CAIU DO CÉU
Hirtis
Lazarin
Um
grito exuberante de dor assustou o dia que amanhecia calmo e preguiçoso. Depois de uma noite inteirinha de sofrimento,
Poty deu a luz a um menino exageradamente comprido e robusto. Uma gravidez difícil e problemática que fez a
parturiente, miúda e atarracada, permanecer em repouso absoluto nos últimos
quatro meses, tamanho era o peso que carregava no útero.
Fogo
Ligeiro crescia mais rápido e mais forte que outros curumins da aldeia. As pernas longas tornavam-no veloz feito um
alce em fuga desesperada a safar-se da fera faminta. Curioso e observador,
descrevia, em detalhes, as cores das penas de cada pássaro que sobrevoava as
redondezas e, nas andanças solitárias pela mata, sempre descobria novas
espécies de flores. A cor, o colorido
encantava-o.
Atrás
dessas habilidades escondia-se um indiozinho medroso. Desaparecia como rolha de champgne em
explosão quando tivesse que participar de caçadas ou pescas. O seu medo
amarelava só de ouvir a palavra "piranha".
O
pai, índio corajoso, vivia brigando com o menino: não se conformava com esse
seu jeito de ser. Mas a mãe, desde
sempre percebia que os olhinhos do filho faiscavam de alegria quando lambuzava
as mãozinhas com tintas usadas na pintura dos corpos. E os dedinhos compridos e buliçosos nunca se
aquietavam, sempre riscando e pintando paredes, ou até mesmo o chão de terra
batida.
Com
o tempo, retas e curvas se aperfeiçoaram, linhas dispersas se encontraram e
foram se transformando em desenhos perfeitos; novos traços, novas formas, novas
cores foram aparecendo. Do chão batido,
os desenhos saltaram pra pedaços de esteiras de palha tecidas pelas índias. E o
menino não mais se assossegava; novas ideias, criatividade fervilhando dentro
daquela cabecinha irrequieta. Fogo
Ligeiro não cabia mais no espaço em que vivia.
Seu dom extrapolava tudo que o cercava.
Seus anseios e questionamentos não encontravam respostas. Vivia insatisfeito e infeliz.
O
dia mal começara quando os índios acordaram com um bimotor sobrevoando
insistentemente a aldeia. O avião perdeu
altura e o piloto, com destreza e precisão, pousou numa clareira próxima à
aldeia Guairirá. Armados de arco e
flecha, os índios cercaram a aeronave. O
território só poderia ser acessado com autorização do governo e aprovado pelo
cacique.
O
piloto foi o primeiro a descer acenando um lenço branco. Atrás dele vieram o copiloto e um casal de
turistas. Entre os índios, alguns se
comunicavam com um português rudimentar; foi, então, possível entender que o
pouso foi forçado por pane elétrico no motor.
A
permanência dos homens brancos na comunidade prorrogou-se por uma semana e três
dias, tempo gasto desde que um helicóptero trouxe dois mecânicos ao local. Durante esse convívio não planejado, a
turista paulistana não só se encantou com a cultura e a vida pacífica dos
guairirás, como constatou que, entre eles, havia um menino prodígio. Um menino
que nunca teve contato com o mundo da arte, era um artista nato, puro, isento
de qualquer influência. Um dom que não
se explicava, um dom que se aceitava e valorizava. E foi o que essa santa senhora fez. Trouxe pra aldeia, além de professores, todo
material que o indiozinho necessitaria pra se desenvolver. Uma mecena em pleno século XXI.
Fogo
Ligeiro pode, então, expressar toda sua imaginação, toda sua criatividade, toda
sua excentricidade.
Já
participou de várias exposições pelo Brasil, ganhou alguns prêmios importantes
e sua renda é empregada para aprimorar sua arte e melhorar a vida de seu povo.