VERDADE, ACONTECEU MESMO!
Dinah Ribeiro de Amorim
Dia lindo em Cosópolis, céu azul, nuvens suaves e
brancas, sol radiante e luminoso, que irradia raios de luz pela região colorida
de verde.
Crianças brincam calmamente de pega no quintal das
casas e senhoras idosas e gordas, conversam risonhas as fofocas do dia.
De repente, uma estranha escuridão acontece. Raios
e trovões se espalham pelo céu, pingos grossos de chuva espantam e afugentam os
moradores para suas casas. Arrebenta uma grande tempestade que amedronta,
principalmente, a criançada.
“Será que São Pedro está bravo conosco?” Comentam
as crianças.
“O que será que acontece nos céus?” Exclamam as
mulheres, acendendo velas para Santa Clara. A luz do povoado se apaga.
Cosópolis, a cidade calma, está apavorada.
Essa escuridão e a tempestade já duram algumas
horas.
“Que coisa estranha!”, exclamam todos. Algo
aconteceu.
No céu, os anjos e os santos, atormentados pelo
barulho feito por Margot, recém-falecida, estão à volta de São Pedro, sem saber
o que fazer.
A mulher, muito brava e enérgica, reclama que não
podia morrer. Xinga e desrespeita o porteiro do céu, bate pés e braços às
portas do Paraíso, faz um escândalo, não quer entrar.
São Pedro, calmo e paciente, vai até ela e a
orienta que, agora que morreu, tem que ficar lá em cima. Não tem como voltar.
Não existe mais nova vida.
Margot, muito enraivecida, responde-lhe que não
pode morrer. Tem que voltar.
Mas como, responde-lhe o mestre. Ninguém mais volta
depois que morre. Afinal, aqui é melhor do que a Terra, por que deseja tanto
voltar?
A mulher, preocupada, afirma-lhe que o seu marido,
o querido e amado Mário, ficou sozinho e não pode deixá-lo. As mulheres locais
são invejosas, gostam muito dele, querem sempre o roubar e, sem ela, ele cairá
rápido nos braços de outra.
São Pedro sorri e percebe o quanto essa mulher foi
ciumenta e possessiva.
Deve ter feito da vida do pobre Mário, um inferno,
mesmo.
Margot, sem querer escutá-lo, continua se debatendo
e não se deixa conduzir ao céu, ou ao mundo dos mortos.
Tentam levá-la à força, no meio de outros
recém-falecidos, quando a mulher escuta que outra mulher, uma idosa, teve um
mal-súbito, pareceu morta, mas reviveu, voltou à vida.
Mais que depressa, Margot acompanha esse relato e
responde para São Pedro que, se a outra voltou, ela também poderá voltar. Tanto
insiste, tanto grita, também amedronta e ameaça a todos de empurrá-los ao
inferno, que até São Pedro, cansado e sem mais argumentos, mandou jogá-la à
Terra. E Margot é colocada novamente em seu quarto, sua cama, abrindo os olhos.
Mário, a família, poucos amigos, ainda a velavam,
não entristecidos, mas pareciam aliviados.
Quando Margot abre os olhos e respira, quase mata
todos os presentes de susto. Alguns fogem, amedrontados, só permanecendo o
marido e a mãe.
Ela abre os olhos e afirma que não morreu, foi um
leve surto, já voltando ao normal.
Percebe, espantada, o desespero do marido, ao invés
de alegria. Sente, espantada, que a sua morte trouxe alívio e paz a todos. Por
que seria?
Levanta-se, calmamente, e o micróbio do ciúme
retorna, tentaria descobrir. Mário já deveria ter outra mulher, uma nova esposa
à vista.
D. Ferdinando, o pároco, é chamado para fazer
verificação do seu retorno à vida e dar-lhe as boas-vindas. A notícia de que
ela não morreu, de verdade, logo se espalha e alegam todos que foi isso que
causou a tempestade.
A pobre Margot não é bem recebida e logo corre o
boato de que virou uma bruxa viva. Nem a morte a quis.
Mário e a mãe tentam abraçá-la, demonstrar a
felicidade que realmente não sentem, foi mesmo uma mulher insuportável.
Margot empurra-os para o lado e se levanta, muito
brava.
“Então, pensam que morri, de verdade? Nunca os
deixarei livre”, exclama em voz alta. Até o vigário se estremece e pensa em
chamar outros padres para fazer um exorcismo. Mário, então, faz em sua testa o
sinal da cruz, pedindo auxílio à Divindade.
Margot chama a atenção de toda a população que,
devagarinho, vai chegando à sua porta. Os vidros das janelas ficam cheios de
olhos estranhos, curiosos, a espiar o acontecido.
A mulher aparece na entrada e, gritando, afugenta
todos, imediatamente.
“Ela virou uma bruxa! Cruz credo! Corram todos…”
Margot afirma estar com fome, obrigando a mãe a ir
para a cozinha e o marido, entontecido, à padaria.
Mário sente que seu inferno será em vida mesmo, com
os constantes ciúmes da mulher. A mãe, desanimada, pensa em sair da cidade,
voltar a morar com uma irmã, para se livrar da filha arrogante e mandona.
Os dias vão passando e Margot sempre à espreita do
marido, com quem conversa, que horas sai, que horas chega.
Não se dá conta de que Mário mal conversa, mal age,
permanece sentado num canto da sala, entristecido. Só responde às suas
perguntas e permanece calado. Sua vida é sair ao trabalho, comer e dormir.
A mãe, muito emburrada, ajuda-a nas tarefas da
casa, só sabe murmurar que logo irá embora, para a casa da tia.
Margot, ainda cheia de vida, sente vontade de sair,
encontrar amigas, jogar conversa fora, mas quando sai à rua, todos somem, com
medo dela e, as crianças, a xingá-la de bruxa, correm desesperadas.
Com o tempo, começa a aborrecer-se, ficar mais
quieta, parar de dar gritos estridentes com as pessoas, a sentir vontade de
conversar com o marido e trocar ideias com sua mãe.
Muito orgulhosa e de gênio difícil, não percebe
suas culpas e não sabe modificar a situação.
Não conseguiu viver bem na outra vida, mas também é
infeliz agora. O isolamento atual de familiares e amigas, que sentem medo dos
seus ciúmes e mau gênio, a faz cada vez mais triste.
Refugia-se no quintal, senta-se por horas num
banco, debaixo da mangueira. Aceita somente a companhia de um gato cinza,
enroscado aos seus pés.
Às vezes, também o chuta, com raiva e impaciência,
mas ele sempre volta.
Uma tarde, fica mais tempo no quintal e, observa,
pela primeira vez, o pôr do sol. Chama sua atenção aquele brilho dourado que se
estende pelas nuvens, como se fosse palha ao vento. Lembra-se do céu e que
quase permaneceu nele.
Desce os olhos para o gato que lhe acaricia os pés
e confunde-o, confusamente, com a figura de um anjo prateado, a olhá-la,
calmamente.
Assustada, levanta-se rápido e derruba o banco, que
bate na árvore e espalha muitas mangas pelo chão. Algumas frutas lhe batem na
cabeça, atordoando-a. Sente leve desmaio. Quando abre os olhos, a figura do
gato ainda é um anjo, de grande brilho prateado, que lhe fala, docemente:
— Quer voltar à morte, Margot, deixar novamente
este mundo? Não está mais feliz?
A mulher, entre temor, espanto e dúvida, lhe
responde:
— Pensei em voltar para cuidar melhor do que é meu,
mas sinto que não sou mais necessária. Ninguém me quer por perto e ainda acham
que sou malévola, uma bruxa, como me chamam.
O anjo sorri com compreensão e tenta explicar-lhe
que suas ações, neste mundo, são más, não causam bem a ninguém. É muito egoísta
e ciumenta. Nunca tentou agradar a ninguém, nem ao marido que tanto ama. Se
quiser continuar a viver, terá que mudar, provar que nasceu de novo para fazer
o bem. Ser útil a todos, principalmente aos que a chamam de bruxa.
Margot, impressionada, revolta-se com as palavras
do anjo. Fazer o bem a quem lhe faz o mal, é absurdo. Principalmente aos que
menos gosta.
O anjo, com a mão em sua cabeça, responde:
— Você é a sua maior inimiga. Todos a temem porque
você também os teme, considera-os inimigos. Não percebe o bem que cada um pode
oferecer. Vou lhe dar um prazo, três meses, para mudar de vida. Se continuar
como está, voltarei para buscá-la.
E dizendo isso, desapareceu, deixando Margot
boquiaberta, a sentir novamente o gato a seus pés.
Sente um desejo enorme de chutá-lo, mas,
lembrando-se do anjo, acaricia seu pelo.
Decisão difícil, pensou Margot ao entrar em casa.
Abandonar as coisas da Terra, que gosto, pelo mundo dos mortos, que nem
conheço?
Na cozinha, a mãe termina a sopa do jantar, feita
às pressas, sem muita vontade. Margot sente, pela primeira vez, o cheirinho
gostoso do tempero da mãe, um misto de alho e cebola frita, a lembrança de sua
infância.
“Que saudade!” pensa e tem vontade de tomá-la logo,
mas se controla. Lembra-se das palavras do anjo e exclama:
— Hum, que cheiro gostoso é esse, mãe? Sua comida
sempre foi boa, mas, hoje, deve estar mais.
A mãe, admirada, coloca um prato na mesa e a serve
rápido, aproveitando o momento.
Mais admirada ficou quando a filha se ofereceu para
lavar a louça do jantar e mandou-a descansar. Já trabalhou muito nesse dia.
Mário, quando chega, apático e tristonho, sem fome,
resolve lavar-se e dormir. Nega-se a jantar.
Margot, achando que não está bem, lembra-se do anjo
e leva-lhe um prato de sopa. Sente vontade de agradá-lo, e afirma que está
muito gostosa.
O marido, espantado e sem vontade, resolve tomar o
caldo e acha-o bom. Agradece e pergunta quem o fez?
A mulher responde que foi a mãe, mas no dia
seguinte, fará o jantar para ele com a comida de que mais gosta.
Mário pergunta se ela ainda sabe o que gosta. Faz
tanto tempo que não cozinha!
— Bifes à milanesa, responde ela, sorrindo.
Mário adormece sorrindo, há anos não sorria para a
mulher.
Gradualmente, Margot tenta corrigir suas atitudes
em casa, fazer agrados nas pequenas coisas, modificando a mãe e o marido em
relação a ela.
Lava bem as roupas da casa, deixando-as cheirosas e
limpas, encera o assoalho rústico, grosso e feio, deixando-o corado de brilho.
Não lhe sobra mais tempo para ficar no quintal, substitui a mãe nas tarefas de
casa e, quando Mário chega, tenta conversar sobre o seu trabalho e servi-lo.
Tenta agora fazer as compras da casa e vai à
quitanda e à padaria. Teme um pouco a reação dos vizinhos. Vai ouvir bruxa e
outras coisinhas mais…
Mas vai… e causa assombro em todos que a veem,
ninguém tem coragem de enfrentá-la, diante de sua postura. Tornou-se uma mulher
segura e imbatível. Não mais se atemoriza com os outros.
Com o tempo, o povo da cidade, o seu povo, o lugar
em que nasceu, vai se acostumando com ela e se aproximando.
Amigas antigas aparecem, tentam puxar conversa,
acaba recebendo convites para aniversários e fazer parte do grupo de mulheres
que se dedicam a obras de caridade.
Margot acaba, com o tempo, a chefiar o voluntariado
que presta assistência à Santa Casa de Misericórdia, da cidade. Seu trabalho é
tão digno que recebe até uma comenda do Prefeito, mudando completamente a
opinião popular, que, de bruxa, acha-a uma santa.
É, pensa Margot, sorrindo e meditando sozinha, a
voz do povo, nem sempre, é a voz de Deus!
O anjo tinha razão. Estranho, três meses se
passaram e ele nunca mais apareceu. Olha para o gato que ronca pesado atrás da
porta, está tão gordo e velho que jamais pareceria um anjo. Acho que sonhou
mesmo…