O ANJO DO CÉU E A LIBERTAÇÃO DE MIGUEL
Leon
Vagliengo
Um
conto baseado em recortes sobre o sofrimento e o resgate do viver.
Ser
feliz é uma responsabilidade muito grande. Pouca gente tem coragem. As
razões possíveis são muitas, uma delas aqui exemplificada na história de Miguel,
que passo a lhes contar:
Nascido
de família de classe média, Miguel carregava em sua personalidade os efeitos de
uma educação familiar básica, mas correta, moldada ao longo de sua infância e
adolescência para que se tornasse um bom cidadão, capaz de enfrentar as
circunstâncias da vida adulta.
Nesse
processo, porém, um fator havia prejudicado a formação de seu equilíbrio
emocional: o seu pai era um homem bom, correto e trabalhador, mas alcoólatra; não
conseguia evitar a bebida, embora ele mesmo tanto o desejasse. Costumava
embriagar-se quando não estava no emprego e brigava muito com a sua mãe, submetendo
o seu lar a frequentes conflitos.
Outras
vezes, embalado pela bebida, causava situações vexatórias perante os
conhecidos, em situações como festas de casamento ou aniversário, ou provocava
grande tensão e risco ao guiar o seu carro levando a família, apesar de sua
grande habilidade na direção.
Nesses
momentos Miguel a tudo assistia, às vezes com medo, sempre com muita vergonha,
pois o protagonista era o seu pai.
Sua
pequena família, porém, mantinha-se estável graças à inabalável consciência que
ambos, seu pai e sua mãe, mantinham de suas obrigações familiares, apesar de
tão prejudicada pela abominável doença do alcoolismo.
Apesar
do amor que tinha por seus pais, essas situações marcaram profundamente e de
forma indelével a personalidade de Miguel, pois aconteciam repetidamente
durante todo o período mais intenso e sensível da formação de sua
personalidade, consolidando nele um sentimento de muita insegurança. Tinha medo
de que os amigos percebessem a embriaguez de seu pai, e ficava muito tenso e
envergonhado quando eles o viam naquelas condições.
Filho
único, tornou-se um adulto muito tímido, e ainda jovem aos seus trinta e poucos
anos, permanecia morando com os pais. Não tinha estímulos para realizar os seus
sonhos e acreditar em si mesmo na tomada de atitudes, algumas até necessárias
para o seu bem-estar.
Tinha
consciência de sua inibição, e sofria muito por seus efeitos. Inseguro, era
muito difícil para ele aproximar-se de alguma moça para tentar um relacionamento,
pois sentia que não saberia como agir e, muito pior, apavorava-se ao imaginar
que poderia passar por algum vexame quando em algum inevitável momento se encontrassem
com o seu pai naquelas temidas condições.
Não
obstante, Miguel era uma pessoa afável, sempre solícito e amigo, simpático a
todos que o cercavam, que não percebiam o seu conflito interior. Mas, como sabemos, o fato de o mar estar
calmo na superfície não significa que algo não esteja acontecendo nas
profundezas.
Assim,
nessa insegurança, passara a sua infância e adolescência; e a sua vida seguia,
solitária e sem brilho, voltada quase que tão somente para as atividades
formais de estudo e trabalho, em que ele se dedicava com afinco por vê-las como
a obrigação a ser cumprida e até como uma forma de descarregar as suas tensões.
Em verdade, todos temos
a guerra dentro de nós. Às vezes ela nos mantém vivos. Outras vezes, ela ameaça
nos destruir. Com empenho no estudo e no trabalho Miguel compensava as suas
guerras internas e sobrevivia, evitando, assim, a sua própria destruição.
Apesar de tudo, graças
a essa dedicação Miguel obteve bastante sucesso na vida profissional e conseguiu
um emprego promissor e estável, onde, apesar de jovem, já era respeitado por
sua competência e saber, conquistando um bom salário. Deduzia que, no fundo,
esse sucesso era fruto de seus terríveis temores, e que as pessoas são
capazes de ir muito mais longe por causa daquilo que temem do que por causa
daquilo que desejam. E ele temia desejar alguma coisa que lhe exigisse
atitudes.
A
sua timidez era um terrível incômodo, sempre presente a atormentá-lo. Procurava
ficar longe de festas e outras situações de relacionamento social, dificilmente
tomava a palavra nas reuniões de trabalho, sofria muito só em pensar que
poderia ser convidado para alguma apresentação em público, pois achava que iria
gaguejar, dizer coisas tolas ou sem propósito, perder-se na argumentação,
enfim, submeter-se a um imaginário e temido vexame.
A sua vida era por isso uma
permanente tensão, sentia como se a qualquer momento tudo iria desabar. Miguel
tinha a consciência de que todo aquele sentimento negativo era fruto de sua
imaginação, mas estava profundamente arraigado em sua mente, bloqueando as suas
ações. Sabia também que tinha tudo para ser feliz: era ainda jovem e já estava
bem financeiramente, percebia a admiração que despertava em algumas moças, mas
tinha medo de tomar atitudes, inclusive para aproximar-se delas.
Em
verdade, achava que ele próprio era o seu maior inimigo, a impedir-se de ser
feliz. Às vezes sentia raiva e uma estranha vontade de vingar-se de si mesmo. Em
suma, Miguel não conseguia sentir-se feliz. Faltavam-lhe as atitudes.
Foi quando ela entrou
em sua vida.
A nova secretária do
diretor da empresa a quem Miguel estava subordinado, Maria do Céu, com esse
nome diferente e doce logo chamou a sua atenção. Na apresentação, ela lhe
pareceu muito educada e simpática; e o melhor: era uma morena muito bonita, mais
ainda por efeito do belo sorriso, e pareceu interessar-se por ele.
Evidentemente, Miguel logo reagiu a essa impressão, concluindo que ela estava
apenas mostrando-se educada.
Os dias seguintes se
encarregaram de mostrar a Miguel que ele estava enganado.
A todo momento Maria do Céu aparecia com algum
assunto de serviço, feliz em encontrar pretextos verdadeiros para vê-lo, e a
amizade entre eles foi se firmando. Ela
não teve dificuldade para perceber a inibição de Miguel e, inteligentemente,
passou a abordá-lo sempre com o devido cuidado para não despertar a sua
insegurança.
A habitualidade
desses momentos teve o mérito de dissolver a timidez de Miguel em relação a ela,
e ele sentia-se confortável com a sua presença. Em pouco tempo passou a esperar
com ansiedade por essas oportunidades, ainda achando que, da parte dela, fossem
motivadas apenas pelo trabalho...ou será que não?
A resposta partiu
dele mesmo, numa dessas ocasiões. Repentinamente, surpreendeu-se ao ouvir a
própria voz romper corajosamente as suas barreiras imaginárias, convidando-a
para jantar. Ela olhou para ele com ar de incredulidade, durante o que lhe
pareceu, aproximadamente, um século. Então, abriu o seu belo sorriso e aceitou,
deixando claro o seu contentamento.
Depois daquele jantar
muitos outros se sucederam e o relacionamento entre eles se estreitou. Maria do
Céu teve o cuidado de respeitar o protocolo romântico e esperou que ele, não
ela, revelasse as suas intenções, embora fossem as mesmas. Assim, por causa da
timidez de Miguel, demorou um pouco para que se confirmasse o compromisso; mas,
em verdade, muito antes da confirmação ele já era sabidamente irreversível.
Miguel continuava
tímido, mas agora tinha um amparo, não se sentia mais sozinho para enfrentar as
suas angústias. Maria do Céu procurava incentivá-lo, sempre cuidadosamente para
não ferir o seu amor-próprio.
Com o passar do tempo
Maria do Céu foi conquistando a confiança de Miguel, até que um dia ele criou
coragem para abrir-se com ela sobre os seus temores e a culpa que sentia por
ser uma pessoa tão inibida e sem atitudes importantes. E concluiu dizendo que,
por isso, considerava a si mesmo o seu maior inimigo.
Pacientemente, Maria
do Céu o ouviu e ao final, sabiamente, sugeriu que ele se perdoasse, pois, como
ela aprendera com a sua mãe, a maior vingança contra um inimigo, é perdoá-lo.
No caso não seria exatamente uma vingança, como no dito popular, mas este
perdão seria o reconhecimento de que ele não tinha a culpa que imaginava, não
era o seu próprio inimigo. Tinha que perdoar-se, não mais martirizar-se, e ela
o ajudaria a tomar as atitudes que lhes trariam alguma felicidade.
E assim tudo
aconteceu.
Com a ajuda de Maria
do Céu, Miguel assumiu o comando de sua vida, deixando a casa dos pais e
formando com ela o seu próprio lar.
Sentia que nunca
superaria completamente a timidez e a inibição geradas pelas circunstâncias que
as implantaram em sua mente durante a infância e adolescência, pois as raízes
eram muito antigas e profundas. Isso seria muito difícil, se não impossível.
Porém, Miguel conseguiu
finalmente compreender-se e conviver melhor consigo mesmo, graças ao apoio do
Anjo que um dia desceu do Céu para protegê-lo e ficou para viver ao seu lado.