Eu não quero ser uma caneca
Hirtis
Lazarin
Vó
Toninha morava no casarão da esquina na Rua Torta. Apesar de viver sozinha, esbanjava bom humor
e a solidão nunca conseguiu encontrá-la.
Criativa e inteligente, sentia prazer imenso em contar historinhas,
inventar outras e até alterar as já conhecidas.
Não é à toa que vivia rodeada de crianças.
Como passava o maior tempo na cozinha, seu
cantinho preferido, até apelidos e brincadeiras ela fazia com os objetos da
cozinha. Dizia que o "bule"
tinha o bico aberto e não parava de tagarelar.
A "tigela" de porcelana finíssima pintada de flores era
a" margarida desfolhada" só porque tinha uma rachadura quase
imperceptível na borda. A
"panela" de alumínio amassada e com o cabo de madeira esfrangalhado
era a "idosa querida". Fazia
até competições entre as xícaras de café, "as anãzinhas", com as de
chá, "as poderosas". Confusão
na certa!
Guardada no armário de vidro espelhado,
reinava uma caneca de louça vermelha e branca com o emblema da Suíça. Presente que o esposo ganhou do governo de
lá. Era poupada e resguardada. Uma relíquia. A tal caneca sabia do valor
emocional que representava e se aproveitava disso. Sentia-se poderosa e esbanjava orgulho. Nunca abriu mão do seu trono.
Numa noite estrelada em que a lua cheia
espantou a escuridão, a caneca abandonou a clausura daquele convento. Queria conhecer o mundo que girava lá
fora. Nos primeiros dias foi dificílimo
driblar os passos dos pedestres para não morrer pisoteada. Todos tão apressados como se o mundo fosse
acabar naquele instante. Atordoada
naquele vaivém, escondeu-se debaixo de uma lixeira e toda
encolhidinha aguardou a tontura e o pavor passarem. Atravessou uma rua calma e sentou-se numa
pracinha sombreada, onde crianças pequenas brincavam. Divertiu-se muito com as peripécias da
criançada até que um garoto bem fortinho deu um chute certeiro na bola. Ela subiu zunindo no ar, deu duas ou três
piruetas e caiu acertadamente no banco onde a caneca, até então, sentia-se a
mais segura das criaturas. O banco de
madeira já gasto chacoalhou-se tanto que a caneca saltou no ar e, só não se
espatifou porque sua queda foi amortecida por um ursinho de pelúcia. Só recobrou os sentidos quando estava noite e
o parquinho vazio. Teve a grandeza de
agradecer por estar viva, pôs-se em pé e se contorceu toda para se livrar da
areia suja que a incomodava.
E foi a primeira vez que suas lágrimas
rolaram. "Estou arrasada. Sei que
meu fim está próximo. É só alguém,
nervoso ou irritado, por engano, encher-me de café fresquinho e bem
quente. O líquido vai escorrer pelo
trincado e eu, coitada de mim, serei atirada bem longe até e me desfarei em
pedacinhos. Mil pedacinhos. Um final muito triste"
Era uma vez uma caneca presunçosa que se
amava além da conta.