Branca de Neve e os sete cãezinhos
vira-latas
Hirtis
Lazarin
Sou
um cão vira-lata. Eu estava cheio de sarna
e as pessoas me expulsavam de perto. Vivia me arrastando, perdido e sem rumo.
Até que uma família amorosa me resgatou da rua e cuidou de mim. Ganhei casa,
comida e muito carinho.
A
garotinha Jack, de cinco anos, deu-me o nome de” Cokie”. Eu adorei e me senti muito importante.
Eu
circulava livremente pela casa e observava tudo que acontecia.
Depois
de um período de intensa alegria, a casa acinzentou de tristeza. Seu Guilherme
e a pequena Jack voltaram pra casa sem a Dona Helen e o bebê recém-nascido. Uma
tragédia no parto.
O
quartinho preparado para o menino ficou fechado por um tempo bem comprido. Como eu não sei fazer conta...
Eu
andava pela casa meio que escondido e quase se esqueceram de mim.
A
vovó morou um tempo com a gente, mas não muito. Ela tinha uma casa com quintal
bem grande e criava galinhas. As galinhas tinham nome. Tinha uma que se chamava
Anita. Era exibida e vivia correndo atrás do galo.
Ouvi
seu Guilherme resmungando muitas vezes:
— Os
retalhos que ficaram têm que ser ajuntados para que a vida possa continuar.
Bem,
eu não entendi que retalhos são esses, mas ele sabe o que fala.
Levou
tempo, mas a poeira foi se assentando, Jack voltou a brincar com as bonecas e
comigo também.
O
pai trocou os móveis do quarto e até comprou uma casinha nova pra mim. Senti-me
novamente parte da família.
Um
caminhão branco com letras vermelhas pintadas na carroceria levou tudo embora.
Nada
ficou como era antes porque eu não ouvia mais dona Helen cantando e conversando
sozinha na cozinha. Mas a casa saiu do
silêncio: ouviam-se música e risadas.
E uma nova mulher veio morar com a gente. Acho
que falava demais. Meu faro apurado percebeu que ela não gostava muito de mim.
Quando estávamos sozinhos, jogava a água e a ração dos meus pratinhos. Cheguei
a ficar um dia inteirinho sem comida.
Mas,
eis que outra tragédia atinge a família. Seu Guilherme viajava, às vezes, a
trabalho. Numa dessas voltas pra casa, o pneu estourou, o carro capotou várias
vezes e ele ficou preso nas ferragens.
Vou
ser sincero: não sei contar os detalhes de como tudo ficou. Escondia-me pelos
cantos e a tristeza era tanta que meu rabo e minhas orelhas nem paravam em pé.
Jack
já era adolescente, ficava o dia todo na escola e, acreditem se quiser,
apareceu um novo morador na casa. Ele tinha os braços cheios de desenho que não
se apagavam nem quando tomava banho. Os braços eram tão grossos que as pelotas
apareciam mesmo debaixo da camiseta.
Usava tanto perfume que eu nem podia chegar perto. Espirrava tanto que Jack
dizia:
— Cokie tem renite.
Eu nunca
vi esse Thomas trabalhar. Só de pernas pro ar. Tinha tempo pra paparicar a
menina e muito...muito mesmo. Principalmente, quando a madrasta não estava em
casa. Eu já vi o moço elogiando e
beijando fotos dela. Achava aquilo bem esquisito e eu sabia que não terminaria
bem.
Jack,
na sua inocência, aceitava os carinhos. Sentia muito a falta do pai.
A
dona da casa, que não é boba nem nada, começou a esconder-se atrás das portas,
a fingir que saía e não saía. Sua raiva foi crescendo e virou um plano macabro:
acabar com a enteada.
Eu,
de mansinho, fingindo ser o bobo da corte, acompanhava as caretas de ódio que
ela fazia e tive certeza de que algo muito ruim estava prestes a acontecer.
Na
nossa rua, há uma academia. Vi a mulher conversando na calçada com um frequentador. Era o “RUK” em pessoa.
Pra
mim ficou tudo muito claro.
Bolei
uma estratégia com meus amiguinhos da rua, seis vira-latas que sempre passam
pela nossa casa e são alimentados.
Às
sete horas da noite, Jack chega da aula de inglês e o nosso pedaço anda escuro
por conta de lâmpadas queimadas. Nós, os sete vira-latas, escondemo-nos atrás
de duas árvores.
E,
tudo aconteceu como eu previra. No momento em que o gigante chegou e,
sorrateiramente, imobilizou Jack, nós o atacamos com unhas e uma centena de
dentes afiadíssimos. Era sangue que escorria de todos os orifícios daquele
corpo deformado.
Uma
gritaria e uma correria.
Vizinhos
assustados ligaram pra polícia.
Jack
desmaiou e com a força dos nossos dentes, a arrastamos pra bem longe daquele
lugar.
Já
faz um tempão que isso aconteceu e, hoje Jack vive com a avó. E nós, os sete
vira-latas também.