Quando tudo desaba
Adelaide Dittmers
O apito estridente e um estrondo ensurdecedor
acordaram o casal na madrugada sem estrelas. Como autômatos levantaram da cama,
cambaleando no escuro. Do outro quarto, um choro aterrorizado invadiu o
silêncio. Tropeçando, a jovem mãe foi até a cama da criança, que,
agarrada a uma boneca, abraçou-a e pulou para o seu colo. Shirley tentou
acalmá-la, enquanto rapidamente a embrulhou no cobertor. O marido veio
ajudá-la, pegando a menina. O pavor transparecia nos rostos dos dois. A
urgência os impeliu para fora do apartamento. Descalços e com roupas de
dormir, começaram a descer as escadas no meio dos outros moradores. A
correria os esquentara, apesar do frio intenso do inverno londrino. Um
casal de idosos tentava se equilibrar na corrida escada abaixo. O homem
tropeçou e foi amparado por um dos moradores. Duas crianças, chorando
perguntavam sem cessar, por que estavam saindo de casa. A mãe apenas
respondia que precisavam sair e depois explicaria o porquê.
O semblante de cada um era carregado pelo medo e o
instinto de salvar a vida. Os bombardeios na grande cidade eram uma
constante fonte de preocupação e desalento, porém era primeira vez, que aquela
região estava sendo bombardeada.
Na rua, onde o vento gelado varria o chão com sua
força, eles dispararam em direção a um abrigo antiaéreo, que ficava a uns cem
metros de distância. Corriam e olhavam para o céu aterrorizados ao
perceber que as bombas caiam cada vez mais perto.
Cansados e sem fôlego, alcançaram o abrigo e se
amontoaram no lugar. Um forte estrondo abalou o lugar e muitos gritos
foram ouvidos. O horror da situação estava estampado em cada um.
Alguns murmuravam orações. Outros choravam baixinho. Aquela
bomba com certeza atingira suas casas, pensavam angustiados. Muitas crianças
pararam de chorar, emudecidas pelo medo que o forte estouro causou em suas
tenras vidas.
Shirley e John tentavam disfarçar o terror,
que lhes enchia por inteiro e lutavam
para acalmar a menina, que se agarrava a eles.
A proximidade uns com os outros abrandava o frio,
mas o cheiro do medo empesteava o ambiente. A cada bomba que caia,
agarravam-se mais uns aos outros, como se unidos, pudessem vencer a tragédia
que lhes estava acontecendo.
Depois de algum tempo, que lhes pareceu uma
eternidade, o barulho do bombardeio foi ficando distante e cessou.
Um pesado silêncio invadiu o lugar. As pessoas ficaram estáticas,
paralisadas pelo estupor que as tomara.
Aos poucos, começaram a se movimentar e a se
levantar do chão muito devagar, como se estivessem carregando um peso enorme em
suas costas. Lentamente, foram saindo do abrigo. A desesperança e a
angústia estampada nos olhares.
Vários gritos de desespero e choros incontidos
chacoalharam aquela pobre gente ao ver a destruição à sua volta. Diante
de seus olhos, parte dos prédios, que não resistiram ao ataque, obstruíram
a rua, cheia de restos das construções, que foram seus lares.
Shirley e John se entreolharam. O frio
penetrou neles, não só no corpo, mas na alma. O que seria deles? O que
seria da pequena aninhada entre os dois. Quase morreram. Tinham
perdido tudo. Não precisaram falar. Todas essas indagações foram trocadas
apenas pelo olhar perdido que trocaram.
Nesse momento, sons de sirenes foram ouvidos.
Ambulâncias chegavam ao local. Primeiro atenderam idosos e pais com
crianças. O casal e a filha entraram em uma delas e foram levados a um
hospital. Lá foram aquecidos por grossas mantas para evitar uma
hipotermia. Depois de examinados, foram encaminhados para um grande
galpão, onde ficariam até que pudessem resolver como tocar a vida.
Dois dias depois, John e Shirley, munidos de muita
coragem, foram até o lugar em que viveram. Metade do prédio jazia
mutilada no chão. Bombeiros trabalhavam para retirar destroços da rua.
John baixou a cabeça, balançando-a de um lado para
o outro. Um profundo e trêmulo suspiro irrompeu do mais íntimo do seu ser.
Sentiu-se destruído, como a construção à sua frente. Shirley apertou o braço do
marido, para lhe dar e receber força e o choro a sacudiu, como o vento sacode
as folhas de uma árvore. O marido passou a mão pela cabeça dela, tentando
consolá-la e a consolar a si mesmo.
Endireitando o corpo se dirigiu a um bombeiro e lhe
perguntou o que fariam com o prédio.
— Temos que demolir. Há perigo de desabamento.
O rapaz franziu a testa e apertou os lábios. Parte
da sua vida iria desabar também. Com a voz embargada pela emoção,
perguntou-lhe se poderia subir pelos escombros para pelo menos procurar os
documentos da família. Um sonoro não foi a resposta. Era
perigoso. O bombeiro, no entanto, percebendo a tristeza e a impotência do
casal diante daquela desgraça, compadeceu-se deles e se ofereceu para subir e
tentar achar os documentos.
— Vai ser perigoso para você também.
Argumentou John.
— É perigoso, sim, mas somos treinados para
enfrentar situações de risco. Só me diga, onde provavelmente poderei
achá-los. Estão na parte do prédio que resistiu à bomba?
— Sim. Nosso quarto está de pé. Dá para
enxergar daqui. Os documentos estavam em uma pasta azul, em cima da
escrivaninha, no quarto.
O bombeiro avisou os companheiros e foi subindo
pelo que restava das escadas. Meia hora depois, coberto pelo pó, apareceu
no pé da escadaria. Na mão uma pasta azul, que levantou como um troféu e
um sorriso de vitória.
Shirley e John correram em sua direção e o
abraçaram agradecidos. Tinham perdido tudo, mas pelo menos tinham nome e
sobrenome no meio da bárbara guerra.
John, então, levou o olhar para a mulher e disse com voz baixa, mas firme.
— Tudo que tínhamos está perdido, mas temos um ao
outro e nossa filhinha. Temos que seguir em frente. Um dia esse pesadelo
vai acabar. Vamos buscar Suzy e sair de Londres. Seus pais moram no
País de Gales. Vamos tentar chegar lá e de lá partiremos para a Irlanda, que é
um país neutro. Sei, por amigos, que há barcos que transportam pessoas
que querem sair da Inglaterra. Vamos conseguir, tenho certeza.
Shirley levantou os olhos tristes para o marido, concordando
debilmente com a cabeça;
Buscaram a pequena Suzy, que ficou com uma amiga e
foram para a estação. Tinham conseguido uma quantia em dinheiro, que os
ajudaria a fazer a longa viagem.
Na estação muitas pessoas tentavam sair da
cidade. Conseguiram com muita dificuldade, depois de horas de espera, uma
passagem para uma cidade fronteiriça ao País de Gales. Lá embarcariam em outro
trem para chegar à casa dos pais de Shirley e preparar a saída da Inglaterra.
Da janela do trem viram a cidade ir se
distanciando. Parte da vida deles tinha ficado lá sob os destroços. Eram
jovens, poderiam reconstruir uma nova vida. Foi nesse momento, que com um
sorriso desconsertado e com os olhos iluminados por duas lágrimas, Shirley lhe
contou que estava grávida.