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sexta-feira, 24 de maio de 2024

O DOTE (COMPORTAMENTOS) - Dinah Ribeiro de Amorim

 




O DOTE

Dinah Ribeiro de Amorim

 

Grande discussão, vozes alteradas, no escritório da mansão dos Simpsons, em Londres, capital do Império, ano de 1818. Lady Sara, agoniada, aos berros com o marido:

— E agora? Como fica o dote das meninas? Casar três filhas, sem dinheiro, é impossível!

Lord Edward, viciado em jogo, perde toda a fortuna da família numa só noite. Só lhes sobrou a casa!

As filhas, Rose, Mary e Anne, de ouvidos colados atrás da porta, se entreolham, estarrecidas.

Ansiosas para um casamento, vontade de toda moça que se preze. Já tinham sido apresentadas à sociedade como disponíveis e recebendo visitas de pretendentes. Estranha e curiosa essa época. Que coisa!

Anne, a mais talentosa e esperta delas, preocupa-se em auxiliar a mãe. Quer descobrir um modo de resolver a situação. Interessa-se pelo jovem Anderson, futuro herdeiro de Lord Hampton, um Conde afortunado, de grande prestígio social.

Reunidas em seu quarto, as jovens tentam discutir a situação. Casar sem dote é impossível. Mesmo que o noivo aceite, ficariam mal faladas em sociedade. As fofocas, em Londres, são terríveis e inesquecíveis! Uma coisa!

Anne lembra-se logo de um tio de sua mãe, idoso malquisto, não visitado, odiado na família, sem amigos e herdeiros, Sir William. Milionário, dono de minérios de carvão, era agressivo, egoísta, de gênio insuportável por todos que tentaram conviver com ele. Ninguém conseguia agradá-lo, cheio de manias, de temperamento estranho. Uma coisa!

Anne aconselha-se com a mãe e vai visitá-lo, procura fazer amizade, verificar as necessidades do velho, afinal é muito idoso, está vivo, é um ser humano, deve precisar de alguma coisa! Qual seria essa coisa?

Ao tocar a sineta da porta, Anne já estremece, um pânico a surpreende em falar com esse tio que mal conhece. Só ouviu dele coisas muito ruins e, perde a coragem da iniciativa. Lembra-se de Anderson, jovem tão querido, e sente-se mais forte.

Um mordomo, ríspido, pergunta-lhe o que deseja.

Anne avisa-lhe que é sobrinha de Sir William, filha de Sara, que veio conversar com ele.

Espantado, o mordomo John olha-a de cima a baixo e responde que não poderá atendê-la, está ocupado com documentos. Anne insiste, dizendo-lhe que o assunto é grave e ele corre a atendê-la.

Faz com que Anne entre e fique horas esperando o tio, sentada numa cadeira dura. Quando já está quase a desistir, aparece Sir William, com passos arrastados e barulhentos, de bengala, mancando de uma perna.

Seu valete quer ajudar, mas o velho dispensa com estupidez. Ao avistar Anne, pergunta logo:

— Com que então você é filha de Sara, uma irmã que nem sabia que ainda vivia. O que será que a fez lembrar-se desse velho? Só pode ser uma coisa, dinheiro!

Anne, envergonhada, corada até os ossos, responde-lhe que estão bem, sim, lembrando sua mãe de saber da saúde dele, e com saudades do irmão que há muito não via.

— Quem sabe o senhor precisa de alguma coisa? Algum cuidado especial, já está idoso, seria bom ter a família por perto, argumenta, corajosa.

— Uhm...Uhm... Sir William dá uma risada alta, acompanhada de um ataque de tosse tão forte, que seu empregado corre a dar-lhe um copo d’água, com umas gotas dentro.

Anne, assustada, ajuda a colocá-lo em uma cadeira.

Sir William nem agradece, mas fica olhando-a com olhinhos astutos e inteligentes. Acha-a graciosa e lembra-se, involuntariamente, de sua mãe. Talvez a única pessoa que gostou na vida.

— E seu pai, aquele malandro jogador? Como anda? Coitada de sua mãe. Deve passar mal bocados com aquele homem. Bem que a avisamos para não se casar com ele! Pergunta o tio.

Anne, sem pensar, responde rápido:

— Está difícil mesmo, mas vamos indo… Não é por causa dele que estou aqui.

— Ah! Não! Retruca o velho, rindo novamente. Então, por quê?

Anne, nervosa e trêmula, pergunta-lhe se não precisa de nada? Sabe um pouco de enfermagem, gosta muito de ler em voz alta, organiza as despesas e orienta empregados, vem oferecer-lhe seus préstimos.

Sir William, ainda rindo, soube que o pai dela perdeu a casa no jogo e não deixa de admirar a coragem dessa sobrinha esperta, que precisa de dinheiro e vem oferecer trabalho. Foi assim que ele começou sua fortuna.

Os jornais de Londres também faziam fofocas e sobre eles o comentário corria solto. Coisa grave, coisa feia! Que coisa! Mexer assim com o nome deles.

No íntimo, Sir William começa a admirá-la, mas, sem perder a estupidez costumeira, pergunta-lhe se gostaria de ajudá-lo na contabilidade de sua mina de carvão. O contador cometeu uma falha e dispensou-o, na hora. Se ela quisesse substituí-lo, seria bom. Os ganhos seriam poucos e estudaria primeiro o seu desempenho.

Anne não acredita no que está ouvindo e, apesar de tê-lo detestado, sai dali feliz e corre a contar a novidade à mãe e às irmãs.

Inicia logo o trabalho no escritório do tio, que pela idade e desconfiança de todos, está uma bagunça. Trabalhada a fazer. Que coisa!

Sir William, apesar de velho rabugento, anda meio adoentado e, satisfeito pela sobrinha ir diariamente a sua casa, pretende recompensá-la. Só não fala como e quanto.

O tempo passa e a família de Anne, pais e irmãs, ficam impacientes ao saber do baixo ordenado de Anne e o muito trabalho que faz.

A jovem habitua-se, aos poucos, com o velho impaciente e nervoso, o tio que, pelo menos, recompensa-a de alguma forma. É incomum uma moça de sua idade, na sociedade, trabalhar fora e não estar ainda casada, mas conformada, cumpre suas obrigações e, quando pode, guarda um pouco de suas economias num pequeno cofre.

Dedicada ao trabalho com o tio e entendendo um pouco de seus lucros e pagamentos, descobre que existe um grupo de funcionários insatisfeitos, formando uma greve na região das minas.

Ele recebe a notícia com pragas e xingamentos, ameaçando seus empregados com polícia e dispensas, caso não voltem ao trabalho. “Uma corja de vagabundos! ”, exclama. " Coisa de preguiçosos! ”

Anne consegue descobrir uma falha nas suas contas. Realmente, não ganhavam o suficiente para viver, sendo a parte reservada a eles, alterada por um gerente que fica com uma parte dos lucros.

Sir William, devido à idade, andou menos preocupado com as finanças que o fizeram enriquecer. Satisfeito com o trabalho da sobrinha e querendo que continue ao seu lado, expulsa o gerente, readmite os empregados e recompensa Anne com uma soma de dinheiro suficiente para adquirirem a casa da família, novamente.

Chama-a ao seu escritório, abre uma gaveta fechada com a chave e oferece-lhe preciosa gema, uma joia de família, com brilhantes e esmeraldas, o presente de seu futuro casamento com Anderson.

Anne, encantada, mal sabia da existência dessa joia e, agradecida, convida-o como padrinho do casamento, que o tio, meio a contragosto, aceita, aborrecido, de aparecer em público. Coisa chata, mas, para agradar à sobrinha, demonstra afeto.

E assim os dotes das meninas ficaram também salvos, com a garantia do tio que Anne conseguiu transformar.

Essa história repercutiu bem na sociedade londrina, com o casamento legal de Anne, Rose e Mary. 

Que coisa legal, de boa!

 

 

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