
—
Proponho que o senhor coma, tome um banho e vá descansar. A Maria vai lá
arrumar seu quarto, trocar a roupa de cama, e o senhor vai dormir um pouco.
Aproveita o sábado para colocar seus sentimentos em dia. Agir assim, no
alvoroço do sentimento de ódio, sempre acaba não dando certo. A vingança é algo
que precisa ser maturada, patrãozinho. Amanhã, o senhor vai procurar a dona
Matilde, e pergunta pra ela o que ela quer que o senhor faça. As mulheres são
muito inteligentes, o senhor vai ficar surpreso como elas resolvem as coisas,
parece que elas têm a magia nas mãos. E, de repente, tudo vai parecer tão
pouco....
Francisco
sorriu, um gesto de ternura e agradecimento para aquele que cresceu com ele na
fazenda.
—
Hummmm que café cheiroso, Maria!
Devorou
o pão de aveia que a Maria lhe serviu, e quando voltou para casa, observou que
tudo já estava limpo e em ordem. Abriu a geladeira, e viu uma garrafa de água,
um pedaço do pão, uma garrafa de leite, e café sobre a mesa.
Realmente,
elas têm a magia nas mãos – Pensou enquanto ligava o chuveiro. Depois adormeceu
profundamente. Quando acordou já passava das 6 da tarde. Levantou-se num
supetão. Sobre a mesa já estava seu jantar. Era uma carne com legumes e um
arroz branquinho.
Eis
outra magia das mulheres, elas sabem do que precisamos...
VINGANÇA EXECUTADA
O CORONEL APARECE MORTO
Ao
terminar o jantar, ouviu batida suave à porta, e deu com Custódio.
—
O que houve, Custódio? Que cara é essa?
—
Fui à cidade buscar umas coisinhas para sua casa, e lá corre a história que o
Coronel Borges morreu com um golpe de foice ou algo assim. Quase arrancaram a
cabeça do verme.
Francisco
ficou teso com os pensamentos revoltos na cabeça.
—
Quem fez isso, Custódio? Disseram quem fez?
—
Olha, Seu Francisco, não tem uma pessoa nesta cidade que não tenha motivo para
acabar com aquele bandido. Até os capangas dele podem ter feito isso. Fiquei
sabendo que o delegado, que sempre foi emparelhado com o Borges, estava bravo
com o coronel. Imagine o senhor que o Borges estava dando em cima da esposa
dele. Tem um capanga dele que perdeu um filho faz um mês, e o coronel não
deixou nem o pai ir no enterro. Qualquer um pode ter matado aquele infeliz.
—
Preciso ter certeza disso. Se não o fizeram, eu farei.
—
O senhor vai ficar aqui bem quieto. Na surdina. Na segunda-feira eu vou na
estação “buscar o senhor” que vai chegar de viagem. Ninguém precisa desconfiar
do senhor, mesmo porque o senhor nem estava na cidade. Entendeu, patrãozinho?
—
Mas, e a Matilde? Estou fugindo de novo?
—
Não, não está fugindo, está buscando sua vida de volta, e sua vida recomeça na
segunda-feira quando o senhor vai lá encontrar sua mulher.
—
Meu filho! Você mandou avisar que estou aqui!
—
Claro que não. As mulheres são inteligentes demais, mas são, primeiramente,
muito sensíveis. Ela viria correndo aqui, e aí a coisa ia ficar feia pro seu
lado.
—
Ela recebeu minha carta, sabia que fui escorraçado da cidade pelo Borges?
—
Um dia encontrei o guarda da estação e ele me entregou a carta, pediu pra eu
levar para a dona Matilde, e eu levei. Naqueles dias o coronel estava
cortejando sua mulher, mas dona Matilde mostrou pra ele o caminho da rua. Ah,
ela disse que se eu o encontrasse, era para dizer que ela e o bebê estão
bem. E que nasce o mês que vem.
Francisco
estava aturdido com tanta notícia boa. Estava ansioso para vê-la. Mas achou que
Custódio tinha razão. Esperaria até segunda.
Custódio,
no dia seguinte foi à cidade e passou pelo velório. Olhou bem na cara do
falecido, e disse para si mesmo: “Vá para o inferno, capeta!”. E saiu como quem
não quer nada,
Ao
chegar em casa, Maria disse que estava preocupada, tinha medo de ter exagerado
na dose do sonífero que colocou no café e na água do doutorzinho.
—
Colocou mais hoje? Isso mesmo, ele precisa dormir até segunda-feira. Fui lá ver o patife do coronel. Está mesmo
mortinho, mortinho.
—
Mas, Custódio, não vai ficar se vangloriando por aí. Erva daninha a gente
arranca mesmo, mas nem conta pra ninguém, não faz falta, só atrapalha.
Ele
acenou com a cabeça. Realmente as mulheres são inteligentes e muito sensíveis.
Na
manhã seguinte:
—
Tá cheiroso o café, Maria!
—
Foi coado agorinha, patrãozinho.
—
Nunca dormi tanto em toda minha vida! Parece que fui drogado. Que estranho.
—
O senhor estava esbaforido, cansado, nervoso, e quando deitou na sua cama,
relaxou. Mas, hoje é segunda-feira, e...
—
Hoje é segunda? Mas, o enterro do coronel?
—
Foi ontem, doutor. O Custódio foi ver a cara do animal. Diz ele que estava
mortinho, mortinho. Acho bom o senhor comer logo, o trem que vem de BH vai
chegar às 11 horas. Custódio tá arrumando o carro para ir te buscar na estação.
—
Esse meu irmão! – Falou e sorriu para Maria, enquanto devorava mais uma fatia
do pão de aveia.
Ele
levou o olhar para o pasto, precisava se recompor, estaria de volta à vida nas
próximas horas. Já não pensava no
coronel, pensava na esposa.
—
Eu preciso comprar um presente para a Matilde, flores por exemplo.
—
O Custódio já comprou, tá lá no carro.
Nesse
instante, Francisco sentiu que vida estava retornando para suas mãos. Viu
Custódio limpando as rodas do automóvel.
Lembrou da história de seu pai ter acolhido e protegido toda a família
dele. “Meu pai nunca se vangloriou disso, ele sempre fazia por amor”...
Custódio tem um bom coração, vamos seguir juntos nossas estradas.
—
Vamos, Francisco, não podemos perder o trem. – E riram.
Custódio
pensou em tudo, no carro, uma mala de roupas e um ramalhete de rosas vermelhas.
—
Viu as flores? O senhor trouxe de viagem para sua Matilde – Riram de novo.
UM AMOR MAIOR QUE O ÓDIO
Custódio
foi até Indaiá, estação que antecedia sua cidade, e lá deixou Francisco com
malas e flores, em tempo de pegar o trem de BH. De lá, ele seguiu para sua
cidade, conversou com muita gente, disse que o patrão estava chegando da
capital. E quando o trem parou na plataforma, Custódio tratou de fazer uma
algazarra para que todos o vissem desembarcar.
Francisco
ainda parou no café da estação e comprou uma água gelada.
—
Estou muito cansado. Mas que calor está fazendo aqui, hein, Custódio!
E
assim seguiram direto para a casa de Matilde.
No
portão, Francisco chamou-a pelo nome, e gritou:
—
Eu voltei, minha querida!
Matilde
saiu em desembalada carreira, e se jogou em seus braços. Ela chorava e ele
enxugava as lágrimas. Depois, as flores, o beijo, os olhares, a cumplicidade.
Lá
de dentro saiu Flora e tratou de cumprimentar Francisco com um abraço apertado.
—
Sabem da novidade, disse ela. Acabei de ouvir no rádio. Encontraram o coronel
morto no rio neste sábado. Alguém atacou ele com um cutelo.
Todos
mostraram-se perplexos. Menos Custódio que tratou de corrigi-la, não foi
cutelo, foi uma foice...
—
Como você sabe? Ela quis saber.
—
Estive no velório dele, e esse era o assunto. Ninguém sabe quem foi. Pode ser
qualquer um desta cidade....
Flora
concordou com ele.
E
todos entraram para apreciar o almoço que Flora acabara de servir.
Francisco
e Matilde tinham muito que conversar.
A
emoção do dia foi tanta que o bebê deu sinais de querer nascer ali mesmo
durante o almoço. Num instante, estavam na Santa Casa. Flora estava
enlouquecida de alegria. Enfim, a família estava unida.
Francisco
e Custódio estavam ansiosos.
—
Seu pai estaria muito orgulhoso de um neto, Francisco.
Logo
chegou Maria, todos torcendo para um parto feliz.
Flora
abraçou Francisco com muita ternura:
—
Agora, vamos esquecer o passado. Temos um futuro de muitas alegrias pela
frente. Quero estar viva para ver a casa cheia de crianças, hein!
E amor venceu o ódio..
EPÍLOGO
O ETERNO CORONEL BORGES
Aquele
local afastado da cidade me assegurava uma grande tranquilidade e o isolamento
que eu gostava de ter quando queria pescar. Apenas um leve rumor das águas do
rio embelezava o silêncio que dominava aquele ambiente. Eu escolhia as tardes
de temperatura amena, preparava minhas tralhas de pesca, e me sentava sempre à
beira da mesma barranca do rio. Ali era um trecho em que as águas eram bem
profundas, bastante piscosas. Lançava o anzol e deixava o tempo passar enquanto
pensava na vida. De vez em quando um puxão na linha anunciava mais uma pequena
vitória. Eu girava a carretilha e logo me regozijava em ver minha nova vítima,
debatendo-se em desespero. Isso me trazia um sádico prazer.
Na
última vez em que eu estava num desses momentos, esquecido de tudo, esquecido
até da Matilde que me irritava com a sua insistência em querer procriar, ouvi
um ruído atrás de mim. Não deu tempo de me voltar e já senti um golpe que quase
arrancou o meu braço. Nem vi quem foi. Desequilibrado, despenquei da barranca e
caí no rio, bati a cabeça numa pedra, perdi os sentidos e afundei. Não sei
quanto tempo fiquei no fundo do rio, até que uma mão muito forte me agarrou e
me içou para um barco.
Acomodado
no barco, à minha frente um homem enorme, de aspecto grotesco, me dizia: Meu
nome é Caronte, e o meu serviço é transportar pessoas como você para o destino
que escolheram.
Em
pouco tempo chegamos à margem. Inúmeras figuras nuas e repugnantes, em atordoante
algazarra, cercaram o barco e me empurraram para o portal do inferno. Seus
corpos de cor cinza-chumbo exalavam um forte cheiro de enxofre, seus chifres e
rabos não me deixaram mais nenhuma dúvida. E então aqueles diabinhos me
disseram que o fogo não destruiria a minha alma, apenas a faria arder para
sempre, numa eterna purificação.
E
zombaram de mim quando lhes disse “sou o Coronel Borges”.
Faço
este relato póstumo para que sirva de alerta aos leitores de que, assim assim como acontecia
comigo, também vivem como quem não acredita na condenação eterna...
Ficou muito boa a história. Acho que não precisa mexer em nada. Adelaide
ResponderExcluirAs alterações foram muito boas, alterando a ordem dos capítulos e incluindo mais um personagem importante (Custódio), ao final resolvendo as pendências e dando uma boa sequência para a história.
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