O
revés
Adelaide Dittmers
Na grande e luxuosa sala uma
discussão acalorada acontecia. Dois
homens disparavam palavras ásperas e acusações mútuas.
— Você me roubou, gritava o
mais velho.
— Não, não nunca roubei o
senhor. Sempre lhe fui fiel, mais até do
que deveria ter sido. Trabalhei como um burro de carga para o progresso de sua
firma. Aceitei trabalhos que nunca
deveria ter aceitado. E o que recebi em
troca, nada, nada. E agora ainda me
acusa de roubo, justo o senhor. O que
ganhei da empresa era meu por direito.
Você sabe que tenho poder
para colocá-lo na prisão! Gritou o homem.
— O senhor é que tem que
confessar muita coisa seu traidor miserável!
Não vai me colocar atrás das grades, usando o seu poder. Não pode forjar
um roubo que não fiz!
Nesse momento, o mais jovem
saca uma arma e atira várias vezes. E sai apressado daquele lugar.
O velho cai no chão e o
sangue espalha-se pelo luxuoso tapete persa.
Uma jovem sai detrás de uma
porta. Tinha escutado parte da discussão e viu quando o pai foi atingido. Corre em direção dele. Tenta desesperadamente reanimá-lo, mas
percebe que não pode fazer nada. Seu pai
está morto. Cai num pranto sentido e
convulsivo. Seu querido pai, a quem
sempre admirara e amara fora morto por um homem, em que sempre confiara.
Uma ira intensa a invadiu.
Um sentimento forte e desmedido de raiva apossou-se dela.
Era uma moça, que crescera
protegida, que recebera tudo o que quis, mas ao mesmo tempo era independente e
firme nas suas decisões.
Levantou-se. Seu rosto
parecia feito de pedra. Seus olhos
soltavam faíscas de ódio. A revolta
enrijecia seu corpo. Pegou o celular e
ligou para a polícia, e em voz alta falou para si mesma: “Borges, você vai
pagar pelo que fez, eu juro, pai.
Depois de uns vinte minutos
chegou a polícia e ela contou tudo o que vira.
O agente perguntou:
— Por que não interferiu
para evitar o crime?
— Não imaginei que ele estivesse
armado, nem que tivesse coragem de fazer algum mal a meu pai. Me escondi para
ver o que estava acontecendo, mas não me passou pela cabeça que iria ter esse
desfecho.
— Você o conhecia bem?
Perguntou o policial.
— Sim, era o braço direito
de meu pai e frequentava minha casa com a família. É casado e tem dois filhos
pequenos.
—Você é a única testemunha.
Vai ser chamada para prestar declarações.
— Estou à disposição. Quero justiça! Respondeu a moça, firmemente.
Depois de examinar a cena do
crime e tirar várias fotos, os agentes de polícia providenciaram a retirada do
corpo e o encaminharam para o IML.
Roberta foi para o quarto. Estava extenuada. Ligou para a mãe, que estava viajando com
amigas. Seu rosto estava sério. Suas lágrimas haviam secado. Uma aparência fria apareceu em seu rosto e
seus olhos brilhavam, parecendo tomados por um fogo interior.
No dia seguinte, Borges foi
indiciado por homicídio, mas como não foi localizada a arma do crime, e a filha
foi a única testemunha do acontecido, não houve provas suficientes para prendê-lo,
embora as investigações continuassem.
Roberta não se conformou ao
ver o assassino de seu pai não ser preso e ficou mais revoltada ainda ao saber
que, como era a única que estava na casa e assistira a tudo, seria alvo de
investigações. Contudo, sua mãe e várias
pessoas ligadas à sua família, inclusive os empregados da casa, testemunharam a
seu favor, contando a relação de afeição e respeito recíprocos entre pai e
filha e ela foi ilibada.
Essas averiguações a
deixaram mais transtornada ainda. Como puderam
suspeitar dela? Uma onda de indignação a
invadiu e o desejo de vingança cresceu, atingindo o mais profundo de seu ser.
Já passava da meia noite e
ela não conseguia dormir. Seu olhar
perdia-se na penumbra do aposento, onde os móveis lhe pareciam fantasmas que
conspiravam com ela.
Aos poucos foi delineando
seu plano e no fim da madrugada, com o dia já querendo entrar pela janela,
adormeceu com um sorriso nos lábios, pois sabia o que iria fazer.
Naquela mesma manhã, ligou para
o Borges. Sempre percebera nele um
interesse por ela. Era uma linda mulher,
inteligente, decidida e corajosa.
Fascinava muitos homens e Borges não pareceu indiferente aos seus
encantos e mais do que isto, muitas vezes ela notava nele um olhar apaixonado,
que a deixava constrangida. Fingia não
perceber suas atitudes, afinal era um homem casado e de confiança de seu pai.
Borges olhou para o celular
que tocava, e a surpresa estampou-se no seu rosto. O que Roberta quereria com
ele. Acusá-lo novamente. No entanto, a
curiosidade o venceu e atendeu a chamada.
— Alô, Roberta! Falou em tom
seco.
—Olá, Borges! Como você
está? Ela perguntou em um tom, que
aparentava tristeza.
— O que você quer de mim?
Ele indagou meio exaltado.
— Calma! Pode baixar o
tom. Não liguei para acusa-lo. Quero conversar com você e saber os motivos
que o levaram a matar meu pai, com quem você trabalhou por anos e o ajudou a
chegar aonde chegou.
— E aonde cheguei, por acaso
a mocinha sabe? Pare com essa conversinha! Não vou cair nessa!
— Deve haver um motivo muito
forte para justificar o que você fez. Ela falou em um tom irônico.
— Não vou falar nada. Pensa que sou idiota! Você deve estar
gravando a conversa para usar contra mim.
— De jeito nenhum, e para
provar isso, gostaria de marcar um encontro com você.
— Para que?
— Pensei muito em tudo e
conclui que houve algo muito sério entre você e meu pai para você fazer o que
fez.
— Você ficaria surpreendida
se soubesse. Não sei se devo
contar. A imagem de santo, que tem de
seu pai cairia por terra.
— Eu quero saber. Eu preciso saber para continuar a levar minha
vida daqui por diante.
Mas se alguém a pudesse ver naquele momento,
constataria a descrença e o desprezo pelas palavras do rapaz;
OK, então que tal amanhã, às
três da tarde nas proximidades da Oca, no Parque Ibirapuera.
— Fechado! Até amanhã!
Roberta sorriu. Seus olhos brilhavam de satisfação.
Conseguira o encontro. Iria começar a
sua vingança.
A tarde estava linda, a
primavera desabrochava pelo verde do parque.
O céu, bordado de nuvens brancas, que, empurradas pelo vento brando,
formavam várias figuras diferentes, tingia-se de um azul profundo. As árvores balançavam seus ramos suavemente,
numa dança ritmada.
Na hora marcada, Roberta
postou—se perto da Oca. Respirou fundo
várias vezes, como que ganhando forças para o que ia acontecer.
Após uns instantes, Borges
chegou, um belo homem na casa dos quarenta, cabelos já meio grisalhos e traços
firmes e definidos.
Roberta o cumprimentou, sem
estender a mão. Ele devolveu o
cumprimento. Estava sério e com um ar
inquisidor. O que queria ela, perguntava-se intimamente.
— Vamos para perto do
lago. Podemos nos sentar num banco ou
mesmo na grama, disse ela.
— Vamos, então!
Andaram pelo parque até
chegar quase à beira do lago e se sentaram em um banco à sombra de uma alta e frondosa
árvore.
Roberta soltou um suspiro
vindo de dentro de sua alma e disse num tom firme:
— Pois bem, me diga seus
motivos.
— Primeiramente, preciso
dizer que foi um ato desesperado e impensado!
— Não, você premeditou o
crime. Estava armado!
— Queria só assustá-lo com a
arma. Não pretendia usá-la. Ele
precisava confessar o que tinha feito! Falou, alterando sua voz.
— Mas o que ele tinha que
confessar? Pelo que ouvi, você estava
sendo acusado de roubo!
— Outra mentira de seu
pai! Calma, vou lhe contar tudo.
E com palavras lentas e
pausadas contou a sua história.
—Trabalhei com ele, como
você sabe, por muitos anos, desde muito jovem e o admirava muito, mas com o
tempo fui descobrindo que sua fortuna era conseqüência de inúmeros atos ilegais
para atingir seus fins de lucrar cada vez mais.
Ele não hesitava em lesar alguém para conseguir o que queria e comprava
as pessoas para aumentar mais e mais o seu patrimônio. Várias vezes, pedi minha
demissão, mas ele não consentia. Eu sabia demais!
— Não é possível, meu pai
não era assim. Você está mentindo! Ele
fazia tanta filantropia! Era muito admirado por isso! Interrompeu ela,
levantando a voz.
— A filantropia disfarçava
as falcatruas. Ele falou sério. E
continuou: E tem algo que nunca lhe falei.
Eu sempre fui apaixonado por você, Roberta. Tinha baixado a voz e olhou-a nos olhos e seu
rosto refletia uma tristeza, que parecia ter sido guardada por muitos anos.
— Não acredito! Você se casou com a Júlia! Disparou exaltada.
—Casei. Mas, anos antes tinha falado a seu pai sobre
o que sentia por você. Achava que tinha que lhe dar satisfação de tudo. Ainda confiava nele naquela época. Ele com
muita firmeza me dissuadiu da idéia.
Falou da diferença da idade de doze anos que existia entre nós e que,
apesar de eu ser seu fiel escudeiro, ele esperava que você fizesse um casamento
com alguém com as mesmas condições financeiras e que nunca notou seu interesse
por mim. Nesse momento, bateu nas minhas costas, como querendo se desculpar
pelo que havia dito. Nesse dia fui para
casa desiludido e decepcionado, me sentindo inferior.
— Não estou entendendo! Você
nunca me falou sobre seus sentimentos. Por que passou por cima de mim e falou
direto com meu pai. Como podia saber o
que eu sentia por você?
— Sempre percebi que você
retribuía a meus sentimentos. Seus olhares, suas atitudes...
— É verdade! Eu o admirava
muito. Achava você o máximo, um homem
lutador, inteligente e gentil. Por que
não falou comigo? Por que não lutou por mim?
— Mais do que ninguém, você
sabe que seu pai era um homem carismático e convincente. Conseguia subjugar qualquer um com seus
argumentos e falsos gestos de afeto.
Roberta estava pasma. Seu
rosto refletia um mar turbulento, repleto de dúvidas e angústias. As acusações
de Borges não poderiam ser verdadeiras.
No íntimo, no entanto, lembrava do pai carinhoso e sempre disponível
para ela, mas altivo e firme para com todos.
Lembrou—se que muitas vezes ele se trancava no escritório de casa, para
ter longas conversas veladas com pessoas, cujo nome e assuntos tratados, nunca
mencionava. Pensou em sua mãe, que
disfarçava sua infelicidade por ele não ter tempo para ela e talvez por isso
levasse uma vida fútil e sem sentido.
— Mesmo assim, se tudo isso
for verdade... ela falou com uma voz apagada.
Você não tinha o direito de assassiná-lo. Não tinha!
— Perdi a cabeça. Estava fora de mim. Naquele momento, odiei-o
e a mim mesmo por ter sido
seu
pau mandado, por tantos anos, respondeu ele num tom exaltado.
— E tem mais! Acrescentou
devagar.
Roberta aguardou calada e
receosa, o que tinha por vir.
— Descobri há pouco tempo
que seu pai mantinha um relacionamento com minha mulher. Nunca a amei
perdidamente. Foi para mim uma grande
amiga em quem confiava e me entendia.
Por isso casei-me com ela. Tinha perdido meus pais, me sentia muito só.
Então, quando descobri a traição dos dois, meu mundo desabou. Não poderia nunca mais confiar em
alguém. Fui usado muitas vezes por seu
pai em suas negociatas e minha melhor amiga me enganou descaradamente.
Lágrimas desciam pela face
de Borges. Silenciou e baixou a cabeça
envergonhado pela sua fraqueza.
Roberta estava atônita. Empalideceu. Tinha tramado todos os passos de
sua vingança com todo o cuidado e agora toda essa revelação. Pelo estado emocional do rapaz, percebeu que tudo
era verdade. Como ela não enxergara quem
era seu pai.
— E Júlia, por que traiu
você? Sempre pareceu tão apaixonada e
ciumenta até demais.
— Ambição. Apesar de ser uma boa companhia, adorava
dinheiro.
Num impulso, que nem ela
conseguiu entender, a jovem abraçou aquele de quem queria se vingar. Um abraço longo e amoroso. O rapaz surpreendido abraçou-a também. Amava aquela mulher, como nunca tinha amado
ninguém. As lágrimas dos dois se misturaram como um rio que se encontra com
outro.
— Me perdoe! Queria me
vingar de você. Tinha engendrado um plano terrível para feri-lo. Agora sei que nunca conheci meu pai. Ele foi uma farsa.
Os dois continuaram unidos
por aquele abraço inesperado como dois edifícios que ficam juntos para não
ruir.
Depois de algum tempo se
afastaram e se olharam ternamente. Borges contou—lhe que se separara de Júlia.
Falou que toda sua vida foi uma mentira e que não tinha nenhum orgulho de sua
fraqueza em não sair da empresa e romper com
o pai dela. Agora ainda teria que carregar para o resto
da vida o remorso por ter matado um homem.
Roberta fitou-o longamente e
de súbito empertigou-se e com uma voz firme e decidida falou:
—Vou te confessar uma coisa,
que sempre guardei dentro de mim a sete chaves.
Sempre te amei desde menina, mas te achava inatingível como um ídolo,
que só poderia ser admirado de longe.
Por isso, quase enlouqueci ao presenciar a morte de meu pai. Minhas emoções se atropelavam, iam da
desilusão ao ódio. Não sabia o que fazer
com elas. Agora tenho uma certeza. Não podemos nos deixar abater. Vamos
reconstruir nossas vidas. Vivi um engano até hoje. Você foi usado e traído. Levantou—se.
Ele, aturdido, olhou para ela e um sorriso triste estampou-se em seu
rosto.
Deram—se as mãos e com
passos lentos seguiram para seu futuro.
Um pássaro cantou
alegremente. O céu vestira—se de sua
roupagem rosa, azul e roxa do entardecer e se refletia no plácido lago, onde um
chafariz jogava sua água para o alto, formando pequenas ondas ao seu
redor. O sol, vestido de um laranja
intenso, lançava seus raios luminosos, numa linda despedida ao dia que morria
até o outro nascer.