MAL
ACOMPANHADO
HIRTIS LAZARIN
O homem abriu os olhos gemendo de dor. Acabara
de levar um chute no tornozelo. Era assim que o cobrador de ônibus
acordava o último passageiro no ponto final da linha.
Sonolento, Joca saltou do coletivo num pulo de mal
jeito. A coluna vertebral não gostou e respondeu com um "ai"
dolorido.
Além de atravessar a cidade de oeste a leste, ele
tinha que enfrentar uma caminhada de mais de meia hora.
A noite estava gelada, escura e silenciosa.
Até o boteco da esquina, onde, todo dia bebericava algumas doses de cachaça com
conhecidos, quase não pega aberto.
Olha no relógio e já são vinte e duas horas.
Estava mais tarde que de costume. Postura envergada, menos pelos anos já vividos
e muito mais pelos maus tratos da vida difícil. Nordestino, semianalfabeto,
passa os dias misturado e confundido com tijolos e cimento, aturando a
prepotência e indiferença do mestre de obras. Joca já imobilizou dezenas
e mais dezenas de palavrões na garganta porque depende destes tostões
pra sobreviver.
Olhos tristes, passos pausados e monótonos, caminha
solitário. O silêncio é interrompido pelo som de passadas vindas de
trás. Para, olha e procura. Não vê nada. Um breu só. As
luzes dos postes esqueceram que já era noite.
Joca sente um frio gelado e a sensação de que um
vulto passou pertinho de seu corpo. Encolhe-se arrepiado. " Bobagem, sou
cabra macho. Só tô cansado demais. Ou será que é a saudade de
"mainha? Ainda bem que consegui chegar a tempo pra vê-la e
abraçá-la antes da sua partida."
Caminha mais um quarteirão e as
passadas voltam. Antes um plact... plact... vagaroso,
agora um ploct, ploct rápido. Ele muda de calçada. Os sons
acompanham-no. E, ainda, falta um bom pedaço de caminho
pra Joca chegar em casa. A boca seca tem gosto de jiló e um fio
gélido percorre sua espinha.
A rua continua um deserto de gente. De vez em
quando um carro,.. Uma coruja mal agourenta pia estridente escondida nos galhos
do manacá corpulento e florido. Um gato morador de rua abandona o
esconderijo e desaparece enlouquecido. "Que noite é essa, Padim
Ciço"!
Joca não controla mais a respiração. Gotas
aflitas escorrem-lhe pelo rosto sem cor. Era uma tremedeira só. O sertanejo,
que não temia nem o diabo, fraqueja e sente vergonha. Não anda nem pra
frente nem pra trás. Cai sentado no meio fio. Flexiona as pernas e
esconde o rosto entre os joelhos. Posição fetal que geme, que busca
proteção. Ouve, então, a respiração ofegante de alguém bem próximo e,
logo em seguida, o tec... tec... de um gatilho. Espera a morte. Era
seu último momento de sobrevivente num chão áspero e sujo. Enche os
pulmões e grita como nunca gritou antes.
Uma caneca de água gelada alivia-o desse
sofrimento. "Vai pra casa, Joca. Toma um banho e
livra-se dessa ressaca!" Grita, o
dono do boteco.