Ainda há tempo para amar.
CONTO COLETIVO DO ICAL 2011
Autores:
Suzana da Cunha Lima — Dinah Ribeiro Amorim e outros alunos da Oficina de
Textos do ICAL.
Uma brisa fresca e ligeira tocou os cabelos castanhos da menina enquanto
compenetrada lia uma história de amor — Que gostoso! — pensou ela.
Era julho e as férias a levaram para a distante cidade de Lapinha no estado de
Minas. Sua tia a convidara para ajudá-la com o complicado computador que
adquirira há quase seis meses e até então jazia empoeirado no quartinho de
coisas daquela antiga casa de fazenda — Esse negócio é muito complicado de
lidar com ele! — Dizia Dona Hermínia para Ângela quando a levou para sua
cidade.
A garota tinha habilidade com a web e com a manutenção de seu próprio computador, portanto foi muito fácil a montagem do equipamento. Aproveitou sua estada e pode dar algumas dicas para a tia solteira que sonhava com um namorado — Sabe a filha da Dona Augusta, aquela vesguinha que veio aqui ontem à tarde? Pois ela está casada com um marido ótimo, menina. E eles se conheceram sabe onde? Na INTERNET. Isso mesmo, eles se conheceram numa sala de bate-papo, eu até anotei na minha cadernetinha de assuntos importantes. Eles namoraram quase um ano, trocaram fotos e correspondências, e somente depois ele veio conhecer a família dela, nem ela conhecia o noivo. E se casaram aqui, precisava ver a festa, uma coisa de louco, acho que a cidade inteira estava nela. Eu mesma fui convidada. Ela estava tão linda, parecia até que o pequeno defeito na vista tinha sido reparado. O amor faz coisas incríveis! — Contava radiante para a sobrinha.
Ângela aproveitou para dar alguns conselhos sobre namorar pessoas que não se
vê, sobre o perigo em fornecer dados pessoais para estranhos, e marcar
encontros em lugares ermos. A tia ouviu atenta, mas balançou a cabeça
negativamente, dizendo ser solteira de tanta cautela que teve na vida — Agora
chega! — Disse sorrindo.
Era uma quinta-feira preguiçosa, já com o sol se pondo atrás da mangueira e a
menina no caramanchão com os olhos enfiados nas últimas páginas de seu livro,
quando Dona Hermínia gritou lá de dentro:
— Ângela
vem aqui um pouquiiinho!
Ah,
não, não agora que a história está no fim — pensou respondendo:
— Espera um pouco. Vou já, já.
Ângela,
mesmo contrariada por ser interrompida em sua leitura, correu ao encontro de
sua tia para ver o que estava causando aquela gritaria toda!
Ficou
aliviada ao constatar que se tratava de uma resposta de um internauta
português, convidando-a para se corresponderem. Mandava-lhe algumas informações
sobre ele, morava numa cidade histórica: Évora, tombada como patrimônio
cultural; era um escritor muito interessado em conhecer o Brasil, país que
ainda não visitara, mas que já amava muito, por meio de tudo que lia a
respeito. Ele dizia achar os brasileiros muito alegres, musicais, simpáticos e
brincalhões! Trabalhava mesmo como funcionário público, mas nas horas de folga,
escrevia histórias num computador.
Sua
Tia não cabia em si de tão entusiasmada e queria responder logo, por isso,
precisava de sua orientação.
Mesmo
gostando do perfil do candidato, Ângela desconfiava, lá por dentro, que aquilo
não tinha muito futuro. Imagine… a tia sonhadora, morando no Brasil, numa
cidadezinha perdida de Minas e o outro, já experiente na Internet, um oceano a
separá-los. Mas não queria estragar o prazer dela.
Era bom vê-la animada, olhos brilhantes, como se um príncipe encantado estivesse ali mesmo, batendo à sua porta.
—
Bom, vamos lá, tia Hermínia. Ele contou um pouco como é a vida dele lá. Agora é
sua vez. Que tal escrever um pouco como é sua vidinha aqui? Garanto que ele não
sabe nada do Brasil, a não ser o que lê, vê e escuta pela mídia. E isso quer
dizer Carnaval, samba, alegria, talvez mulheres lindas na praia, de biquíni.
Faremos com que ele caia em sua realidade, para ver se o interesse dele é genuíno.
—
Mas minha vida aqui é muito sem graça, querida. Ele vai me achar uma roceira
boba, afinal, ele vive numa cidade que é patrimônio cultural, é escritor…
—
Tia, não adianta iniciar uma correspondência com mentiras. Sua vida aqui pode
lhe parecer tola, mas para quem mora noutro país, com outra cultura, é muito
mais interessante do que pensa.
Lembra
aquele livro Minha vida de menina, de Helena Morley, uma escritora mineira, um
sucesso enorme no mundo? Até um filme fizeram baseado no livro. Então, era uma
espécie de diário de uma meninota, narrando seu quotidiano muito simples, seus
sonhos, em Diamantina, final do século XIX. Que grandes coisas poderiam estar
acontecendo por lá? Imagine…. Então, tia, conte para ele como são as festas
juninas aqui, por exemplo, da delícia que é um pão de queijo, dos doces de
dona Evinha, da procissão do Santíssimo…. Garanto que ele vai se
encantar.
Hermínia
pôs se a pensar na grandeza da vida, e sua mente a levava para todos os mais
belos lugares do mundo, que ficavam ali mesmo na vizinhança de sua casa, na
redondeza de Lapinha. Tanta beleza havia na cidade, nas calçadas de pedras
desencontradas, nas paredes caiadas, nas telhas francesas, nas festas, nas
pessoas amistosas, nos sorrisos, na plantação que se via desde a rua de terra
batida. Nas tábuas amontoadas que formavam a ponte. Tantas delícias para
saborear, comidas típicas, galinhada caipira, peixe fresco empanado, doces
inventados, frutas guardadas em compotas, pães redondos com ervas finas. Beijos
roubados, camuflados, escondidos, disfarçados, todos apaixonados. Tantos sonhos
já amornaram a cabeça de Hermínia nas noites solitárias em sua cama
de lençóis alvos. Tanto tinha para contar para aquele admirador
distante que desejava conhecê-la. Hermínia pensou em dizer que já se casou
muitas vezes, pelo uma vez por ano, nas festas juninas, mas temia que ele não
entendesse a brincadeira, temia que ele não brincasse.
Ângela
interrompeu seus pensamentos lembrando-a de contar sobre seu jardim tão bonito que
ela mesma fez desde a primeira pá de terra. Hermínia assentiu com a cabeça, e
começou a digitar:
“Como
vai meu amigo? Eu aqui moro numa cidade pacata, cheia de beleza e frescor, que
bem merecia também ser Patrimônio de toda a Humanidade” — e continuou — “Aqui
sobra terra, e comida, sorriso e saúde. O tempo não passa, embora estejamos
sempre ocupados. Tenho quintal que virou jardim de flores perfumadas, todas
plantadas por minhas mãos. Minha casa tem dezenas de redes espalhadas para
qualquer um descansar. Aqui faz muito calor, mas não incomoda, pois, a
cidade está num vale de águas e mata. Gosto da vida quando ela é boa, e
da minha, gosto muito. Minha sobrinha Ângela veio passar férias aqui em casa e
me ensina usar esta novidade tecnológica, porém vejo que você é expert no
uso do equipamento.”.
Nesse
instante uma luz piscante avisava de arquivo enviado pelo MSN. Hermínia gritou:
—
Vem cá Angelita, o que é isso aqui que pisca sem parar? Será que já quebrei o
negócio? Vem logo minha filha.
Ângela
chegou às pressas, mas com o livro ainda aberto na frente dos olhos. “Calma aí
Tia, é só um arquivo que ele mandou. Clica no arquivo que abre”
E
estampou-se diante dos olhos de Hermínia um rosto másculo de pele morena
brilhosa, cabelos levemente grisalhos molhados que ainda escorriam, olhos
serenos quase convidativos, sorriso pequeno, corpo úmido de quem acabara
de sair de um mergulho na piscina que aparecia ao fundo. A sunga estreita
moldava o corpo do homem que parecia querer demonstrar prazer de
viver. Ele não era bonito, mas parecia fluir sentimentos. Hermínia ficou
estática admirando o amigo, até que a voz de Ângela a trouxe de volta “O que
achou dele Tia?”. A Tia não sabia se tinha que “achar” alguma coisa, mas
permaneceu de olhos vincados na fotografia que ocupava toda sua tela. “Volta lá
o MSN Tia, ele deve estar perguntando alguma coisa sobre a foto”. E havia
muitas perguntas, algumas pareciam vir de alguém confiante de
que a conquistaria, outras de um homem carente. Hermínia então respondeu
que recebera o arquivo, e que o lugar onde foi tirada a foto era muito bonito,
que havia uma piscina de águas bem azuis com o sol refletindo nelas e que dava
uma boa sensação de paz, e ao fundo dela uma mangueira espalhava a copa quase
que atrapalhando o banho de sol. Sobre o homem, ela disse parecer saudável,
tinha de olhar sereno e sorriso triste. É você? — Perguntou ela?
A expectativa de resposta é quebrada pelo curto-circuito ocorrido na central de
energia elétrica, deixando a cidade num blecaute total.
Aquela noite foi terrível para Hermínia que delirava à luz de vela numa
incontrolável ansiedade.
Era preciso saber mais sobre aquele homem que tocara tão profundamente seus
sentimentos.
Noite de insônia…Perguntas sem respostas…Restavam apenas as hipóteses.
Enquanto o coração se enchia de sonhos, os pensamentos ferviam em sua cabeça
como chaleira em ebulição, numa mistura de preocupação entre as observações de
Ângela quanto ao perigo da internet e o semblante da foto tão expressivo,
acompanhada é claro, pela sensualidade da pequena sunga.
Pesava-lhe o fardo em viver numa cidade desprovida de homens da sua idade. Ser
bela não era atributo para ser feliz. Era preciso ser amada — pensava ela. A
exemplo de sua amiga, estava disposta a correr risco, buscando na internet a
sonhada felicidade.
A energia elétrica foi restaurada com os primeiros raios de sol.
Ansiosa, andava de um lado para outro, esperando a sobrinha acordar, já que ela
pouco sabia manusear o computador. Ângela acabou sendo o cupido da tia,
embora tão criança…
O bate-papo com o internauta português, tomou uma dimensão tão grande, que o
rapaz já fazia planos para conhecê-la pessoalmente. Externava o desejo de
deitar numa rede dentre as tantas que haviam em sua casa, e poder escrever seus
contos visualizando o vale beirando a mata. O romântico cenário descrito por
Hermínia, também o levou a sonhar no outro lado do Oceano.
Mas os e-mails iam chegando às dezenas, sem parar, eles lotavam a
caixa postal de Hermínia. Nem todos vinham de Évora. Aliás, a maioria
não era de lá. E foi assim que a tia de Ângela percebeu a grandiosidade daquele
cenário virtual. Havia homens do mundo inteiro tentando falar
com ela, queriam saber da “sonhadora” habitante da brasileira
Lapinha. Ela chegou a pensar “como podia haver solitário no mundo, se existia a
internet? ”. Aventurou a abrir cada mensagem, e deliciar-se com tantos
candidatos. Não queria esquecer o português, não. Mas precisa saber até onde a
levava aquele horizonte tão fantástico.
Uma nova e excitante brisa soprou os ouvidos de Hermínia quando abriu a
mensagem de Lupércio, um fazendeiro brasileiro do Mato Grosso. Ele registrou
que era solteiro, embora já tivesse passado dos cinquenta anos, mas que tinha
muita vitalidade e a cabeça encharcada de bons sonhos. Disse não ter hábito de
usar a internet, e pediu antecipadas desculpas por qualquer erro até na
digitação.
Tinha um formato sério e respeitoso de falar, usava letras maiúsculas e
minúsculas, pontuava e acentuava com correção, não
usava gírias ou linguagem virtual, como a que Ângela a
havia ensinado usar. Os textos de Lupércio pareciam estar em uma carta
manuscrita que chegava pelas mãos do carteiro Juca. Todas as frases
pareciam vir de uma boca sorridente. Hermínia tentou imaginá-lo e então
ela pediu que ele lhe mandasse uma foto. Ele respondeu,
demonstrando contrariedade, que isso não seria possível, pois ainda não
aprendera a fazê-lo. Mas assegurou-lhe que era um homem bonito, de poucos
namoros, de cabelos grisalhos, e riu ao dizer que todos os dentes eram
naturais. Hermínia riu disso também. Ele continuou dizendo que nasceu na
fazenda que era de seu avô, depois de seu pai, e agora dele. Que viajava
às vezes, mas o trabalho o obrigava a permanecer em suas terras. Que
o lugar era um recanto especial do Mato Grasso, bem perto de Bonito, e quis
saber se ela conhecia a região…
Hermínia achou estranho Lupércio não saber enviar foto, já que parecia bem
despachado pela conversa no e-mail. Ora, ela também pouco entendia de
computador, porém, com as lições de Ângela, já estava se saindo muito bem
naquela correspondência pela Internet. Por que ele não fazia o mesmo, já que
praticamente todos os correspondentes gostavam de mandar foto e também de
receber? E também não entendeu a razão da contrariedade dele, já que lhe
assegurava ser um homem bonito e com bastante vitalidade.
Em
todo caso resolveu responder.
— Caro Lupércio. Não conheço Mato Grosso, mas já ouvi falar bastante de Bonito,
do Pantanal e das belezas aí existentes. É o maior ecossistema do planeta, a terra
das águas cristalinas, uma natureza soberba. Onde moro é bastante diferente,
mas igualmente belo. Aqui é bem montanhoso, estamos no sopé da Serra do Cipó.
Temos dois rios separados por duas montanhas e uma grande represa e nossa
região é rica em cachoeiras, fadada ao turismo. Mas ainda não temo
infraestrutura para isso, estamos começando. Nosso atual prefeito é muito
voltado para o ecoturismo e está focado em planejar o turismo de tal modo que
não agrida a natureza.
Enquanto isso vamos levando nossa vidinha, que é muito boa e saudável. Sou
professora aposentada, como lhe disse, mas trabalho na escola local como
coordenadora pedagógica. Não gosto de ficar parada e é uma ocupação muito
prazerosa, conheço quase todo mundo e muitas das crianças são filhas de
ex-alunos meus.
Ah, antes que me esqueça, minha sobrinha, que entende muito de computador, diz
que é muito fácil enviar imagens, fotos, desenhos, o que se quiser, pelo
computador. Estou aprendendo com ela. Quem sabe até lá aprendo direitinho e
você também e poderemos trocar fotos?
Bem Lupércio, fale um pouquinho de seu trabalho. Qual é a atividade principal
de sua fazenda? É perto de alguma cidade conhecida? Você costuma viajar para os
grandes centros? Tem algum objetivo maior na vida que ainda não conquistou?
Escreva um pouquinho sobre si, seus planos e sonhos, OK?
Aguardo notícias, um grande abraço, Hermínia.
Depois deste e-mail tão longo, Hermínia foi preparar um chá e chamou Ângela,
que ainda estava às voltas com seu livro.
— Venha tomar um chá, menina. Hoje fiz um bolo de laranja que está um desacato
de tão bom. Está esfriando, é bom você sair desta rede e entrar em casa.
Ângela veio correndo, estava com fome e começando a ficar com frio. Quando
estava entrando no alpendre da casa, notou um senhor bem-apessoado tocando a
campainha lá no portão.
— Tia, gritou para a cozinha. Tem uma pessoa lá na frente!
— Mande entrar, Ângela. — disse Hermínia, e esticou o pescoço para a janela
para ver quem era.
E quando olhou, seu coração começou a bater muito depressa, tirou rápido o
avental, ajeitou os cabelos quando passou no espelho da entrada e foi abrir a
porta para o visitante.
Ângela se espantou ao olhar a tia ruborizada e, ao mesmo tempo, faceira,
enquanto fazia aquele senhor alto e grisalho, de botas e chapéu, entrar na
sala.
Ângela
olhava boquiaberta para aquela cena inusitada. Nunca soubera de caso algum de
sua tia, nem namorado, nem candidato, nem nenhum apaixonado ou admirador
antigo. E agora, lá estava Hermínia conduzindo aquele senhor bem-apanhado para
a sala de visitas, visivelmente encantada.
—
Ângela, pediu Hermínia — traga uma bandeja com o café e o bolo para o senhor
Carlos. Ele é velho conhecido, sabe, e há mais de 25 anos que não nos víamos,
veja só. Nem sei como ele me encontrou aqui, nesta lonjura. Nós nos
conhecemos quando eu ainda morava em Belo Horizonte.
—
Muito prazer — disse Ângela, cumprimentando o Carlos — Sou sobrinha que está
passando as férias aqui.
—
Muito bonita sua sobrinha, Hermínia. — Disse o senhor sorrindo bem à vontade.
— Por que não vamos tomar este café lá na copa? Assim não precisa ninguém
arrumar bandeja. A gente senta lá na mesa da cozinha, como sempre
fazíamos, lembra-se? E com certeza o bolo deve ser aquela receita maravilhosa
da mãe de Hermínia, não tem outro mais gostoso em toda Minas Gerais.
—
Vamos então, concordou Hermínia. E aí você vai me explicar de que modo me achou
aqui.
Sentaram-se
à mesa e a prosa foi fluindo, regada a café quentinho e bolo de fubá.
—
Olhe Hermínia, disse Carlos — depois que nos separamos, logo depois de nossa
formatura, fiquei tão triste que resolvi sair de Belo Horizonte. Sempre
gostei do campo e trabalhei para um tio numa fazenda enorme que ele tinha no
Mato Grosso de agricultura e pecuária. Fiquei como braço direito dele,
coordenando tudo, o trabalho dos peões, os suprimentos, enfim, a rotina da
fazenda. Até ele morrer e me deixar como herdeiro, já que era já viúvo e não
tinha filhos. Acabei casando por lá, e tenho um rapaz de 20 anos que está
se formando em agronomia em Viçosa, louco para trabalhar comigo na fazenda.
—
Você é casado, então? — Perguntou Hermínia meio desconsolada.
—
Sou viúvo, minha mulher morreu de parto e nem a criança se salvou. Foi uma época
muito difícil na minha vida, nem gosto de pensar nisso — Carlos engasgou um
pouco, entristecido com a lembrança, mas logo retomou a conversa.
—
Não casou depois? — Perguntou Ângela, já interessada na vida amorosa daquele
senhor que bem podia ser um pretendente para a tia.
—
Não — respondeu Carlos, com um sorriso matreiro — Casar é coisa séria e por lá
só tem umas bugrinhas que não servem para ser esposa da gente. Tive umas
namoradas em Belo Horizonte, mas nenhuma se dispôs a viver comigo na fazenda.
Aí, alguém me falou de Hermínia, um colega de colégio, que me encontrei,
casualmente, numa feira de gado em Barretos.
—
Quem era, Carlos? — Perguntou Hermínia curiosa.
— O
Robertão, aquele cara gordo e engraçado que só vivia fazendo piada.
— O
Robertão? Espantou-se Hermínia — Ele sempre disse querer ser dentista. O que
estava fazendo numa feira de gado?
—
Trabalhando para o sogro, que é grande pecuarista. Sabe como é a vida.
— Ah
— lembrou-se Hermínia — Eu o encontrei uma vez que fui a Belo Horizonte,
tem dois anos, para o casamento de Martinha, minha sobrinha mais velha.
Ele é aparentado com o noivo dela. Que coisa, hein? Foi o Robertão que te deu
notícias minhas, então?
—
Foi, e fiquei muito animado. Ele me deu seu endereço, mas só pude vir agora,
tinha muitas coisas para ajeitar antes: a morte de meu tio, o inventário, meu
filho na Faculdade, enfim, tantas providências que um dia larguei tudo e
resolvi chegar assim, de improviso. A gente fica preso a estas coisinhas
da vida e esquece de viver.
Quando
Carlos, seu antigo amigo, fazendeiro em Mato Grosso, foi-se embora, Tia
Hermínia, contente, pôs-se a pensar no rumo novo que sua vida estava tomando.
Graças à vinda de sua sobrinha Ângela e a Internet.
Em
Lapinha, vivia calmamente, em paz, mas sem novidades. Uma vida muito insípida.
De
repente, quanta coisa boa estava acontecendo: novos amigos interessados em
conversar com ela, a amizade com o português simpático que já queria até a
conhecer e, agora, o antigo colega que veio visitá-la de tão longe, viúvo,
parecendo muito interessado em reatar seu relacionamento.
Realmente,
as coisas estavam mudando, acontecendo…
Todos
os dias, recebia notícias de Antonio, contando sobre seu trabalho, sua vida de
escritor em Évora, querendo saber também sobre suas atividades, sobre Minas
Gerais, as características do tipo mineiro. Já ouvira falar sobre Ouro Preto,
cidade histórica, também tombada e tinha grande curiosidade sobre ela.
O
rumo das conversas diárias de Tia Hermínia a estavam obrigando a estudar,
pesquisar, o que a agradava muito e tomava bastante seu tempo. Esquecia-se até
das tarefas diárias, que realizava às pressas, correndo para o computador.
Carlos,
o fazendeiro, voltava ocasionalmente, visitando-a e convidando-a para ir à sua
fazenda.
Achava-o
agradável, educado e simpático, não fazendo comparações entre seus novos
amigos.
Estava
deixando de ter confusões emocionais. Suas conversas com o português eram mais
intelectuais, sobre história, muito interessantes!
Com
Carlos, era uma amizade real, verdadeira, possível de se concretizar em
algo sério.
Deixaria
as coisas acontecerem…
Estava
na hora de Ângela voltar para a casa. Férias compridas, inesquecíveis. Em três
meses ensinara a tia a mexer no computador, entrar num site de relacionamentos
e garimpar possíveis candidatos ao coração dela, e ainda por cima,
apareceu um pretendente em carne e osso…
Mas
seu regresso deixou a tia muito triste, sem pai nem mãe, como dizem. Ajudou a
sobrinha a fazer as malas, empacotou os potes de geleia que
fizera para sua irmã, e pediu ao seu vizinho para levá-las à rodoviária. Na
volta, Hermínia veio chorosa, contando para João Alberto como haviam sido
maravilhosos os meses passados com a sobrinha.
Para
consolá-la um pouco, ele parou numa lanchonete recém-aberta e ofereceu-lhe um
café com pamonha fresquinha, especialidade da casa.
—
Nem sabia desta casa aqui e que pamonha gostosa, comentou ela, olhando mais
atentamente para seu vizinho, como se apenas naquele momento o tivesse visto:
um senhor forte, pele tisnada pelo sol, cabelos já grisalhando, um sorriso
bonito beirando à ironia.
— Tem
um mês mais ou menos, Hermínia, mas você não parecia interessada em mais nada,
a não ser nas conversas virtuais. Os amigos reais foram ignorados. — Provocou
ele enquanto sorvia o café quentinho, deliciado.
—
Não, não, não ignoro meus amigos — respondeu ela meio intrigada -. Mas como
você sabe das conversas virtuais, João Alberto?
— Eu
lhe via grudada no computador quando ia para o centro e nem uma vez você
levantou os olhos para olhar quem passava em frente na rua.
João
Alberto estava a provocá-la com seu jeito direto e franco. Mas era uma
provocação de sedução, pelo menos Hermínia sentiu assim. Olhou-o pensativo,
avaliando se sua percepção estava correta:
—
Tem razão, amigo. Mas é raro vê-lo dirigir esta pick-up, é sempre Tinhão quem
usa este carro. Você não estava fazendo um curso qualquer em Belo Horizonte?
Ele
sorriu:
—
Ah, lembrou-se, não é? Não é um curso qualquer. Fui defender minha tese de
mestrado.
—
Mestrado? Tese? Qual o assunto? — Perguntou Hermínia meio espantada pela sua
ignorância e já subitamente interessada. No seu entender, João Alberto era um
dos muitos fazendeiros rústicos do lugar, sem nenhuma tinta cultural.
— Outro
olhar para os substitutos viáveis dos agrotóxicos — respondeu ele
soltando as palavras devagar. — Sou agrônomo, caso não saiba.
—
Agrônomo? Nossa, João Alberto, me desculpe. A gente tem se visto tão pouco, não
é?
—
Quase nada, cara amiga. Mas, pretendo reparar esta falha logo. Vamos esquecer
por algum tempo estas conversinhas de computador que não levam a nada? Estou
lhe convidando para ir comigo, agora, no sábado, na Casa de Doroteia: terá um
conjunto ótimo tocando lá. Você gostava de dançar, pelo que me lembro.
—
Hermínia olhou-o meio surpresa, seus olhos azuis brilhando como duas
contas. Não sabia como estava encantadora diante de seu vizinho;
— Como
você se lembrou disso, João Alberto? Tem mais de três anos que não saio para
dançar.
—
Três anos! O tempo corre mesmo… admirou-se ele. — Naquela época você ia muito a
Belo Horizonte, sua mãe estava doente. Quantas vezes eu lhe levei à rodoviária?
Você ficou muito abalada com a doença dela e depois, com o falecimento.
—
Foram tempos duros mesmo. Acho que não fui boa vizinha e você sempre tão
prestativo…. Recorda a última vez que vim chorando o tempo todo, quando cheguei
aqui depois do enterro? Ah, João Alberto, você me deu um apoio enorme,
mas eu parecia alheia a tudo, morri um pouco por dentro também. — Suspirou
Hermínia.
—
Foi mesmo, menina. Você não queria saber de nada, trancou-se em si e
depois de umas semanas resolveu fazer um jardim, assim do nada! Foi como uma
compulsão, uma maneira de jogar no trabalho pesado todo seu sofrimento. — ele
falava pensativo, como a consolar, sua mão pousando na dela, distraído,
enquanto lembrava daquela época difícil.
—
Tem razão — concordou Hermínia, estremecendo ao toque leve da mão dele — Joguei
toda minha energia nas flores, esqueci meus planos, projetos, tudo enfim. Eu
estava fora de mim, mas hoje, após quase quatro anos, posso recordar de tudo
com tranquilidade. A dor se esgotou, ficou a saudade, uma boa saudade. — Sorriu
para ele, faceira. — E você sempre ao meu lado, insistindo que eu saísse de
minha concha, me convidando para sair, rever os amigos… e eu não queria nada,
acho que fiquei muito chata naqueles tempos.
—
Com certeza, d. Hermínia, ficou mesmo — retrucou João Alberto, feliz por vê-la
animada outra vez. Quantos rapazes queriam sair com você naquele tempo e você
dispensava todos… A mim também. Apesar do tempo que passamos juntos na fazenda
de meu tio, lembra? Chegamos até a engatar um namoro, mas logo sua mãe adoeceu
e você perdeu o contato com seu mundo aqui. Mas eu não desisti de você não,
apesar de todos os foras que me deu… — ele tomou um gole de café, rindo — Eu
queria tanto fazer reviver sua risada gostosa, ver seus olhos brilharem outra
vez…
—
Que bom que não desistiu, João Alberto. — Respondeu ela, faceira. Eu me
refugiei primeiro no meu jardim e depois no computador, nestes últimos
tempos. Visitei o mundo nesta ilha da Fantasia que se chama Internet. Não
percebi como aqui mesmo, nesta pequena terra onde moramos, a gente pode
encontrar a felicidade.
Ele
segurou-lhe as mãos, olhou-a docemente e falou:
— Já
encontrou e não vamos mais perder tempo não, Hermínia. Você conheceu outras
realidades por via virtual. Mas esse mundo não é o mundo real, o nosso mundo.
E se parar para olhar para mim, vai ver que sou de carne e osso, a
conheço bem e a amo. Sempre amei. Não deixarei você escapar de mim outra
vez, ah, não vou mesmo…
E
inclinou-se para ela, tomou-lhe o rosto entre as mãos e a beijou lentamente, num
beijo que parecia que não ia acabar mais.
Hermínia
arrepiou-se e corou, sentindo pela primeira vez o mundo latejar dentro de seu
coração, um mundo feliz onde não havia lugar mais para tristeza. Algum
tempo depois Ângela recebeu um e-mail dela:
—
Minha querida menina, veja como é a vida… Procurei em tantos lugares, até
em Portugal, lembra? E achei o meu companheiro aqui mesmo, em minha
cidade. Aliás, ele que me achou, pois somos vizinhos há muito tempo.
Mas foi ótimo você ter me ensinado a mexer no computador, abrindo um
mundo novo e maravilhoso para mim. Sempre vou lhe ser grata e espero ansiosa as
próximas férias para você voltar para cá e conhecer o novo tio que arrumei para
você.
Beijos
saudosos de tia Hermínia.
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