Padre Miguel
Adelaide Dittmers
A
pequena igreja da cidadezinha estava lotada. As beatas com véus, que lhes
cobriam os cabelos, mas não impediam que a maledicência escorresse por suas
línguas, tagarelavam em voz baixa, com olhos argutos, que voavam pelas pessoas como
águias em busca da presa.
Acompanhado
por dois coroinhas, o sacerdote subiu ao altar.
Era um homem de uns quarenta anos, bem-apessoado e com ar humilde.
As
luzes acenderam-se iluminando os anjos e santos barrocos distribuídos por
pequenos altares e o altar, onde reinava a padroeira da cidade.
O
silêncio apagou as conversas. A
expectativa era sentida em cada rosto.
Naquele domingo, um novo padre assumiria a paróquia.
As
pessoas levantaram-se para recebê-lo. As
beatas cochichavam agitadas pela beleza do padre. A curiosidade varria o lugar. Como seria o novo padre? O anterior era muito
severo. O que esperar deste?
Com
um sorriso simpático e um gesto, ele indicou para todos sentarem e
apresentou-se, dizendo que estava muito feliz de ser o condutor espiritual da
cidade.
As orações,
os hinos e os rituais da missa sucederam-se suavemente. No momento do sermão, ele subiu ao púlpito e
encantou os fiéis com uma prédica envolvente, em que palavras de conforto e
exortação ao amor e respeito ao próximo foram derramadas pela igreja.
Terminada
a missa, os frequentadores saíram para a praça e formaram pequenos grupos, comentando
o que acharam do novo pároco. Os elogios daquela boa gente elevaram-se pelo ar
fresco da manhã.
As
beatas combinaram que precisavam se confessar para assim se tornarem mais
próximas dele. Elas consideravam os
sacerdotes seres quase divinos, mas dentro delas algo mais terreno as sacudia.
O
tempo foi passando e o padre Miguel foi conquistando o coração e a confiança de
todos. Era amável, compreensivo e tolerante.
Nos sermões sempre exaltava a importância de os fiéis confessarem todas
as semanas para aliviarem suas almas dos desgostos, problemas e remorsos, que a
vida trazia.
O
povo simples e crédulo cumpria esse pedido com devoção. Abriam o coração, confessando os medos, os males
feitos, as desavenças e os desafetos, na esperança de serem perdoados por Deus.
Padre
Miguel tornou-se muito respeitado e ninguém mais movia um dedo sem consultá-lo.
Muito inteligente, ele absorvia todas as informações. Assim, o manto tênue do homem perfeito cobriu
a cidade com seu poder de convicção. De
maneira sutil, levava os mais poderosos a confessar suas desonestidades,
convencendo-os de que o perdão divino viria se fossem generosos com a
igreja. Aos mais pobres dizia que se
dessem o dízimo, milagres aconteceriam.
Em
uma tarde de outono, de ar fresco e vento suave, que levantava as folhas secas,
que caiam mansamente das árvores, um trem apitou na curva da via férrea
aproximando-se da velha estação, bufando seu cansaço e fazendo as rodas gemerem
ao estacarem nos trilhos.
Vários
passageiros desceram e, dentre eles, um casal de cabelos grisalhos, puxando
pesadas malas. O homem olhou em volta, como que tentando reconhecer o
lugar. Quase nada mudara desde que ele
fora embora, aos dezenove anos, para ir morar na metrópole em busca de maiores
oportunidades.
—
Não é simpática esta estação? Você vai gostar daqui. É um lugar calmo e o povo é pacífico. Disse com a voz embargada pela emoção.
Estava
voltando depois de tantos anos para desfrutar da aposentadoria no lugar tranquilo
em que nascera.
Sairam
da estação e Luisa observava tudo com curiosidade. As ruas estreitas de paralelepípedos, onde as
casas desfilavam com pequenos jardins. Outras construídas diretamente junto às
calçadas, em que mulheres se debruçavam nas janelas para ver a vida passar.
Arrastando
a bagagem, chegaram à uma velha casa com um grande jardim, onde reinavam
jabuticabeiras, limoeiros, mamoeiros e outras tantas árvores, que dançavam
suavemente ao sabor da aragem.
Entraram,
e velhas mobílias os esperavam. Abriram
as janelas para deixar a luz do sol entrar. Cada canto trazia uma lembrança a
Tomé. A casa estava fechada há muito
tempo, precisaria de algumas reformas, mas era confortável e ampla. E voltar
para ela, era voltar ao antigo ninho.
Aos
poucos foram se habituando à nova vida.
Tomé aproximou-se de velhos amigos e Luisa foi fazendo novas
amizades. Católicos fervorosos começaram
a frequentar a igreja. Aos domingos iam
à missa, e como todos, foram capturados pela doçura do carismático padre. Apesar de suas profissões terem exigido muito
deles, ele fora um exímio investigador de polícia e ela, professora, sempre
gostaram de participar das tarefas paroquiais.
Ensinavam catecismo às crianças, promoviam encontro de casais e ajudavam
em outras programações da igreja.
Certo
dia, ao entrar na sacristia, encontrou uma mulher de vestes simples, que se
dirigiu a ele:
— Sr.
Tomé, vim entregar o dízimo, mas o padre não está. Posso entregar para o senhor?
Dízimo?
Ele pensou, não sabia que o dízimo era cobrado. E, quando viu a quantia, surpreendeu-se ainda
mais. Era muito dinheiro para aquela
pobre mulher.
—
Não é muito o que a senhora está oferecendo?
Perguntou.
—
Preciso de um milagre e o padre disse que se eu desse o dízimo, o Senhor me
ajudaria.
Aquilo
não lhe saiu da cabeça e seu instinto de investigador acendeu-se como uma
labareda dentro de sua cabeça. Começou então a observar com mais atenção o que
acontecia na sacristia. Passava os olhos
pela escrivaninha de Miguel e notou também o movimento de beatas, que entravam
e saiam, todas arrumadas como se fossem a um encontro. Uma tarde, viu um cheque meio escondido na
escrivaninha e com cautela verificou a quantia e de quem era a assinatura. Arregalou os olhos: era uma alta soma de dinheiro
de um rico fazendeiro da região.
Desses
dias em diante, quando o sacerdote estava ausente remexia nos papéis da
sacristia e revolvia gavetas à procura de dinheiro. Descobriu que altas somas eram dadas
regularmente à paróquia, que não apareciam na contabilidade e nem eram
empregadas para consertos ou obras assistenciais.
Com
habilidade começou a investigar os documentos do padre e descobriu que eram
falsos.
Como
todos tinham sido enganados? Como tudo isso fora possível? Resolveu se
comunicar com o bispo da arquidiocese mais próxima e relatar o que estava
acontecendo. A notícia caiu como um raio
no bispado, porque informaram a Tomé, que tinham enviado um sacerdote para
aquela paróquia. Padre João tinha
partido para o novo ofício há mais de dezoito meses. A situação era mais grave do que Tomé supusera. O que poderia ter acontecido com o padre, que
não chegara ao seu destino.
Uma
detalhada investigação os levou ao trajeto do padre João e descobriram que ele
desapareceu durante o caminho. O
delegado de uma das cidades por onde ele passara informou que tempos atrás, foi
encontrado o corpo de um homem boiando no rio, com uma facada na barriga. Estava quase nu e até aquele momento não
tinham conseguido identificá-lo.
Fotografias do cadáver foram enviadas para os investigadores, que
constataram que era o pobre padre João.
Um arrepio passou pelo corpo de todos.
Seria Miguel o assassino? Ao juntar as peças do acontecido, cada vez
mais a suposição os levava para o falso padre.
A
polícia invadiu a igreja e prendeu Miguel com a acusação de ter usado falsa
identidade, tirado grandes quantias de dinheiro dos fiéis e o por ser o
principal suspeito do assassinato do verdadeiro padre.
A
notícia da prisão do falso padre tumultuou a cidade. O choque paralisou os
habitantes e alastrou-se como pólvora. A
revolta foi tão grande, que quiseram invadir a delegacia em que o homem estava
preso provisoriamente. Com muito custo,
os policiais conseguiram dominar a situação, dispersando a pequena multidão
desvairada.
As
beatas foram para a igreja rezar e pedir perdão a Deus pelos pecados e por
terem sido enganadas pelo belo padre.
Choravam envergonhadas e abriram a boca e esbulharam os olhos quando uma
delas confessou, tremendo dos pés à cabeça, que estava grávida de Miguel. Um ¨Deus nos acuda¨ percorreu o lugar.
Pelos
interrogatórios e investigações descobriram a verdadeira identidade de
Miguel. Era procurado há muito tempo por
golpes e roubos em que usava armas. A única coisa que não conseguiram, foi
arrancar dele a confissão de assassinato do verdadeiro padre. Era esperto e
liso como sabão.
Tomé
foi homenageado por ter livrado a população daquele bandido e tornou-se a
pessoa mais respeitada da cidade.
Em
uma manhã de sol e céu azul, sentou-se no terraço da casa em companhia de Luisa,
admirando o jardim, com suas flores e árvores carregadas de frutas e onde o
silêncio só era quebrado pelo cantar dos pássaros, disse sorrindo:
— E
eu que vim para cá gozar minha aposentadoria e a tranquilidade da minha
cidade...