SEGREDO
Hirtis
Lazarin
—
Vem almoçar, “minina” bonita. Fiz o almoço que você pediu.
—
Vó, eu não sou mais “minina”, tenho quinze anos – grita Júlia, lá do quarto.
Dona
Tereza arruma a mesa com capricho, escolhe os melhores pratos e os copos
coloridos, aqueles que a neta mais gosta.
Mais
de dez minutos se passaram, a comida já esfriou e a avó se policia pra não
perder a paciência. Faz apenas dois dias que a adolescente chegou no sítio.
Está de férias, e a mãe acreditou que a filha, em contato com a natureza,
esqueceria um pouquinho do celular. Mas nesses primeiros dias, Júlia quase não
saiu de dentro de casa, apesar de todas as tentativas da avó.
Dona
Tereza almoçou sozinha, lavou a louça e a comida voltou para o fogão. Respirou
fundo, engoliu a seco pra não perder a paciência e soltar seus palavrões
favoritos. Fingiu que tudo bem, e Julia só almoçou quando bem-quis.
O
dia seguinte amanheceu convidativo e lindo de viver. Um céu azul enfeitado de
pequenos e quase invisíveis flocos de nuvens bem espalhados. A passarada, sem
medo de nada, invadiu os galhos frutíferos. A fartura era tanta de encher o
bico de alegria.
Dona
Tereza abriu todas as janelas, puxou as cortinas que impediam a visão completa
do belo e a luz entrou poderosa. Junto, uma brisa calma, mas não incapaz de ser
sentida no rosto e nos nós dos cabelos. Pavarotti, o galo imponente, iniciou
sua cantoria poderosa. E as galinhas espertas e já prontas para a caminhada
diária. O cachorro Dom, como já estava acostumado, disparou latindo em direção
às aves. Era de brincadeira.
Júlia
foi acordada com todo esse rebuliço, mais a voz da avó à sua cabeceira com o
copo cheio de leite e café, coadinho na hora. E mais um pão quentinho com
manteiga. Um esforço para entusiasmá-la com coisas diferentes do seu dia a dia.
Entretê-la: recolher ovos no galinheiro, cortar a alface na horta e cenoura
também; brincar com a cabritinha de apenas dois meses e o lago cheio de
peixinhos.
Ela
se esqueceria do celular? Tomara!
Dona
Tereza, depois de um sermão tranquilo igual ao do padre Pietro, conseguiu que a
adolescente lhe entregasse o aparelho, desde que fizesse o bolo de chocolate
com muito chocolate. E o trato era devolver só à noite seguinte.
No
dia seguinte, foi um corre-corre no sítio “Pedacinho de Terra”. Dois carros de
polícia, Dona Tereza, com os cabelos em pé, gaguejava tanto, as palavras saiam
tão enroladas que não se fazia entender. Júlia chorava sem parar e sua mãe, que
acabava de chegar e sem entender tamanha confusão, caiu desmaiada no chão.
Vamos
lá: no dia anterior, Júlia comeu sozinha mais da metade do bolo de chocolate. A
avó, preocupada, deixou à disposição um medicamento caso a neta se sentisse mal.
A menina, ansiosa, andava pra cá e pra lá. Ligava a t.v. e não conseguia se
prender a nenhuma programação. E a senhorinha, fazendo crochê, só a observava.
Mantinha-se firme em sua posição. Até pensou em voltar atrás, os setenta anos
vividos, queria sossego.
À
noite, depois de muita insistência e não querendo magoar tanto a avó, Júlia
tomou um copo de chá de maracujá, colhido fresquinho no pé. As ramas pendiam de
tão pesadas. Era maracujá que não acabava mais. Ao engolir o chá, ela fez
caretas e muitas caretas de um jeito escondido. Mesmo assim não conseguia
dormir. Dona Tereza sugeriu, então, que ela usasse o telefone fixo pra falar
com as amiguinhas. A toda moderninha achava aquele aparelho muito engraçado,
pra não falar ridículo e, como invenção do século passado, deveria ser
descartado. Mentiu que não sabia fazer a ligação e discutiu com a avó, que pra
não se alterar e perder a paciência, fingiu que era surda.
Já
era madrugada quando a senhorinha se levantou e foi até a cozinha buscar água.
O quarto de visitas estava com as luzes acesas. Aproximou-se da porta feito uma
onça cautelosa à espreita da presa. A neta ainda estava ao telefone. Falava
alto, as risadas eram tantas e o diálogo era estranho. Foi possível ouvir
algumas palavras comprometedoras. Precisava descobrir o assunto da
conversa.
Dona
Tereza, apesar da idade, tinha audição aguçada e faro de gente esperta. Buscou
os óculos, não sabe o porquê, mas precisava deles. Coisa de gente velha.
Colou os ouvidos à porta e prestou muita atenção. Ainda conseguiu ouvir um
pouco do assunto…
—
Rose, você ouviu o que ele combinou? Prestou atenção? Eu estou anotando o
endereço, anote também. Ai, a linha voltou a cruzar. Cale a boca, pra eu ouvir
bem o Bruno.
—
Oi, eu entendi tudinho, Bruno. Eu tenho um notebook novinho e tenho curso
completo de computação. Só repete o horário. Dezenove horas?
—
Saco, a linha descruzou outra vez, Rose. Eu não ouvi direito. Ah! Você
ouviu? Repete pra mim e anote. Nossa, já são duas da manhã. Ainda bem que
minha avó toma remédio pra dormir. Deve estar roncando.
E os
cabelos de D. Tereza foram se arrepiando. Os pelos do corpo também. Os olhos
cresciam arregalados e o cérebro se contorcia.
— Bruno,
você está aí? Acho que estou falando sozinha… Rose, esconda todas essas
anotações. Você é meio atrapalhada. Se alguém descobrir, estamos fritas.
Você está agitada? Eu estou é muitooooooo. Ah! Está ouvindo ele? Eu não estou.
Praga do infernoooo! Agora estou. Olá, Bruno, fala depressa antes que a linha
descruze. Ok. Entendi. No final da semana, estarei em casa. Beijos. Bye, bye!
— Rose, segredo eterno. Só pra nós, hein!
Poderosas. Vou desligar. Tá bem! Ok. Bye Bye. Desligue. Eu vou sonhar com os anjos.
—
Mas não vai, não - Resmungou Dona
Tereza, lá fora.
Ela
não se aguentou. Bateu na porta já entrando. Júlia fingiu estar dormindo. Mas
não convenceu, não. Segurava ainda bem firme o telefone. E o aparelho estava
quente, fervendo.
As
duas, avó e neta, travaram uma longa conversa. Foi difícil arrancar o tal
segredo; demorou um tempão, mas saiu por inteiro, não importa, se foi aos
trancos e barrancos. O plano era encontrar-se com a turminha do Bruno. Eram
quatro ratos de computador. Clonavam cartão de crédito e enganavam velhinhos
inocentes e descuidados. E o dinheiro caía em bicas, uma fonte sem fim. Sem
fim, até serem descobertos e presos.
Quando
o dia clareou, Dona Tereza não teve dúvidas e chamou a polícia.