Um farol no meio da escuridão
Hirtis Lazarin
Estamos em pleno verão. A estação que nos permite quebra- de-
regras.
Lá fora o sol imponente e poderoso
pinta o mundo misturando todas as cores. Alguns raios bem atrevidos
invadem meu quarto, através de pequenas frestas na velha janela de madeira. Caminha e estaciona sobre meus olhos.
Acordo num segundo. Salto da cama com a agilidade e a leveza da
garça e com a alma embebida de paz.
Prendo meus cabelos num rabo-de-cavalo, visto um jeans surrado,
desbotado e cortado na altura dos joelhos, uma regatinha branca, básica,
deixando à mostra, no meu ombro, tatuagem de pássaro em pleno voo, símbolo da
minha liberdade.
Já que tenho a pele clara e sardenta,
lubrifico com protetor solar as partes desprotegidas.
Há muitos meses, evito contá-los, moro
num povoado de pescadores na costa de Maine, pedacinho do céu, em terras da
Nova Inglaterra.
Esgotei-me com a vida agitada, com o
corre-corre que não nos leva a lugar algum, com a violência gratuita, o
consumismo desenfreado imposto pela mídia, a vida informatizada.
Sentia-me um robô com alma romântica, que ainda sonha, que gosta do
abraço apertado, do beijo generoso, da amizade que não finge. Fui sendo
tomada por uma tristeza sem fim, nesta São Paulo tão grande, tão numerosa de
gente sem troca de olhares, nem de palavras, pessoas que se aprisionam em casa,
priorizando a comunicação virtual. Celulares enviam mensagens e
pensamentos. Mas celulares não têm voz, não têm cheiro, não têm toque.
Uma vontade imensa de mudar de roupa
por dentro e por fora. E essa vontade se tornou mais poderosa e convicta
dentro de mim quando, de repente, não mais que de repente, partiu meu
companheiro e amigo, o homem que elevava minha autoestima nos momentos de
fragilidade. Foi embora, e dessa viagem não voltará jamais.
Vivendo nesse inverno tão rigoroso,
virei-me no avesso e descobri que ali dentro havia um verão indomável.
Acreditei nessa força interior e rompi com tudo e com todos. Vendi
meu apartamento, meu carro, organizei um bazar com minhas melhores roupas. Juntei
o dinheiro que me foi possível juntar. Desmontei minha casa e tudo foi
transportado por caminhão baú à instituição de caridade.
Rasquei cartas e fotografias, rasguei
cartões de natal que colecionava desde menina. Chorei bastante. Conservei
apenas meu notebook, livros e a grande vontade de viver uma vida simples.
Pesquisei na internet, visitei
agências de turismo e vim parar aqui, nesse simpático vilarejo de pescadores
que sobrevivem da pesca da lagosta.
Ocupo um pequeno espaço anexo à casa
rústica e aconchegante do casal, Mary e Bob, amigos verdadeiros que conquistei
aqui.
Fica bem próximo ao Port Head Light,
um dos sessenta faróis em atividade que permeiam a costa atlântica de Maine,
costa extremamente rochosa, mar de águas rasas e gélidas, propícias à criação e
reprodução de lagosta. Os faróis são estrelas na terra, orientando com
seus fachos de luz, os marinheiros na escuridão da noite.
Durante o verão, turistas de todos os
cantos passam por aqui. O Port Head Light é o farol mais visitado e
fotografado, por conta da facilidade que se tem pra chegar até ele.
Vivendo aqui, aperfeiçoei meu inglês
que era só de livros. Não temos rotina. Gente nova e interessante
aparece a toda hora.
Quando cheguei, confesso, tive meus
momentos de tristeza, solidão e recordação. Sentava-me a beira-mar e
ouvia sua voz sedutora, que sussurra, que murmura, que fala e nos convida a
mergulhar em suas ondas e adentrar seu abismo sem fim.
Caminhava pela praia entre areia e
espuma. A maré alta apagava minhas pegadas e o vento forte diluía a
espuma. Mas o mar, a praia e eu permanecíamos.
Nunca deixei o arrependimento tomar
conta de mim... Não conseguiu por mais que tentasse. Eu dava a mim mesma,
o tempo que fosse necessário à adaptação à nova vida. Eu tinha certeza de que
ali seria mais feliz.
Bem, Bob saiu bem cedinho em busca do ganha-pão.
Mary e eu tomamos o "breakfast" juntas todos os dias.
Formou-se entre nós uma amizade sem interesses, aquela que não se rompe
quando os pensamentos são diferentes. Nossa amizade segura a barra,
segura a mão e a ausência, segura uma confissão, um tranco e um palavrão.
Nossa amizade se traduz num conforto indescritível, faz sentirmo-nos
seguros sem pesar o que se pensa, nem medir o que se diz. Vivemos numa
cumplicidade que não se explica, apenas acontece.
Hoje é dia de abastecer nosso
estoque de alimentos. Pego o meu jipe cor de exército e lá vamos nós duas
às compras até a cidadezinha mais próxima.
Antes da volta, um compromisso:
passar na doceria da amiga Daisy. Ninguém passa por Maine sem
saborear a torta de mitilo selvagem com chantily
fresco e beber Moxi, o refrigerante oficial do Estado.