CINQUENTA ANOS DEPOIS
Hirtis Lazarin
As dores nas costas eram bem maiores que a vontade de
dormir. Com dificuldade, acendi a luz
fraca do abajur e vi que já era depois de uma hora da manhã.
Liguei a televisão e fiz um “tour” com o controle
remoto. Poucas opções. Bem, notícias são sempre bem-vindas, mesmo
que repetidas.
“O vilarejo de Curon, ao norte da Itália, acaba de emergir,
após o esvaziamento das águas da represa para conserto de equipamentos da
hidroelétrica”,
Levei um choque e, até agora, momento em que estou escrevendo
este texto, não me restabeleci.
Escombros do que foram paredes, muros, risos, preces,
degraus, parabéns à você, cômodos, sonhos estavam ali misturados feito
barro. Ainda gritando...
Foi então que, sem querer, destampei o frasco como o de um
perfume, e liberei lembranças guardadas por cinquenta anos. Cinquenta
anos! Acreditava que a passagem do tempo
já as tivesse descolorido. Que nada! Saltaram vivas e multiplicadas.
Pés descalços, cabelo desgrenhado, mãos abanando para a
felicidade e sorriso atravessado de poesia.
Era assim que nossa turminha, cheia de pensamentos longe de compreender
a vida, virava e revirava os cantos do vilarejo de Curon.
Algumas de nossas tantas alegrias eram: correr atrás das cabras
até se perderem no descampado, saltar muros, pular cercas em busca de manga
verde apanhada no pé, colher matinho e flores pra enfeitar o altar da padroeira,
Santa Catherina, aquela à quem os adultos tanto rezavam e faziam pedidos.
O padre Piero tinha o rosto cheio de preguinhas e
ensinava-nos o catecismo toda sexta-feira. A gente nunca faltava porque ele nos
servia suco de groselha e pão com queijo fresco. Podíamos comer quantas vezes quiséssemos.
Obrigava-nos a rezar dez ave-marias e dez padre-nossos quando
ficava bravo com nossas sapequices.
Descobrimos que a moradora que não se casou e ia rezar todos os dias era
quem nos dedurava. De bronca, a gente
batia na porta da sua casa e saía correndo.
A torre da igreja era tão alta que cutucava as nuvens. O sino, não sei como, avisava que já eram
seis horas da tarde. Ai de nós se não
estivéssemos de banho tomado e prontos pro jantar, comida quentinha e cheirosa
na mesa preparada por Mamãe Rosina. Lembro-me que todo dia, papai repetia: “Ela
não é uma artista? Mas comer que é bom
... só depois de cinco minutos de oração.
Nosso maior sonho era
poder subir a escadaria que levava ao pico da torre. Eram mais de mil degraus. O padre, muito cuidadoso, pendurava no
pescoço a chave da porta que dava acesso às escadas. Era de ferro, bem pesada e maior que duas
mãos juntas. Ele só permitia chegar ao
primeiro degrau. Era ali que esticávamos
tanto o pescoço e nossa fantasia brotava como grama no pasto. A torre escura e gelada deixava os pelinhos
do corpo arrepiados. Lá no alto, com
certeza, moravam fantasmas. Podiam-se
ouvir sussurros e gemidos. Acho que as
pessoas que morriam viravam fantasmas.
A maravilha de tudo era que, para nós, tudo era maravilha.
Até que um dia, três homens desconhecidos, vestidos de terno
escuro e gravata vermelha, chegaram a nossa vila, num carro Ford. Nunca me esqueci desse nome “FORD”.
A notícia era de que, no prazo de trinta dias, deixaríamos as
casas e seríamos transferidos pra outras aldeias. Era uma ordem e não
opção. Curon seria inundada para a
construção de usina hidroelétrica.
Foi a primeira vez na vida que vi tanta gente junta agarrada
a uma dor tão intensa e tão igual.
Era sofrimento de
alma.