Início conturbado
Ana Catarina Sant’Anna Maues
O telefone vibra no criado
mudo, interrompendo o sono de Marcela:
— Alô!
— Marcela, tá dormindo mulher? O sol está lindo, vamos à praia ?
— Quem é? Pergunta ainda de olhos fechados.
— Laura, quem podia ser! Uma hora dessas pensei já estar cantançando
Michael Jackson. Ainda é apaixonada por ele?
— Eternamente! Mas é que cheguei
tarde. To só o pó. Visitei sete cidades em dois dias dirigindo sozinha. Estrada
complicada, transito agressivo, muitos acidentes.
— Ah! Então já sei, não vai
comigo.
— É amiga, fica pra próxima.
Hora do almoço. Marcela com fome e nada na geladeira.
Resolve sair e almoçar num shopping qualquer.
Já dirigindo nas ruas movimentadas
que levam ao mais próximo, percebe o olhar insistente de um belo rapaz no
veículo ao lado. Volta o rosto e confirma. Está mesmo fitando-a. Ele dá
passagem ao carro dela, ela agradece com a cabeça, ele esboça um sorriso, ela
retribui. E assim os dois iniciam uma gostosa azaração. Ambos entram no
estacionamento.
Paulo não sai do carro, mesmo
já tendo estacionado, pois fala ao celular.
— Ok! Então a placa confere. Deixa comigo. Essa já está ganha.
Marcela nem desconfia que é
alvo de uma ação policial. Tranca o carro procurando em volta pelo rapaz, sem
sucesso. A brincadeira estava gostosa, ansiava quem sabe talvez um romance.
Desapontada segue em direção ao restaurante.
Paulo, investigador experiente
que é, segue-a sem que ela note. Espera que entre no restaurante, acomode-se em
uma mesa, certifica-se que estará sozinha.
Já quase no final da sobremesa
ele entra no ambiente fazendo-se surpreso por tê-la encontrado novamente. Dos olhos dela saem micro corações pulsantes.
Astuto, que nem raposa velha, percebe o interesse e aproxima-se falando com voz
sedutora:
— Olá! Nos encontramos de novo.
—
Sim! Responde ruborizando.
Marcela apesar de adulta, é
inocente. Moça criada no interior, veio pra capital após a morte dos pais, não
adquiriu malícia, tem coração poético. Presa fácil ao engenhoso Paulo, famoso
por solucionar os casos mais complexos do departamento..
Desse encontro outros vieram.
Ele foi conquistando a confiança, e a um namoro deram início sem maiores
intimidades, pois o romantismo dela inibia-o de ir além, e também esse não era
o caso, afinal ele estava trabalhando numa investigação.
Até que numa noite.
Dois homens conversam ao
telefone.
—
Chegou um carregamento. Está com a chave?
—
Sim. O namorado saiu. Ela já vai dormir. Pode pegar na
hora de sempre.
Um homem chega ao prédio de
Marcela. O vigia entrega a chave do carro dela.
De tocaia está a equipe de
Paulo, e segue o veículo, que vai em direção a periferia da cidade. Chegando em
local ermo, os ocupantes do carro de Marcela vão até a mata e trazem de lá
pesadas caixas. Quando terminam de carregar o automóvel escutam cirenes e luzes
piscando. Uma voz grita em alto e bom som, anunciando a prisão deles.
Nesse mesmo momento no
apartamento de Marcela, a polícia chega arrombando a porta, e dando voz de
prisão a ela. Confusa, atônita, de algemas nas mãos, assim foi levada até a
delegacia.
O delegado interroga. Ela não
sabe nada de nada. Incisivo, quer então que explique, como o veículo de sua
propriedade, está abarrotado de armas e drogas. Insiste em explicações sobre as
viagens que ela faz, achando que mente quando diz tratar-se de trabalho, e que
na verdade ela é a chefe do bando.
Nesse momento uma ligeira
movimentação desperta a atenção dela. Chegam na delegacia o carro, os homens
presos, as armas, as drogas, e Paulo.
O delegado apressa-se na
acareação. Coloca frente a frente ela e os dois desconhecidos. Paulo entra na
sala pra escutar.
Quando o vê seca as lágrimas
com a mão. Sente como se um príncipe em cavalo branco chegasse para livra-la de
todo aquele pesadelo. Mas ele tem comportamento frio e distante. Sem entender,
chama com voz miúda seu nome:
—
Paulo! Sou eu.
O delegado resolve explicar
como a participação do melhor agente, foi decisiva para aquele desfecho
positivo. Ela não acredita no que
escuta.
Os suspeitos pressionados acabam
contando como faziam. Havia também a participação do vigia-manobrista do edifício,
ele cedia o carro para o crime. O de Marcela era sempre usado porque ela nunca
saia de madrugada, dando tempo de ir e retornar sem que ela dessa falta do carro.
Como as vagas na garagem do prédio eram poucas, as chaves dos automóveis
ficavam com o vigia. Imediatamente com
esse fato novo, sai uma diligência para buscar o funcionário citado.
Aos poucos ela vai
compreendendo a grande trama de que foi vítima. Pede que chamem a única amiga,
Laura.
O dia amanhece. Marcela é
consolada por Laura que chegou com advogado. De tudo que aconteceu ela não para
de pensar em Paulo. Verdadeiramente havia entregue o coração ao
dissimulado. Ele a conquistou, pois
tinha sido perfeito. Cavalheiro, amável, generoso, respeitador, romântico. Como
foi possível fingir tanto tempo! Meditava inconformada. Lembrava das carícias,
dos beijos, das gargalhadas, do namoro puro. Tudo orquestrado, meticulosamente
planejado. Cruel demais!
Chega na delegacia o
vigia-manobrista. Vem algemado. Preso na
rodoviária, quando embarcava tentando fugir. Ao olhar para Marcela cai em
lágrimas pedindo desculpas.
—
Desculpa Marcela. Eu sei, você não merecia. É gente
fina pra caramba. Mas eu tenho mulher e filhos, sabe como é né. Ganho pouco. Os
meninos dão muita despesa. Querem tudo
do bom e do melhor. Fui tentado. Desculpa. Desculpa mesmo.
Marcela foi inocentada. Ao
deixar a delegacia amparada pela amiga, aproxima-se de Paulo, que não esperava
aquela reação dela e sem defesa, recebe um bofetão.
Insegurança, medo, síndrome
do pânico, depressão, remédios. Degraus que veio galgando em nítido declínio
por meses. Mas agora estava melhor.
Trocou de emprego, apartamento, bairro.
Paulo por sua vez, nunca mais
foi o mesmo depois daquele dia. Pediu licença. Viajou. Emendou com férias. Visitou a mãe noutro Estado.
Mudou de setor. Mas o pensamento sempre trazia Marcela. Sentia-se canalha. Como
não percebeu as entrelinhas. Ela não podia estar envolvida, era boa demais,
pura demais, com virtudes demais. Aquela
moça era especial. O arrependimento o consumia. Pior, o amor aumentava. Tempo de
luta sem trégua, resistiu o quanto pode. Mas agora vencido, assumia. Amava
Marcela de todo coração.
Criou coragem e uma tarde visitou
o prédio dela. A notícia foi, que ninguém sabia sobre a antiga moradora. Inconformado, passou a usar todo recurso
dentro do departamento para encontrá-la.
Mais de um ano sem notícia
alguma, era como se tivesse evaporado. Mas o destino tramou um encontro
inesperado. Num supermercado, empurrando carrinho, ao virar o corredor, eles se
encontram.
Marcela plenamente
recuperada. Paulo diante da oportunidade que pediu a Deus.
Como não tocar no assunto? Ela aceitou o café oferecido por ele. Sentados um em frente ao outro, olhos nos
olhos, encaram-se. Ela quebra o silêncio:
— Você foi um marco em minha
vida. Eu era uma Marcela antes de te conhecer e me tornei outra, após. Você foi todo mal que eu pude viver. A maior
mentira. A maior traição. O maior sofrimento. O maior trauma. Mas não apenas isso, devo a você também o meu
amadurecimento, minha malícia, positividade, descomplicarão, frieza e
agressividade. Não vivo mais emoções. Sinto-me bem melhor agora.
Agora Paulo toma a palavra:
—
Pois pra mim você foi o que de melhor eu vivi. Foi um marco em minha vida. Eu era
desconfiado, incrédulo, pessimista. Você me ensinou humildade, fidelidade. Conheci
paz, alegria, o valor do que é simples, e o maior de todos os sentimentos, o
amor.
As horas passaram rápidas. Eles
nem sentiram.
Deste encontro outros surgiram.
E outros e mais outros.
Marcela e Paulo festejaram
bodas de ouro, provando que o amor supera tudo.