O caçador e a rainha Celeste
Ana
Catarina S`Antanna Maués
As chamas em grande altura escondiam os
corpos dos amantes que queimavam ainda vivos. Ele gemia amarrado a um tronco e
ela abraçando-o suplicava que transcendesse a dor com as lembranças dos dias
que experimentaram o início da paixão, tempo em que o coração de ambos
palpitava em vida, com olhos enamorados e mentes curiosas por descobrirem o que
acontecia com eles.
Celeste apesar do padecimento atroz, com o
fogo já tomando todo o lado direito de seu corpo, falava sobre o companheirismo
que crescia cada vez mais neles, da cumplicidade que percebia ser constante,
sobre a harmonia nos gostos e vontades. Quando sentia o amado contorcer-se nas
labaredas, insistia que ele recordasse do dia que nadaram no lago, depois da
tarde em que o sol os acompanhou num passeio pela mata e eles inventaram de
brincar com as sombras por entre as árvores e do momento em que dançaram ao som
da gaita que ele tocava e culminou com o primeiro beijo e mais tarde o prazer
que sentiram quando cederam ao desejo e amaram-se com intensidade.
Estavam em seus últimos momentos de vida
quando uma voz ordenou aos que observavam a cena que apagassem imediatamente a
fogueira. Era a voz do rei que chegou acompanhado por guardas e metade da
população do condado de Brigston, trazidos pela mãe de Celeste, que em prantos
gritava o nome da filha. O marido a recebeu com bofetão e bradava ao rei
acusando-a da desgraça, pois havia deixado a moça aos cuidados dela e agora
nada podia ser feito diante da tragédia com Celeste morta. A esposa caída no chão
devido o tapa que a derrubou, continuava chamando pela filha e em outros
momentos com voz miúda dizia:
_
Ela fugiu de mim! Não pude evitar! Ainda tentei segurá-la!
A esta altura as chamas haviam cessado. O
monarca determinou que alguns soldados recolhessem o corpo de Celeste com
cuidado e levassem ao castelo e lá entregassem ao mago Dago, o que foi feito de
pronto.
Assim que os soldados saíram o rei olhou
para pai, mãe e irmãos da moça e decretou que fossem expulsos do vilarejo, pois
não tolerava o sucedido. Julgamentos apenas ele poderia fazer e pena de morte
só ele poderia aplicar. O pai lembrou então ao rei, que aquela moça era a
prometida dele e que o caçador, falou apontando para o rapaz desfalecido no
tronco, havia desonrado-a.
Neste momento um grande alvoroço se fez
entre o povo presente e o rei gritou um forte basta e ordenou que dois soldados
escoltassem pai, mãe e irmãos até próximos da montanha do norte, naquele mesmo
momento, sem direito de buscar qualquer pertence e advertiu-os que se algum
deles voltasse até o condado seriam mortos com a mesma pena do julgamento que
fizeram. Decretou também que a partir daquela data aquele local estava
amaldiçoado. Jamais ser vivente poderia pôr os pés ali.
E assim foi feito.
Ao chegar no castelo o rei foi direto aos
aposentos de Dago, ver como estava sua prometida. Dago informou que ela estava
muito queimada, tanto externa como internamente. Podia-se ver o estrago feito
em sua pele, principalmente no lado direito do rosto, barriga, coxas e pernas.
Aquelas sequelas por certo jamais sumiriam. O que podia dizer era que só um
milagre a salvaria da morte certa.
O rei então indagou sobre a profecia. O mago
respondeu que ela precisava viver e desposar o rei, pois caso isto não
acontecesse, quando a grande guerra viesse, ele não seria vitorioso.
Imediatamente foi baixado um decreto, onde
todos estavam obrigados a orar pela vida de Celeste, pois o futuro do povoado
de Brigston dependia dela. Todos passaram a orar dia e noite pela cura da moça.
Os dias passavam e o rei muito aflito vendo
que o estado dela não melhorava, perguntou ao mago se ele tinha mesmo certeza
de que aquela era a jovem da qual ele teve a visão? Da qual ele havia recebido
o sinal do pressagio?
O mago respondeu:
_
Tenho certeza ser ela majestade, pois procurei por mais de um ano pelos
arredores e bem longe também, por uma mulher que tivesse o olhar do céu e
apenas esta foi encontrada.
O rei então avisou:
_
Salve-a ou serás decapitado.
O tempo escorria lentamente para angústia de
todos, mas um dia Celeste abriu os olhos e estava curada.
O rei imediatamente providenciou os
proclamas do casamento e foi assim que Celeste tornou-se rainha do condado de
Brigston.
Três anos se passaram e a grande guerra não
havia chegado. O povo amava a rainha e ela por sua vez procurava esquecer o que
vivenciou, a tragédia que sofreu, desdobrando-se em atenção aos mais
necessitados e fazendo muitas obras de caridade. Esqueceu de si mesmo por amor
ao povo.
Um dia chegou uma séria mensagem ao rei e
dizia que seu maior inimigo fazia planos de atacá-lo de surpresa e anexar as
terras de Brigston as que ele já possuía e estava bastante adiantado na
empreitada, formando um exército de mercenários. O monarca, então, reuniu todos
os soldados e a seu comando partiu para atacar o mais cedo possível o
adversário e desta forma garantir a vitória, afinal ele confiava na profecia,
pois conseguiu casar-se com a moça dos olhos de céu. Celeste assumiu o trono e
governou com maestria até a volta do marido.
Foram dois anos de batalha. O rei de
Brigston voltou vitorioso, porém muito ferido. A rainha e o mago fizeram de
tudo, mas não conseguiram salvá-lo. A rainha assumiu o trono em definitivo.
Bem distante dali, no local amaldiçoado,
alheio a tudo, estava Felipe o jovem caçador. Ele jazia numa cama sob os
cuidados de uma aprendiz, pessoa de confiança do mago Dago.
Felipe foi retirado da fogueira, ainda com
vida, por Dago, depois que todos deixaram o lugar e foi levado para a sua própria
casa ali próximo. As queimaduras eram profundas, atrofiaram a pele e consumiram
os músculos fazendo com que ele não pudesse mais andar e também devido o calor
intenso ficou cego. As feriadas não cicatrizaram. Ele convivia com o mal cheiro
das chagas abertas. Durante estes cinco anos não teve notícias de Celeste, pois
o mago proibiu a assistente de falar qualquer coisa a respeito. Ele a julgava
morta e rezava para que morresse também, pois finalmente iria reencontrá-la.
Ele por várias vezes pedia a sua cuidadora que o deixasse morrer. Não entendia
o propósito de cuidar dele com tanto zelo, mas ela nada respondia.
Uma noite ele piorou e ela previu que
morreria dentro de poucas horas. Correu então até o castelo e entrou sem que
ninguém a visse, foi falar com o mago Dago e informar sobre o estado de saúde
do caçador.
Dago compadeceu-se do jovem e da triste
sorte que viveram, a rainha e ele. Fortaleceu a intenção e tomou coragem. Foi
até os aposentos dela e bateu na porta. Celeste estava em frente ao espelho
lacrimejando por observar seu rosto desfigurado e engoliu as lágrimas quando
Dago entrou. Foi aí que ele sem rodeios revelou que o caçador estava vivo e
explicou que nada disse antes devido a guerra que precisava ser vencida, com
relação a profecia da qual ela já sabia.
A rainha não acreditava no que estava
ouvindo e ao mesmo tempo que sentia euforia sentia medo, medo de Felipe
rejeitá-la devido o tempo corrido, o casamento com o rei e as marcas de
queimadura que possuía. Quis saber onde ele estava? Como estava?
Ela não se continha de felicidade. Dago
disse:
_
Está vivo, mas muito doente, inclusive cego.
A rainha chorou copiosamente. Depois,
recuperada, pediu para vê-lo. Dago levou-a até a cabana, local abandonado,
devido o decreto de maldição.
Celeste arrepiava-se por caminhar novamente
pela mesma estrada, local de alegria e tragédia.
Quando entrou na casa que conhecia bem,
esperava atirar-se sobre o amado, abraçá-lo e beijá-lo longamente, porém ao
chegar no quarto a cena foi impactante e estilhaçou seu coração. Ele era o
sofrimento personificado, as chagas em carne viva a fizeram reviver toda a dor
do dia do julgamento, quase desfaleceu, ficou estática, muda.
Felipe percebeu a presença de alguém no
quarto e perguntou.
_Quem
é? Quem está aí?
Ela não respondeu e saiu rapidamente. Quando
chegou fora da casa atirou-se em prantos nos braços de Dago. Retornaram ao
castelo. Celeste estava em choque.
Dois dias depois ela procurou o mago Dago e
fez uma proposta.
_
Mago Dago, o senhor aceita meu reino? Estou disposta a trocá-lo por alguns dias
com meu amado. Quero uma magia. Nós dois em situação saudável, nossos corpos
plenamente recuperados, nossa juventude de volta.
O mago respondeu que precisava consultar os
livros, talvez fosse possível, mas que a magia não duraria para sempre.
Os olhos da rainha iluminaram e ela implorou
para que fizesse o possível e o impossível, pois cinco minutos junto dele
valeriam mais, do que toda uma existência sem ele.
A rainha não dormiu de noite. Passou a
madrugada rezando e só não foi até a cabana do caçador porque confiava que o
mago conseguiria a magia e não queria estragar algo, sendo impulsiva.
Logo que raiou o dia procurou Dago buscando
respostas. Ele disse que se debruçou sobre os mais antigos pergaminhos para
desvendar os mistérios ocultos e atender ao pedido dela e sim, havia uma
chance, mas que para tal era imprescindível que ela estivesse vestida como a
mesma roupa do dia do julgamento. A rainha respondeu:
_
Isto não é problema. O vestido está bem queimado, mas o guardo pois foi com ele
que Felipe me amou, horas antes de tudo acontecer. Então ela correu até os
aposentos reais, tirou o traje de rainha e retornou até o mago com os farrapos
de camponesa, trouxe também a renúncia dela ao trono de Brigston já assinada e
passando plenos poderes ao mago.
Dago falou:
_
Rainha, este feitiço tornará ambos sem marcas de queimadura. Neste encantamento
vocês retornarão àquele dia fatídico, mas isto só acontecerá a vocês dois. O
reino aqui, eu, as pessoas, tudo seguirá normal, no mesmo espaço e tempo atual.
O sortilégio só dirá respeito a vocês. Não sei quanto tempo durará o efeito.
Pode ser de um, dois ou três dias. Não posso precisar, porém quando acabar, os
dois morrerão. As sequelas das queimaduras reaparecerão de forma mais grave e
vocês não suportarão as dores. Rainha pela última vez, a senhora quer mesmo
isto?
_
Sim. Respondeu ela.
E assim foi feito.
_ “Numa nuvem de pó desaparecerás e o desejo do
teu coração se confirmará”.
Dita estas palavras, ela sumiu.
Na choupana Felipe fervia água para o chá.
Celeste bateu na porta e ao abrir ele a vê. Ela atirou-se nos braços dele e com
um beijo molhado selou o encontro.
Ele estranhou a iniciativa dela, mas não
negou o caloroso beijo.
Celeste falou:
_
Sonhei que você tocava gaita para mim. Tem alguma aqui?
Felipe continuava intrigado com o
comportamento dela, pois estava bem-falante naquela manhã, nada acanhada,
geralmente as ações partiam dele. Pegou então a gaita e tocou uma música bem
alegre.
Ela começou a dançar segurando a saia e
rodar pulando com muita graça na frente dele.
Felipe em certo momento largou o instrumento
e segurou a mão dela e entre sorrisos dançaram até que aconteceu um beijo. O
aconchego dos braços dele em volta da cintura dela acelerou o coração, as
mentes embriagaram-se de desejo e ambos cederam ao impulso da paixão, o amor se
fez entre carícias e afagos. Depois de breve instante com as mãos ainda
entrelaçadas Felipe rompeu o silêncio e disse:
_
Desta vez não vou deixar você sair escondida. Quero conhecer seus pais e
pedi-la em casamento.
_
Não se preocupe com isto. Não tenho pai, mãe ou irmãos. Só tenho você,
respondeu Celeste procurando os lábios dele e outro beijo aconteceu pleno de
paixão e completou dizendo, sou louca por você Felipe, te amo mais do que tudo,
mais do que um reino inteiro.
Ele sorriu embebecido de ternura por ela.
Os dias passaram e eles viviam como num
paraíso, em harmonia infinita. Ele caçava, ela cozinhava, eles brincavam,
dançavam, brindavam com água, sempre sorrindo numa felicidade eterna.
Numa manhã ele acordou e sentiu um forte
calor nas pernas por isso não conseguiu levantar para caçar. Ela por sua vez
percebeu um certo aspecto enrugado tomando todo o lado direito do seu corpo
chegando até ao rosto. Celeste lembrou. Está acontecendo. Então deitou na cama
ao lado dele, o abraçou e ambos morreram nesta posição.
Meses passaram. Dago governava com justiça e
lembrava vez por outra da rainha Celeste. Até que um dia resolveu ir ao casebre
do caçador. Entrou. Foi até o quarto e viu ossos como que abraçados. Percebeu
que a magia havia acontecido do jeito que previu.
O rei Dago decretou que aquele local, antes
amaldiçoado, seria lembrado daqui por diante como o lugar dos amantes, lugar de
benção e maldição.