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quarta-feira, 22 de junho de 2022
Filme Vidas Secas -1963
CROCK O JACARÉ FAMOSO - Henrique Schnaider
CROCK
O JACARÉ FAMOSO
Henrique Schnaider
Crock era um jacaré bonzinho, sempre sorridente,
morava num zoológico lá no mundo da fantasia. Desde que nasceu era diferente dos
outros jacarés. Tinha muita amizade com a garotada que vinha todos os domingos
aproveitar o parque e não deixava de fazer uma visita a ele. As crianças traziam
sorvete que era o doce mais saboroso e mais apreciado por ele, adorava os
sabores coco limão e morango.
Ele nasceu diferente dos seus irmãos que eram muito
ferozes. Seus dentes não eram ameaçadores, em vez de patas tinha dois bracinhos
e mãos e daí podia segurar os sorvetes de três bolas e se lambuzar todo, se
deliciar com o que ganhava principalmente os sorvetes.
Ele não via a hora de chegar os finais de semana já
que recebia inúmeras visitas das crianças que vinham cheias de docinhos pipocas
bexigas e imitação de bichos todos coloridos de rosa amarelo e verde um
verdadeiro arco íris, amarradas em cordão. A alegria era grande e o ambiente
era dominado por uma pela felicidade e tristeza não tinha vez por lá.
Wilson um rapaz de trinta anos era seu melhor amigo.
Mas havia uma menininha de nome Letícia que era a cara da miséria, pobrezinha
que vinha ao Zoo na companhia da mãe e sempre dava uma passada no local onde
ficava o Crock e uma boa amizade aconteceu.
Crock descobriu que podia falar já que era todo
diferente e tinha todos estes dons que não havia ainda usado. Viu que podia
escrever também. Com todas estas qualidades e com muito dó da pobre menina e
sua mãe, pensou em uma forma de ajudar.
Arrumou uma folha de papel e caneta tipo pincel que
as crianças lhe deram e resolveu escrever um cartaz com letras bem grandes e
perfeitas que diziam o seguinte:
— Para vocês meus amigos que vem todos os domingos
me trazer sorvetes, estou escrevendo este cartaz pois queria pedir para que
ajudassem uma amiguinha minha, a Leticia. Ela e sua mãe são muito pobres.
Portanto vocês que estão bem de vida façam alguma coisa por elas.
Naquele mesmo domingo veio ao local visitar o Crock
um senhor de nome Roberto muito rico. Acompanhado de sua esposa e da filha e
quando leu o cartaz, emocionado perguntou ao jacaré:
—Oi Crock foi você que escreveu este cartaz? Puxa
que interessante você além de falar, escreve muito bem, mas quem são estas
pobres pessoas? Gostaria de conhecê-las e quem sabe poder ajudá-las.
Crock todo contente respondeu:
—Que bom Sr. Roberto elas foram ali comer alguma
coisa e já voltam, por favor aguarde um pouco.
— Sim Crock claro que aguardarei.
Dali a alguns minutos chegaram Leticia e a mãe. O
jacaré fez as devidas apresentações.
Roberto ficou encantado com a educação das duas e
fez o convite para fossem com ele para a sua casa grande morar lá. Ele iria
aproveitar a mãe nos serviços da casa e iria pagar todos os estudos de Leticia.
A partir daí todos os domingos eles vinham ver o
Crock. Leticia e a mãe, Roberto a esposa e filha. Nos estudos Leticia foi excelente aluna e com
passar dos anos se formou em Veterinária e nessas voltas que a vida dá, acabou
se tornando a Diretora Geral do Zoo.
Era importante para ela uma visita diária ao Crock,
já velhinho e sempre dizia:
— Crock serei eternamente grata pelo que você fez
por mim e minha mãe, algo que mudou a minha vida e você será sempre um
verdadeiro pai que eu não tive. Lágrimas rolaram dos olhos do jacaré.
O MACACO SIMÃO E SEU BANDO - Henrique Schnaider
O
MACACO SIMÃO E SEU BANDO
Henrique Schnaider
O macaco Simão era o “maldoso” do bando, mas também
muito “matreiro”. Sempre era o primeiro a pegar as comidas que o bando
“faminto” achava para comer.
Ele tinha a liderança do barulhento bando de macacos
e não admitia que ninguém o desafiasse. Assim de vez quando, algum macho jovem
empolgado, resolvia desafiar o líder Simão, o circo pegava fogo, mas na luta
para manter a liderança ele era “preciso” nos seus golpes e punha para correr o
desafiante.
Havia momentos que ele era “injusto”, e que nem
sequer tinha pena dos filhotes do bando, alguns dos quais eram seus filhos. Os
pobres que ficavam aguardando os pais para poderem ser alimentados.
Quando eram atacados pelos bandos inimigos, sabia
defender o bando como um verdadeiro líder tem que ser. Desta forma era cada vez
mais acatado e admirado. As fêmeas da turma se encantavam com ele e ficavam
sedentas apenas de um olhar de interesse por uma delas.
Ele sabia escolher muito bem as preferidas. As
macacas mais bonitas e aquelas que procriavam bem para lhe dar muitos filhotes.
Mas tinha uma macaca jovem ainda, a Pimba que era a sua preferida e Simão se
desmanchava todo por ela, lhe dando presentes de frutas madurinhas deliciosas.
Quando o bando era rodeado e atacado por grandes
felinos como leões, leopardos ou panteras, o líder Simão tratava de atrair as
feras para proteger o resto do bando. “Preciso” e “matreiro”, sabia como
enganar os atacantes que acabavam se cansando e desistindo da caça pelas
estratégias de fuga do Lider.
Assim os anos foram passando e Simão continuava liderando
e protegendo o seu bando, mas o tempo não perdoa nenhum ser vivo e o velho
macaco, começou a dar sinais velhice e de fraqueza.
Um dos seus filhos King, já adulto se tornou um
vigoroso macaco que era temido por todos. Simão percebeu que seu filho qualquer
dia, iria desafiá-lo e tomar o poder dele e assumir a liderança do bando.
O macaco Simão demonstrou que tinha sabedoria e
maturidade e antes que seu filho lhe tirasse o poder através de um combate, o
chamou e deu o cetro do poder ao filho e resolveu se aposentar daquela vida
agitada e foi viver bem no alto de uma gigantesca árvore ao lado da sua amada
Pimba.
O MENDIGO OSÉIAS E O SEU DESTINO - Alberto Landi
O
MENDIGO OSÉIAS E O SEU DESTINO
Alberto Landi
Todos os mendigos são solitários, pois a própria
pobreza os faz desconfiar inclusive de outros mendigos à sua volta.
Quando um tinha um cobertor melhor ou um apetitoso
prato de comida, o outro mendigo já o olhava com inveja e raiva fazendo todo o
possível para inverter a situação, até roubar do companheiro aquilo que lhe
faltava.
Oséias, um mendigo sofrido e bom, morando num canto
sujo e úmido de um bairro fino, nunca levantou os olhos a quem quer que passasse
ao seu lado mesmo porque ele era invisível aos olhos de quem não queria ver a
decadência de um homem ainda jovem e aparentemente saudável naquele canto sujo
e fétido. Todo mundo o evitava, passavam longe...ninguém queria estar
próximo a um indivíduo naquela situação.
Era um dia lindo e ensolarado para todos, menos para
Oséias. Os dias eram sempre iguais, cansativos, tristes, monótonos, pois não
tinha TV para se distrair, não tinha um sofá para descansar suas pernas magras
ossudas e nem mesmo uma cama para repousar seu corpo cansado!
A única vantagem de Oséias era que a noite ele tinha
uma visão surreal do céu, que as estrelas pareciam saudá-lo. Ele conversava com
elas, lhe dava nomes... Havia a Tiquinha que parecia estar sempre sorrindo pra
ele, a Destreza que era muito séria, mas a mais brilhante. A lzinda que
ficava o tempo todo apagando e acendendo. Parecia brincar de esconde-esconde
com ele. Elas eram suas únicas amigas.
Só depois que clareava o dia é que Oséias pegava no
sono, já com os ossos tão cansados e doloridos de dormir no cimento duro, e só
acordava quando o sol já estava alto no céu. Um dia, Oséias estava muito triste,
pois se sentia muito só e abandonado, e resolveu andar...andar... Até não aguentar mais, até suas pernas
dobrarem pelo cansaço e ele partir desta vida. Estava resolvido. Quem iria se
importar com ele, um sujeito sujo e fedido?
Caminhando por aquele bairro de gente fina quando
inesperadamente a sua frente surge uma criança. Um menino magro alto, de
cabelos encaracolados, olhos muito claros me encarou e disse:
— Tio, olha o brinquedo que eu ganhei. E ficou ao
meu lado, sem nojo, sem a repugnância que causava nos adultos, me mostrava tudo
do novo brinquedo, como funcionava, com bastante euforia como se amiguinho dele
ele fosse. Com voz embargada e comovida Oseias perguntou:
— Qual é seu nome?
— Gabriel. Na sua inocência nem imaginava que mostrou
a Oséias o caminho a seguir.
Há anos Oseias havia deixado a mulher e seu filho
numa cidade muito longe dali e na época ele achava que era um irresponsável e
inútil pois estava desempregado. Envergonhado decidiu sair pelo mundo e nunca
mais teve notícias da família. Resolveu voltar para casa. O seu lar o seu lugar
de onde nunca devia ter saído.
Ao chegar, de longe com os olhos embargados viu seu
filho jogando bola e a mulher no portão que parecia estar à espera. Ao verem
Oseias, eles correram e o abraçaram com o coração cheio de alegria. O mendigo
sentiu-se tão acolhido e amado que não parava de chorar.
Agradeceu aos prantos na mente, aquele garoto que
surgiu no seu caminho como por encanto lhe mostrando sem perceber que tinha que
voltar a vida da família. Tinha que lutar e nunca, nunca desistir dos seus
entes queridos.
O medo de Rebeca - Adelaide Dittmers
O
medo de Rebeca
Adelaide Dittmers
A tartaruguinha Rebeca
estava na relva escondida em sua grossa carapaça. Só se podiam enxergar os
olhinhos brilhantes.
Dona Orelhas Compridas, uma
simpática coelhinha saltava por ali, quando a viu toda encolhida.
— Rebeca, está um lindo dia!
Por que não sai daí para dar um passeio.
— Não quero! Tenho medo!
— Do que tem tanto
medo? Quase sempre que a encontro, você
está dentro dessa sua proteção.
A pobre tartaruga começou a
chorar.
— Você não sabe como sou
perseguida. Todos adoram fazer
brincadeiras maldosas comigo.
— Que tipo de brincadeiras?
— Um dia um passarinho bicou
minha cabeça. Outro dia, um macaco
jogou uma casca de banana em cima de mim.
Como sou vagarosa e não consigo me defender, os bichos adoram fazer
essas brincadeiras e depois saem rindo muito, quando me escondo em meu casco.
Orelhinhas Compridas ficou
com muita pena de Rebeca. Não era justo
se divertirem à custa dela. Resolveu
ajudá-la.
— Fique tranquila. Vou acabar com isso. E saiu saltitando.
Chegando à sua toca, fez um
grande cartaz, convidando todos os animais para uma grande festa no dia
seguinte. Para Rebeca, ela entregou o
convite pessoalmente, dizendo que ela não poderia faltar.
No meio da floresta, uma
grande mesa feita de bonitas folhas estava repleta das mais variadas e apetitosas
frutas. Ao seu redor, havia uma banda,
que tocava as músicas preferidas da bicharada.
Um portal, feito de galhos e flores indicava a entrada para a festa.
Rebeca chegou e passou
devagar pelo portal e foi de encontro da coelhinha, que a levou para um lugar
de destaque, onde poderia apreciar tudo à sua volta.
Os bichos foram chegando,
mas ficaram surpresos por que antes de entrar tinham que passar por um
teste. Na entrada, havia pesadas caixas
de vários tamanhos, feitas de pequenos troncos de árvores, que eram postas em
suas costas para serem carregadas até o centro da festa.
As reclamações foram muitas,
mas a vontade de se divertir fez com que eles aceitassem o desafio. Com dificuldade arrastaram-se até o lugar da
comemoração. Chegaram cansados e
incomodados pelo esforço.
Orelhas Compridas então
subiu em um pequeno monte e disse:
— Foi difícil, não foi?
Andar com essas caixas atrapalhando seus movimentos.
Todos concordaram e um deles
perguntou?
— Por que você fez isso?
— Para mostrar a vocês que
não se deve brincar com a dificuldade do outro.
Cada um é de um jeito. Precisamos
respeitar as diferenças. E apontou para
Rebeca, que se refugiara no seu grosso casco.
— Vem para fora, Rebeca!
A tartaruga foi colocando as
perninhas e a cabeça para fora. Os
olhinhos cheios de medo.
Os animais olharam uns para
os outros muito envergonhados e prometeram nunca mais mexer com ela e lhe
pediram desculpas.
A tartaruguinha sorriu feliz. Estava sendo aceita e iria ser
respeitada. Finalmente, iria fazer
muitos amigos.
— Vamos começar a festa,
gritou a coelhinha! E a alegria durou a noite inteira.
A PRESTAÇÃO DE CONTAS DE GRACILIANO RAMOS
A PRESTAÇÃO DE CONTAS DE GRACILIANO RAMOS
Graciliano Ramos, considerado um dos maiores escritores brasileiros, tinha 35 anos quando em abril de 1928, assumiu como mandatário de Palmeira dos Índios(AL), renunciando-o em abril de 1930. Acabou preso, em 1936, no governo Getúlio Vargas, por participar de movimentos de esquerda. Vítima de câncer, faleceu aos 60 anos de idade, em 20 de março de 1953. Ao renunciar ao seu mandato, deixou como obra prima a sua prestação de contas, que é um modelo a ser seguido até hoje. Nesse momento crucial para o nosso país, quando os novos governantes se preparam para assumir seus mandatos, transcrever os trechos mais importantes do relatório, revela-se bastante oportuno. Por ser bastante extenso, foram destacados os principais pontos por ele abordados, que serão publicados em duas edições.
“Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios – Relatório – Ao Governo do Estado de Alagoas –
Exmo. Sr. Governador:
Trago a V.Ex.ª um resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos Índios em 1928.
Não foram muitos, que os nossos recursos são exíguos. Assim, minguados, entretanto, quase insensíveis ao observador afastado, que desconheça as condições em que o Município se achava, muito me custaram.
COMEÇOS:
O principal, o que sem demora iniciei e o que dependiam de todos os outros, segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na Administração.
Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante do Destacamento, os soldados, outros que desejavam administrar. Cada pedaço do Município tinha um administrador particular, com Prefeitos Coronéis e Prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam.
Para que semelhante anomalia desaparecesse lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensava uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administrava melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro.
Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restaram poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem com suas obrigações e, sobretudo, não se enganam nas contas. Devo muito a eles.
Não sei se a administração do Município é boa ou ruim. Talvez pudesse ser pior.
RECEITA E DESPESA:
A receita, orçada em 50:000$000, subiu, apesar de o ano ter sido péssimo, a 71:649$290, que não foram sempre bem aplicados por dois motivos: porque não me gabo de empregar dinheiro com inteligência e porque fiz despesas que não faria se elas não estivessem determinadas no orçamento.
(…)
ILUMINAÇÃO:
A iluminação da cidade custou 8:921$800. Se é muito, a culpa não é minha; é de quem fez o contrato com a empresa fornecedora de luz.
(…)
CEMITÉRIO:
No cemitério enterrei 189$000 – pagamento ao coveiro e conservação.
ADMINISTRAÇÃO:
A administração municipal absorveu 11:457$497 – vencimentos do Prefeito, de dois secretários (um efetivo, outro aposentado), de dois fiscais, de um servente; impressão de recibos, publicações, assinatura de jornais, livros, objetos necessários à secretaria, telegramas.
Relativamente à quantia orçada, os telegramas custaram pouco. De ordinário vai para eles dinheiro considerável. Não há vereda aberta pelos matutos, forçados pelos inspetores, que a prefeitura do interior não ponha no arame, proclamando que a coisa foi feita por ela; comunicam-se as datas históricas ao Governo do Estado, que não precisa disso; todos os acontecimentos políticos são badalados. Porque se derrubou a Bastilha – um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua – um telegrama; porque o deputado F. esticou a canela – um telegrama. Dispêndio inútil. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que nós choramos e que em 1.559 D. Pedro Sardinha foi comido pelos caetés.
ARRECADAÇÃO:
As despesas com a cobrança dos impostos montaram a 5:602$244. Foram altas porque os devedores são cabeçudos. Eu disse ao Conselho, em relatório, que aqui os contribuintes pagam ao Município se querem, quando querem e como querem. Chamei um advogado e tenho seis agentes encarregados da arrecadação, muito penosa. (…)
LIMPEZA PÚBLICA:
Cuidei bastante da limpeza pública. As ruas estão varridas; retirei da cidade o lixo acumulado pelas gerações que por aqui passaram. (…)
Houve lamúrias e reclamações por se haver mexido no cisco preciosamente guardado em fundos de quintais; lamúrias, reclamações e ameaças porque mandei matar algumas centenas de cães vagabundos; lamúrias, reclamações, ameaças, guinchos, berros e coices dos fazendeiros que criavam bichos nas praças.”
TERRAPLENO DA LAGOA:
O espaço que separa a cidade do bairro da Lagoa era uma coelheira imensa, um vasto acampamento de tatus, qualquer coisa deste gênero.
(…)
Durante meses mataram-me o bicho de ouvido com reclamações de toda ordem contra o abandono em que deixava a melhor estrada para a cidade. Chegaram lá pedreiros – outras reclamações surgiram, porque as obras irão custar um horror de contos de réis, dizem.
Custarão alguns, provavelmente. Não tanto quanto as pirâmides do Egito, contudo. O que a Prefeitura arrecada basta para que nos não resignemos às modestas tarefas de varrer as ruas e matar cachorros.
Até agora as despesas com os serviços da lagoa sobem a 14:418$627.
Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estive nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo caso, transformando-o em pedra, cal, cimento, etc., sempre procedo melhor que se distribuir com os meus parentes, que necessitam, coitados.
DINHEIRO EXISTENTE:
Deduzindo-se da receita a despesa e acrescentando-se 105$865 que a administração passada me deixou, verifica-se um saldo de 11:044$947.
40$897 estão em caixa e 11:044$050 depositados no Banco Popular e Agrícola de Palmeira. O Conselho autorizou-me a fazer o depósito.
Devo dizer que não pertenço ao banco nem tenho lá interesse de nenhuma espécie.
A prefeitura ganhou: livrou-se de um tesoureiro, que apenas servia para assinar as folhas e embolsar o ordenado, pois no interior os tesoureiros não fazem outra coisa, e teve 615$050 de juros. (…)
LEIS MUNICIPAIS:
Em janeiro do ano passado não achei no Município nada que se parecesse com lei, fora as que haviam na tradição oral, anacrônicas, do tempo das candeias de azeite.
Constava a existência de um código municipal, coisa inatingível e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo, convenci-me de que o código era uma espécie de lobisomem.
Afinal, em fevereiro, o secretário descobriu-o entre papéis do Império (…). Encontrei no folheto algumas leis, aliás, muito bem redigidas, e muito sebo. Com elas e com outras que nos dá a Divina Providência consegui aguentar-me, até que o Conselho, em agosto, votou o código atual.
MULTAS:
Arrecadei mais de dois contos de réis de multas. Isto prova que as coisas não vão bem.
E não se esmerilharam contravenções. Pequeninas irregularidades passam despercebidas. As infrações que produziram soma considerável para um orçamento exíguo referem-se a prejuízos individuais e foram denunciadas pelas pessoas ofendidas, de ordinário gente miúda, habituada a sofrer a opressão dos que vão trepando.
Esforcei-me por não cometer injustiças. Isto não obstante, atiraram as multas contra mim como arma política. Com inabilidade infantil, de resto. Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me.
Sei bem que antigamente os agentes municipais eram zarolhos. Quando um infeliz se cansava de mendigar o que lhe pertencia, tomava uma resolução heroica; encomendava-se a Deus e ia à capital. E os Prefeitos achavam razoável que os contraventores fossem punidos pelo Sr. Secretário do Interior, por intermédio da polícia.
CONCLUSÃO:
Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis.
Evitei emaranhar-me em teias de aranha.
Certos indivíduos, não sei por que, imaginam que devem ser consultados; outros se julgam autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem os impostos.
Não me entendi com esses.
Há quem ache tudo ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anônimas, e adoeça, e se morda por não ver a infalível maroteirazinha, a abençoada canalhice, preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que dela se servem com assunto invariável; há quem não compreenda que um ato administrativo seja isento de lucro pessoal; há até quem pretenda embaraçar-me em coisa tão simples como mandar quebrar as pedras do caminhos.
Fechei os ouvidos, deixei gritarem, arrecadei 1:325$500 de multas.
Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca.
Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome.
Não me fizeram falta.
Há descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos. Paz e prosperidade.
Palmeira dos Índios, 10 de janeiro de 1929.
Graciliano Ramos”.
A crise financeira de 1.929 que abalou inclusive os negócios da família, aliada à pressão politica dos que não se conformavam com a honestidade e transparência adotada na Prefeitura, levou-o a renunciar ao cargo na metade do seu mandato. Antes de fazê-lo, pontuou: “Para os cargos de administração municipal escolhem de preferência os imbecis e os gatunos. Eu, que não sou gatuno, que tenho na cabeça uns parafusos de menos, mas não sou imbecil, não dou para o ofício e qualquer dia renuncio.”
Como sugeriu um dia Arnaldo Branco em pontual comentário, – “Se existisse vestibular pra Político, obrigaria os caras a decorar o relatório que o Graciliano Ramos fez como prefeito”.
ORIGEM: www.buchadvocacia.com.br
GRACILIANO RAMOS - OS RELATÓRIOS DO PREFEITO DE PALMEIRA DOS INDIOS
GRACILIANO RAMOS (O PREFEITO) E SEUS RELATÓRIOS DE GESTÃO
Em 7 de outubro de 1927, uma pequena cidade do interior de Alagoas, Palmeira dos Índios, elegeu o seu prefeito. Este, toma posse em 7 de Janeiro de 1928 permanecendo no cargo até 10 de Abril de 1930, quando renuncia ao mandato de prefeito. Posteriormente, este ex-Prefeito seria o autor de um dos maiores clássicos da literatura brasileira: Vidas Secas.
Os relatórios de Graciliano Ramos enviados ao governador de Alagoas (1929, 1930), já na época, chamaram a atenção da mídia (LIMA, p. 83), não somente pela qualidade literária (pois o Prefeito não se utilizou da formalidade que tais documentos normalmente carregam, e sim, de uma construção linguística própria dos grandes escritores), mas pela sua excelência na administração da cidade.
COMEÇOS
[…]
Havia em Palmeira innumeros prefeitos: os cobradores de impostos, o commandante do destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Municipio tinha a sua administração particular, com prefeitos coroneis e prefeitos inspectores de quarteirões. Os fiscaes, esses, resolviam questões de policia e advogavam.Para que semelhante anomalia desapparecesse luctei com tenacidade e encontrei obstaculos dentro da Prefeitura e fóra della — dentro, uma resistencia molle, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, obliqua, carregada de bilis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam tres mezes para levar um tiro.
Dos funccionarios que encontrei em Janeiro do anno passado restam poucos: sahiram os que faziam politica e os que não faziam coisa nenhuma. Os actuaes não se mettem onde não são necessarios, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Dêvo muito a elles.Não sei se a administração do Municipio é boa ou ruim. Talvez pudesse ser peor (ALAGOAS, 1929).
Exerceu a administração com excelência. Com poucos recursos em caixa, elaborou projetos, realizou obras na cidade, construiu escolas, abriu estradas, saneou comunidades, soube lidar com a vontade dos soberanos da terra e vetou apadrinhamentos políticos. Foi talvez o único gestor de toda a história da cidade a deixar dinheiro nos cofres ao sair do cargo, cortando gastos e equilibrando as receitas e contas públicas (LOPES, 2016; FREITAS, 2015).
COMEÇOS
[…]
Dos funccionarios que encontrei em Janeiro do anno passado restam poucos: sahiram os que faziam politica e os que não faziam coisa nenhuma. Os actuaes não se mettem onde não são necessarios, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Dêvo muito a elles (ALAGOAS, 1929).
LEIS MUNICIPAES
Em Janeiro do anno passado não achei no Municipio nada que se parecesse com lei, fora as que havia na tradição oral, anachronicas, do tempo das candeias de azeite.Constava a existencia de um codigo municipal, coisa inattingivel e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quasi a recorrer ao espiritismo, convenci-me de que o codigo era uma especie de lobishomem.
Afinal, em Fevereiro, o secretario descobriu-o entre papeis do Imperio. Era um delgado volume impresso em 1865, encardido e dilacerado, de folhas soltas, com apparencia de primeiro livro de leitura do Abilio Borges. Um furo. Encontrei no folheto algumas leis, aliás bem redigidas, e muito sêbo.
Com ellas e com outras que nos dá a Divina Providencia consegui aguentar-me, até que o Conselho, em Agosto, votou o codigo actual (ALAGOAS, 1929).
MULTAS
[…]
E não se esmerilharam contravenções. Pequeninas irregularidades passam despercebidas. As infracções que produziram somma consideravel para um orçamento exiguo referem-se a prejuizos individuaes e foram denunciadas pelas pessoas offendidas, de ordinario gente miuda, habituada a soffrer a oppressão dos que vão trepando.Esforcei-me por não commetter injustiças. Isto não obstante, atiraram as multas contra mim como arma politica. Com inhabilidade infantil, de resto. Se eu deixasse em paz o proprietario que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pastio a lavoura, devia enforcar-me (ALAGOAS, 1930).
ILLUMINAÇÃO
A illuminação da cidade custou 8:921$800. Se é muito, a culpa não é minha: é de quem fez o contracto com a empresa fornecedora de luz (ALAGOAS, 1929).
— 7:800$000 A Prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contracto para o fornecimento de luz. Apesar de ser o negocio referente a claridade, julgo que assignaram aquillo ás escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá (ALAGOAS, 1930).
CONCLUSÃO
Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só ha curvas onde as rectas foram inteiramente impossiveis.
Evitei emmaranhar-me em teias de aranha.
Certos individuos, não sei porque, imaginam que devem ser consultados; outros se julgam com autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem impostos.
Não me entendi com esses.
Ha quem ache tudo ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anonymas, e adoeça, e se morda por não ver a infallivel maroteirazinha, a abençoada canalhice, preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que della se servem como assumpto invariavel; ha quem não comprehenda que um acto administrativo seja isento da idéa de lucro pessoal; ha até quem pretenda embaraçar-me em coisa tão simples como mandar quebrar as pedras dos caminhos.
Fechei os ouvidos, deixei gritarem, arrecadei 1:325:500 de multas.
Não favoreci ninguem. Devo ter commetido numerosos disparates. Todos os meus erros, porem, foram erros da intelligencia, que é fraca.
Perdi varios amigos, ou individuos que possam ter semelhante nome.
Não me fizeram falta.
Ha descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois annos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos. Paz e prosperidade (ALAGOAS, 1929).
POBRE POVO SOFFREDOR
É uma interessante classe de contribuintes, modica em numero, mas bastante forte. Pertencem a ella negociantes, proprietarios, industriaes, agiotas que esfolam o proximo com juros de judeu.Bem comido, bem bebido, o pobre povo soffredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer hygiene. É exigente e resmungão.
Como ninguem ignora que se não obtêm de graça as coisas exigidas, cada um dos membros desta respeitavel classe acha que os impostos devem ser pagos pelos outros (ALAGOAS, 1930).
PROJECTOS
[…]
Empedrarei, se puder, algumas ruas.Tenho tambem a idéa de iniciar a construcção de açudes na zona sertaneja.
Mas para que semear promessas que não sei se darão fructos? Relatarei com pormenores os planos a que me referi quando elles estiverem executados, se isto acontecer.
Ficarei, porém, satisfeito se levar ao fim as obras que encetei. É uma pretenção moderada, realizavel. Se se não realizar, o prejuizo não será grande.
O Municipio, que esperou dois annos, espera mais um. Mette na Prefeitura um sujeito habil e vinga-se dizendo de mim cobras e lagartos.
Paz e prosperidades (ALAGOAS, 1930).
Sua renúncia partiu das pressões políticas contra o seu trabalho na prefeitura e das dificuldades financeiras privadas decorrentes e agravadas pela crise de 1929, que afetou os negócios da família. Embora ganhasse subsídios simbólicos como Prefeito, não se locupletava com a corrupção. Empobrecera em dois anos de mandato (LOPES, 2016).
Em Maio de 1930 muda-se para Maceió e é nomeado, pelo Governador, diretor da Imprensa Oficial de Alagoas. Em 1933, é nomeado diretor da Instrução Pública de Alagoas, cargo equivalente a Secretário Estadual da Educação e contratado como redator do Jornal de Alagoas. Publica o romance Caetés, seu primeiro livro, pela Editora Schmidt – RJ, neste mesmo ano.
ORIGEM: https://blog.bbm.usp.br/2016/gracilianoramosrelatorios_2016/
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