Houve um tempo em que costumava dizer
que a vida era um aglomerado de bosta, coisa esta que sai de nós, dos outros, e
somos obrigados a passá-la no corpo e sentir seu odor sem nada poder fazer.
Algo como uma espécie de sentença por
não sei o quê. Quiçá por ter vindo ao mundo. Parece que muitos, como eu, já
nascem agraciados com a dor. E se tem uma coisa que esta história tem, é dor.
Sobretudo quando decidimos pular nas
águas turvas, perturbadoras e agressivas que a constitui. Não diria que há algo
oceânico que pode assombrá-los. Ouso afirmar apenas que é uma história comum.
Melhor que umas, pior que outras, mas jamais, sob hipótese alguma, à margem do
real.
Curiosos? Então lá vai.
Seu nome era Vicência Santos da Silva.
Mulher trabalhadora, lavadeira compromissada. Calma, que só. Sua mãe, Dalva,
sempre dizia para ela ser mais aplumada, porque a vida não é boa com gente
tranquila demais.
Mas Vicência afirmava que não sabia ser
de outro jeito. Portanto, sua mãe, sempre que batia em seus irmãos e nela, em
virtude de algo que fizessem, dava preferência para a vara arrancar o pouco de
carne que a filha tinha nas costas.
Argumentava que batia mais nela para
ver se virava mulher forte e não uma menininha que vivia sorrindo para tudo e
todos.
Entretanto, foi justamente seu sorriso
que encantou Valmir, o dono do botequim que seu pai tinha prazer em frequentar.
O rapaz ficou enfeitiçado por Vicência. A procurava em todos os cantos
possíveis: casa, bar, igreja, rua, entre outras localidades.
Além disso, contratou os serviços de
dona Dalva e, consequentemente, os da amada também, haja vista que esta
trabalhava com a mãe.
Com o tempo, Vicência ia animada para a
casa do rapaz, ficava a noite inteira anterior à faxina imaginando-se nos
braços de Valmir e não tinha forças para acorrentar a ansiedade que corria
faminta por suas vísceras.
Em uma madrugada de lua cheia, o
destino resolveu selar a aliança entre ambos de uma vez por todas,
utilizando-se de um beijo daqueles, com direito a língua e tudo.
E a princípio era assim, beijo pra cá,
beijo pra lá. Sem contar as rosas, bombons e noites de jantares no bar. Pena
que depois do casamento os beijos se foram, as rosas murcharam, os bombons
acabaram e as noites de jantares eram-lhes concedidas somente nos sonhos.
Com isso, o até então príncipe
encantado se revelou o pior de todos os canalhas. Pena que Vicência só soube
disso quando engravidou.
Tapa? Isso é eufemismo. Falo de soco no
estômago, sopa quente na cara, chutes e chicotadas. Falo de gritos, de puxões
de cabelo, de rosto se encontrando com parede, mesa, chão. E calada, sem se
manifestar. Tinha de esconder sua dor no anonimato, sucumbir a ela e sem saber
como: viver.
Quando o homem chegava bêbado em casa e
dentro de si tinha o desejo. Podia estar no quinto sono que tinha de acordar
para o satisfazer. Uma vez, quando negou, ele a pegou pelos cabelos, tirou suas
roupas, amarrou-a com o fio de ferro de passar e tomou o que desejava.
Os gritos de um pedido de socorro que
ecoavam, não da boca, mas da alma, faziam-se escutar por aqueles que moravam
perto. Entretanto, quem era o corajoso que bateria de frente com aquele que tem
a fama de ter colocado a sete palmos do chão uma vida e que se gabava por tal
feito?
Houve um tempo em que Vicência
aguardava o marido, seja a hora que chegasse, e o deixava tirar dela o que nem
tinha. Sua dignidade foi pisada, seu amor-próprio dilacerado, o amor que tinha
pela vida? Ah, esse se dava às interrogações do destino.
Lembrava-se da mãe. Contudo,
sentia vergonha demais em voltar. "Para quê?" Pensava. "Para dar
razão à velha?" "Para chegar em casa e ouvir: Eu sabia que esse
encosto nem o próprio marido iria querer.”
Preferia ficar e aguentar calada, como
desde o dia em que nascera: o peso da mão da vida. Chegara, querendo ou não,
até aqui, embora, em certos momentos, pegasse se lembrando de como tudo era
diferente.
Era tão bonita, tinha tantos
sonhos, costurava tão bem. Não tinha dúvidas de que poderia ter aberto uma
lojinha de roupas cujo nome seria "Vicência Modas". Ah… lá faria seus
designs, receberia, com o maior prazer, suas clientes. Diria que aquela peça
ficou linda mesmo sabendo que não estava, ofereceria champanhe, aperitivos, e
todos os seus serviços, mas o que tinha de fato em suas mãos era medo. Medo da
bebê que, por um milagre, não havia morrido, apesar da gravidez de risco.
Desde que teve ciência de que era
menina, engolia no peito a forte martelada de saber que sua prole seria a
próxima. Via na cara de Valmir o desejo pela pele da filha.
Todavia, a bebê crescia e aflorava
dentro de seu ventre, indo na contramão de todas as suas tentativas abortivas.
Dessa forma, para selar a tortura de
vez, quando estava limpando o chão da cozinha em uma tarde de terça-feira, o
medo apertou seu peito de tal maneira que não conseguia respirar. Tinha chegado
a hora.
Não tinha telefone em casa porque o
marido era louco e muito ciumento, além disso, temia que ela contasse para
alguém os maus-tratos que sofria. Portanto, Vicência teve de juntar forças onde
não tinha e foi andando para um terreiro que ficava perto de seu casebre.
Diziam pelas redondezas que a mãe de santo, mãe Zelina, tinha sido uma parteira
de mão cheia. Sendo assim, Vicência decidiu ir até ela.
Quando chegou, foi atendida e acolhida,
como filha que nunca se sentiu. A senhora olhava para ela com espanto,
incompreendendo toda a conjuntura, afinal, a garota só gritava. No entanto,
logo soube.
Com
isso, pegou-a pelo braço e a guiou até seu quarto, mas as pernas de Vicência
perderam sua força e o chão se revelou como o único local apto, naquele
momento, para que se realizasse o parto.
Mãe Zelina não se intimidou, pegou
panos e toalhas limpas, colocou um canecão com água para ferver e relembrou sua
antiga vida. Não se passou muito tempo até a moça colocar aquela criança para
fora com uma facilidade que impactou a parteira.
Nesse sentido, quando mãe Zelina foi
entregar a filha nos braços de Vicência, esta implorou que não o fizesse. Pediu
inquieta que mandasse a menina para o mais longe dali. Suas lágrimas e seu
clamor embargado de desespero já foram o suficiente para que mãe Zelina —
graduada na universidade da vida — entendesse o porquê.
Depois de ganhar fôlego, Vicência saiu
dali e foi para um córrego que localizava-se no alto do maior morro da região.
Sabia que tinha chegado a hora. Que não havia saída. Se não o fizesse, ele o
faria.
Já estava cansada. Não compreendia como
conseguiu tamanha longevidade naquele casamento. Portanto, olhou para as águas
do profundo córrego e permitiu que elas lhe dessem paz.