O DOTE
Dinah
Ribeiro de Amorim
Grande
discussão, vozes alteradas, no escritório da mansão dos Simpsons, em Londres,
capital do Império, ano de 1818. Lady Sara, agoniada, aos berros com o marido:
— E agora?
Como fica o dote das meninas? Casar três filhas, sem dinheiro, é impossível!
Lord
Edward, viciado em jogo, perde toda a fortuna da família numa só noite. Só lhes
sobrou a casa!
As
filhas, Rose, Mary e Anne, de ouvidos colados atrás da porta, se entreolham,
estarrecidas.
Ansiosas
para um casamento, vontade de toda moça que se preze. Já tinham sido
apresentadas à sociedade como disponíveis e recebendo visitas de pretendentes.
Estranha e curiosa essa época. Que coisa!
Anne,
a mais talentosa e esperta delas, preocupa-se em auxiliar a mãe. Quer descobrir
um modo de resolver a situação. Interessa-se pelo jovem Anderson, futuro
herdeiro de Lord Hampton, um Conde afortunado, de grande prestígio social.
Reunidas
em seu quarto, as jovens tentam discutir a situação. Casar sem dote é
impossível. Mesmo que o noivo aceite, ficariam mal faladas em sociedade. As
fofocas, em Londres, são terríveis e inesquecíveis! Uma coisa!
Anne
lembra-se logo de um tio de sua mãe, idoso malquisto, não visitado, odiado na
família, sem amigos e herdeiros, Sir William. Milionário, dono de minérios de
carvão, era agressivo, egoísta, de gênio insuportável por todos que tentaram
conviver com ele. Ninguém conseguia agradá-lo, cheio de manias, de temperamento
estranho. Uma coisa!
Anne
aconselha-se com a mãe e vai visitá-lo, procura fazer amizade, verificar as
necessidades do velho, afinal é muito idoso, está vivo, é um ser humano, deve
precisar de alguma coisa! Qual seria essa coisa?
Ao
tocar a sineta da porta, Anne já estremece, um pânico a surpreende em falar com
esse tio que mal conhece. Só ouviu dele coisas muito ruins e, perde a coragem
da iniciativa. Lembra-se de Anderson, jovem tão querido, e sente-se mais forte.
Um
mordomo, ríspido, pergunta-lhe o que deseja.
Anne
avisa-lhe que é sobrinha de Sir William, filha de Sara, que veio conversar com
ele.
Espantado,
o mordomo John olha-a de cima a baixo e responde que não poderá atendê-la, está
ocupado com documentos. Anne insiste, dizendo-lhe que o assunto é grave e ele
corre a atendê-la.
Faz com
que Anne entre e fique horas esperando o tio, sentada numa cadeira dura. Quando
já está quase a desistir, aparece Sir William, com passos arrastados e
barulhentos, de bengala, mancando de uma perna.
Seu
valete quer ajudar, mas o velho dispensa com estupidez. Ao avistar Anne,
pergunta logo:
— Com
que então você é filha de Sara, uma irmã que nem sabia que ainda vivia. O que
será que a fez lembrar-se desse velho? Só pode ser uma coisa, dinheiro!
Anne,
envergonhada, corada até os ossos, responde-lhe que estão bem, sim, lembrando
sua mãe de saber da saúde dele, e com saudades do irmão que há muito não via.
— Quem
sabe o senhor precisa de alguma coisa? Algum cuidado especial, já está idoso,
seria bom ter a família por perto, argumenta, corajosa.
—
Uhm...Uhm... Sir William dá uma risada alta, acompanhada de um ataque de tosse
tão forte, que seu empregado corre a dar-lhe um copo d’água, com umas gotas
dentro.
Anne,
assustada, ajuda a colocá-lo em uma cadeira.
Sir
William nem agradece, mas fica olhando-a com olhinhos astutos e inteligentes.
Acha-a graciosa e lembra-se, involuntariamente, de sua mãe. Talvez a única
pessoa que gostou na vida.
— E
seu pai, aquele malandro jogador? Como anda? Coitada de sua mãe. Deve passar
mal bocados com aquele homem. Bem que a avisamos para não se casar com ele!
Pergunta o tio.
Anne,
sem pensar, responde rápido:
— Está
difícil mesmo, mas vamos indo… Não é por causa dele que estou aqui.
— Ah!
Não! Retruca o velho, rindo novamente. Então, por quê?
Anne, nervosa
e trêmula, pergunta-lhe se não precisa de nada? Sabe um pouco de enfermagem,
gosta muito de ler em voz alta, organiza as despesas e orienta empregados, vem
oferecer-lhe seus préstimos.
Sir
William, ainda rindo, soube que o pai dela perdeu a casa no jogo e não deixa de
admirar a coragem dessa sobrinha esperta, que precisa de dinheiro e vem
oferecer trabalho. Foi assim que ele começou sua fortuna.
Os
jornais de Londres também faziam fofocas e sobre eles o comentário corria
solto. Coisa grave, coisa feia! Que coisa! Mexer assim com o nome deles.
No
íntimo, Sir William começa a admirá-la, mas, sem perder a estupidez costumeira,
pergunta-lhe se gostaria de ajudá-lo na contabilidade de sua mina de carvão. O
contador cometeu uma falha e dispensou-o, na hora. Se ela quisesse
substituí-lo, seria bom. Os ganhos seriam poucos e estudaria primeiro o seu
desempenho.
Anne
não acredita no que está ouvindo e, apesar de tê-lo detestado, sai dali feliz e
corre a contar a novidade à mãe e às irmãs.
Inicia
logo o trabalho no escritório do tio, que pela idade e desconfiança de todos,
está uma bagunça. Trabalhada a fazer. Que coisa!
Sir
William, apesar de velho rabugento, anda meio adoentado e, satisfeito pela
sobrinha ir diariamente a sua casa, pretende recompensá-la. Só não fala como e
quanto.
O
tempo passa e a família de Anne, pais e irmãs, ficam impacientes ao saber do
baixo ordenado de Anne e o muito trabalho que faz.
A
jovem habitua-se, aos poucos, com o velho impaciente e nervoso, o tio que, pelo
menos, recompensa-a de alguma forma. É incomum uma moça de sua idade, na
sociedade, trabalhar fora e não estar ainda casada, mas conformada, cumpre suas
obrigações e, quando pode, guarda um pouco de suas economias num pequeno cofre.
Dedicada
ao trabalho com o tio e entendendo um pouco de seus lucros e pagamentos,
descobre que existe um grupo de funcionários insatisfeitos, formando uma greve
na região das minas.
Ele
recebe a notícia com pragas e xingamentos, ameaçando seus empregados com
polícia e dispensas, caso não voltem ao trabalho. “Uma corja de vagabundos! ”,
exclama. " Coisa de preguiçosos! ”
Anne
consegue descobrir uma falha nas suas contas. Realmente, não ganhavam o
suficiente para viver, sendo a parte reservada a eles, alterada por um gerente
que fica com uma parte dos lucros.
Sir
William, devido à idade, andou menos preocupado com as finanças que o fizeram
enriquecer. Satisfeito com o trabalho da sobrinha e querendo que continue ao
seu lado, expulsa o gerente, readmite os empregados e recompensa Anne com uma
soma de dinheiro suficiente para adquirirem a casa da família, novamente.
Chama-a
ao seu escritório, abre uma gaveta fechada com a chave e oferece-lhe preciosa
gema, uma joia de família, com brilhantes e esmeraldas, o presente de seu
futuro casamento com Anderson.
Anne,
encantada, mal sabia da existência dessa joia e, agradecida, convida-o como
padrinho do casamento, que o tio, meio a contragosto, aceita, aborrecido, de
aparecer em público. Coisa chata, mas, para agradar à sobrinha, demonstra
afeto.
E
assim os dotes das meninas ficaram também salvos, com a garantia do tio que
Anne conseguiu transformar.
Essa
história repercutiu bem na sociedade londrina, com o casamento legal de Anne,
Rose e Mary.
Que
coisa legal, de boa!