Foi só um descuido
Hirtis Lazarin
A
primavera bateu mansamente na porta da mansão como faz todos os dias. Desta vez não conseguiu entrar.
Na
cozinha, o casal toma café. Hoje está
diferente. Cada um senta numa ponta da
mesa comprida. Não se olham nem se
falam. Abatida e olheiras profundas
mostram que Christina passou a noite acordada.
Roberto, vez ou outra, disfarçadamente, lança lhe um olhar enfurecido e
cheio de azedume. Sai apressado e bate a
porta com raiva.
Estão
casados há quase trinta anos. Dois
filhos: Lucas, engenheiro e casado, mora no exterior; Vitor estuda Direito.
Um
casal esforçado e bem-sucedido. Ele,
administrador de multinacional; ela psicóloga e orientadora vocacional.
Colecionam
amigos e não lhe faltam motivos para comemorar a vida. A casa espaçosa está sempre movimentada e
aberta a todos.
Naquele dia, Fernando voltou do trabalho bem
mais tarde que o habitual. Estacionou na
garagem por volta das vinte e duas horas.
A casa estava no escuro. Era
quinta-feira e toda quinta era dia de um jantarzinho especial. A comida era repartida na panela; os
problemas, divididos, as soluções, somadas e o carinho multiplicado.
Roberto
percorreu o corredor comprido e estreito, paralelo à construção, até alcançar a
cozinha. Porta aberta. Acendeu as luzes. Sobre a mesa da cozinha, o caderno de
receitas especiais, aberto às páginas quarenta e cinco, comia farinha de um
saco rasgado; no chão, ovos quebrados viraram lama amarela e escorregadia.
Na
sala de jantar, ao pé da escada de mármore em caracol e que dá acesso ao piso
superior, Christina está caída, rosto voltado para cima. Um fio grosso de sangue escorreu da cabeça e
o fluxo interrompeu-se no canto esquerdo dos lábios volumosos.
Roberto
desespera-se. Agacha e tenta
reanimá-la. Infelizmente, não há sinal
vital. O corpo gélido diz que não há
mais nada a fazer.
Um
mal súbito e Christina despencou escada abaixo?
Desequilibrou-se no sapato de salto altíssimo?
O
laudo expedido pelo IML indica morte causada por forte golpe na cabeça com
traumatismo craniano.
MISTÉRIO! Não havia sinais de arrombamento, nada fora
levado.
Ela
fora morta na cozinha e arrastada. O
luminol indicava rastro de sangue até as escadas.
Enquanto
pessoas eram convocadas a depor, a casa foi liberada. O viúvo demorou semanas para enfrentar a nova
realidade.
A
governanta Amália, inconformada com tamanha brutalidade, foi autorizada a
encaixotar os pertences de Christina para doação. Foi muito estressante sentir o perfume
impregnado nas roupas finas da patroa, desfazer os armários rigorosamente
organizados, tantos sapatos novos de salto alto... Sua presença, seus conselhos acompanhados de
reprimendas suaves fariam muita falta.
Trabalhava ali desde que os meninos eram pequenos.
Abrir
aquele punhado de bolsas... Numa pequena
e antiga, encontrou a agenda do ano. Sem pensar abriu. Havia anotações até a véspera do
assassinato, dezenove de setembro. A
página estava toda preenchida. Muitos rabiscos e borrões de lágrimas. Leu de cabo a rabo diversas vezes. Chorou ajoelhada e rezou inconsolável.
"O
relógio marca duas horas da manhã. Reuni
força e coragem. Contei tudo ao Fernando. Guardo esse segredo há mais de vinte
anos. Dezembro estava chegando e a
formatura do Vítor também. Eles tinham o
direito de saber a verdade. A mentira
queimava-me. Não suportei mais o peso
desse fardo. Olhei firme nos seus olhos,
contei-lhe tudo. Contei-lhe que o menino
é filho de Afonso, meu primeiro namorado.
Encontramo-nos por acaso numa loja masculina. Roberto viajava a trabalho e ficaria ausente
quase um mês.
Encontros amorosos, ardentes e rápidos, foram
suficientes para eu engravidar.
A
boca de Fernando espumava de raiva. Ouvi
uma ladainha de palavrões e ofensas. Eu
merecia...
Ergueu
os braços, cerrou os punhos para me agredir, mas desistiu no caminho. Gritou que não valia a pena. Mas se vingaria.
Trancou-se
no quarto de visitas e deu muitos murros nos móveis".
Uma
oportunidade conduz diretamente à outra; assim como o risco leva a outro risco;
a vida, à vida; a morte, à morte.
Amália
sabia exatamente o que tinha que fazer...