Por um triz
Adelaide
Dittmers
O
jovem andava apressado. O rosto contraído e sério tinha uma expressão de desespero. Não enxergava ninguém à sua frente. Esbarrava
nas pessoas. Parecia um autômato movimentando
pela multidão. Pensamentos contraditórios chocavam-se em sua mente pela derrota
que teve naquele concurso. Tinha se
esforçado tanto. Atravessou várias
madrugadas sem dormir. Como iria contar
isso ao pai, que sempre fora tão exigente e não admitia derrotas. Durante a
infância e adolescência era cobrado a todo instante pelo seu desempenho. Queria que o filho fosse seu espelho. Um vencedor.
Nunca quis cursar direito. Nunca almejou chegar a ser desembargador ou
ser, como nos sonhos mais insanos de seu pai, um juiz da Suprema Corte. Estava
farto de tudo isso. Perdera a namorada, porque era inseguro e não conseguia
tomar decisões.
Com
esses sombrios pensamentos, chegou ao edifício da empresa do pai para lhe
comunicar o acontecido, mas subitamente, um desejo premente de tomar ar antes
de enfrentar a ira dele o levou ao terraço do último andar do prédio.
Ao chegar lá, olhou a cidade, que se estendia
embaixo, pontilhada por altos edifícios.
Quantas vidas atrás das muitas janelas, quantos dramas, quantas
ambições, quantos fracassos, quantas vitórias.
A grande metrópole sempre lhe pareceu pulsar como um coração
desvairado.
Um
helicóptero, que passou bem perto do terraço, o arrancou de seus
pensamentos. Respirou fundo e, de
repente, uma vontade incontrolável de acabar com tudo apoderou-se dele. Estava exausto da tirania e da vaidade do
pai, de quem sempre recebeu minguados carinhos.
Olhou
para baixo. Tudo iria ser muito
rápido. Voaria para a liberdade.
Subiu
na mureta e, quando se preparava para saltar, dois braços fortes o agarraram e
o puxaram para trás.
— Moço,
o que ia fazer?
O rapaz
aturdido soltou-se do homem e caiu num choro convulsivo.
—
Por que você me segurou?
— Um
moço jovem como você, com a vida toda pela frente...
O
moço olhou com atenção para o homem, que o impedira de se matar. Era mais velho, vestia um macacão. Devia ser um dos faxineiros da empresa.
—
Minha vida não tem sentido. É um desfile de fracassos e desilusões. Disse, com
as faces molhadas pelas lágrimas.
—
Filho, disse o homem, ternamente. Não diga isso. A vida é uma dádiva. Um presente.
Você só tem que aprender a desembrulhá-lo.
—
Fala isso para meu pai.
— Ah!
Então é seu pai a causa do seu desespero. Livre-se da causa. Aprenda a fazer
seu caminho.
Uma
grande surpresa estampou-se no rosto lívido do jovem. Como um homem tão simples podia lhe dar
conselhos tão sábios.
—
Como o senhor pode saber dessas coisas?
—
Muitos anos vividos, filho. Muitas
lutas. Mas nunca desisti. Nasci no
sertão nordestino, onde o chão é seco, a gente planta e nada dá. Menino ainda, andava muito longe para buscar
água. Moço, vim para São Paulo, já com mulher e filhos. A gente casa muito cedo por lá. Como não conhecia as letras, só pude arranjar
serviços muito simples. Fui pedreiro,
mas um dia caí de uma laje e tive sorte de não morrer. Quebrei as pernas. Demorei a ficar bom e arranjei serviços de
limpeza, que faço até hoje.
—
Qual é a sua idade?
—
Sessenta anos. Tenho muito orgulho que um filho meu fez faculdade e já tenho
netos.
O
rapaz olhou aquele homem, cuja pele enrugada pelo sol o fazia parecer bem mais
velho.
—
Quanta coragem! É o que me falta para realizar meus sonhos. Exclamou mais calmo.
— E
quais são os seus sonhos, moço?
—
Ser escritor. Gosto de escrever. Tenho muita coisa escrita escondida na
escrivaninha do meu quarto.
—
Escondida! Por quê?
—
Meu pai não acha que seja uma profissão séria e que dá dinheiro.
— É
que ele não sabe o que a gente sente quando não sabe escrever e ler. Meu filho, quando era estudante, lia para mim
as histórias dos livros da escola. Aprendi muita coisa com ele. Que coisa mais linda de ver. Até me ensinou a escrever e a ler alguma coisa. Foi o maior presente que recebi, conhecer um
pouco as letras.
O
rapaz comoveu-se e admirou mais ainda aquele homem, que lhe atravessou o
caminho para o salvar, não só da morte, como da vida que não tinha.
Em
um gesto súbito, pegou as mãos ásperas e calejadas do seu salvador e apertou-as
entre as suas.
—
Obrigado! O senhor me salvou hoje por duas vezes e nem sei seu nome.
—
Sebastião! E o seu?
—
Rodrigo!
Os
dois levantaram-se. Sebastião fixou seus
olhos carinhosamente em Rodrigo e disse com um sorriso:
— Vá
Rodrigo! Siga a vida que você quer. Não olhe para trás.
—
Nunca vou me esquecer do senhor. Mais uma vez obrigado, e o abraçou fortemente,
entregando-lhe um cartão de visitas.
—
Meu cartão. Me ligue quando puder, e se
precisar de alguma coisa. Vou ficar muito feliz de tornar a vê-lo.
Sebastião
acompanhou-o com um olhar feliz, ao vê-lo sair.
Tinha salvado uma vida.
Rodrigo
acenou da porta e saiu do terraço.
Desceu diretamente para a rua. Não passou pelo escritório do pai.
Decidiu
que ia sair de casa e seguir um novo caminho. Ia viver, finalmente.