Ciladas
do destino
Adelaide Dittmers
Uma garoa gelada
derramava-se pela cidade naquele fim de tarde de inverno. Pessoas encolhidas debaixo de seus
guarda-chuvas caminhavam rapidamente pelas calçadas escorregadias, saindo do
trabalho e indo para casa.
Abrigados em um bar requintado,
dois jovens tomavam vinho e petiscavam indiferentes a tudo a sua volta.
Soraya, uma bela
moça, de cabelos negros e grandes olhos castanhos, dizia raivosamente:
— Não me conformo com
o que querem fazer conosco. Não aceito e
não vou aceitar essa imposição de nossos pais.
Adoro você, primo, mas não quero me casar com você.
— Eu também não
aceito. Estamos no século vinte e
um. Exclamou Amir. Essa história de que o dinheiro não pode sair
da família é uma tradição ultrapassada e ridícula.
Bonito e elegante,
sempre rodeado por lindas mulheres, adorava a vida de solteiro, que lhe
proporcionava viver incontáveis aventuras amorosas. Ficara furioso com a decisão dos pais de
obrigá-lo a casar com a prima, com quem compartilhara a infância e adolescência,
como grandes amigos.
Soraya, por sua vez,
formara-se em direito e sempre sonhara com uma carreira brilhante na sua
profissão. Recentemente ingressara no
departamento jurídico da empresa do pai.
Há algum tempo estava se relacionando com um rapaz, que cursara a
faculdade com ela.
Revoltados, tentavam
elaborar um plano contra a vontade dos pais.
— Eles sabem que
estou com o Bruno e querem nos separar.
Exclamou, elevando a voz e pegando o cálice de vinho, que tomou de um só
gole.
Eram muito unidos e
viam-se como irmãos.
Por longo tempo
conversaram e resolveram comunicar aos pais sua decisão.
No dia seguinte,
Soraya pediu aos pais de ambos para marcarem um jantar na casa dela para
discutir o assunto, o mais rápido possível e o encontro foi marcado para aquela
noite.
Os jovens estavam
tensos, ao contrário dos pais, que conversavam animadamente, servindo-se dos
aperitivos. A governanta os chamou para jantar e eles foram até a mesa, que
estava coberta por uma bonita toalha branca delicadamente bordada, em que brilhavam
talheres de prata e composta de fina porcelana.
Rosas amarelas completavam a beleza e o requinte da mesa.
Mal o jantar foi
servido e Soraya entrou no assunto, que os estava reunindo. Ajudada por Amir, explicaram que não iriam se
casar, não concordavam com essa decisão arbitrária. Isso é um costume arcaico, incompatível com
os dias de hoje.
Um pesado silêncio
caiu sobre a sala. Os pais se entreolharam
e depois de alguns momentos, o pais de Soraya, levantando a voz e
atravessando-os com o olhar se manifestou:
— Vocês vão se casar,
sim. Na nossa família essa tradição, que chamaram de arcaica vai continuar e a
fortuna, que temos deve-se a sempre nos unirmos entre nós.
— Já disse que não
vou me casar com Amir. Para o inferno
essa tradição! E levantou-se da mesa.
E o rapaz completou:
— Também não quero me
casar com Soraya. Sou muito jovem, quero
aproveitar a vida e poder escolher no futuro minha companheira.
— Sente-se
Soraya. Amir acalme-se! Ordenou o pai. É o seguinte: ou vocês se casam ou vão ser
deserdados, exclamou enfaticamente, olhando para o pai de Amir, que concordou:
— Michel está certo.
Ou se casam ou são deserdados. A escolha
é de vocês.
— Vocês não podem nos
deserdar. É contra a lei, gritou Soraya.
— Ah podemos! Temos
meios para isso. A maior parte de nosso
dinheiro está fora do país. Além do
mais, em testamento podemos deixar a quem quisermos o nosso dinheiro. Michel exclamou, com a voz alterada.
— Não acredito que
farão isso conosco. Amir abanava a
cabeça, desconsolado.
As duas mães
entreolharam-se e seus olhares refletiam a pena, que sentiam dos dois
filhos. Também elas tiveram casamentos
arranjados e não eram felizes. Sabiam
que os maridos ao longo da vida conjugal tiveram muitas amantes e sentiram-se
muitas vezes solitárias e apenas um bibelô na vida deles.
— Soraya levantou-se
e Amir a acompanhou.
— Não quero mais
jantar! E saiu da sala seguida de Amir.
— Vamos continuar
nosso jantar, disse Michel calmamente. Eles vão reconsiderar. Estão muito acostumados com todos os luxos,
que o dinheiro oferece.
O jantar transcorreu
com conversas amenas, interrompidas por momentos de intenso silêncio. A atitude dos jovens tinha azedado a reunião
familiar.
No jardim da mansão,
Soraya e Amir conversavam revoltados. Não saberiam viver sem as viagens e
mordomias e tudo mais o que o dinheiro proporciona. Subitamente tiveram uma idéia; e se casassem e
mantivessem um casamento de fachada.
Cada um vivendo a sua vida. Sorriram e deram-se as mãos, firmando o
pacto.
Seis meses depois,
uma grande e suntuosa festa selou a união dos dois. A noiva estava belíssima no seu magnífico
vestido e noiva. Os grandes olhos castanhos,
o cabelo negro preso a uma linda tiara e a pele morena contrastavam com a
alvura do vestido.
O noivo de fraque
parecia o príncipe encantado das fábulas infantis.
No dia seguinte,
partiram para uma viagem pelas ilhas gregas.
Apesar da beleza daquelas ilhas românticas, o casamento, como tinham
combinado, não foi consumado. Amigos que
eram, passearam e se deliciaram com as paisagens pitorescas e a boa culinária
grega. Nadaram nas águas de um
esplêndido azul, cercadas por encostas escarpadas, onde casas brancas e azuis
completavam o esplendoroso cenário.
Depois de um mês
voltaram para casa. Tinham ganhado um
enorme apartamento em um luxuoso edifício de um bairro nobre.
Amir carregou a recém-casada
para dentro, ao som das gargalhadas de ambos pela farsa, que estavam vivendo.
Os dias se
seguiram. Cada um em sua rotina diária.
Ele como diretor da empresa do pai e ela como advogada.
À noite, Amir saia
para seus encontros clandestinos e Soraya mantinha longas conversas pelo
celular com Bruno.
Com o tempo, no
entanto, algo diferente na relação deles, começou a mudar. Ao jantar, tinham longas conversas, riam,
brincavam com as manias de cada um. E
aqueles momentos foram se prolongando e as noitadas de Amir foram ficando cada
vez mais raras.
Por outro lado, as
ligações de Soraya com Bruno foram diminuindo e ficando desinteressantes para
ela.
A convivência diária
foi se tornando cada vez mais prazerosa e aqueles belos jovens começaram a ser
ver de uma maneira diferente. O rapaz se
surpreendeu ao perceber que começara a sentir uma forte atração pela
prima. Nunca se apaixonara de verdade
por ninguém. Será que isso era paixão.
Soraya notou a
mudança nas atitudes do pretenso marido e percebeu que estava adorando aqueles
olhares intensos, que eram dirigidos a ela, arrepiando-a toda.
Certa noite, Soraya
preparava-se para sair do escritório.
Tinha tido um dia exaustivo. Já
eram sete e meia e queria chegar logo em casa.
O celular tocou e ela o pegou com impaciência. Quando viu quem era,
atendeu rapidamente.
- Olá Amir! Tudo bem?
- Tudo. Hoje não
quero jantar em casa.
- Vai a algum
encontro? Perguntou ansiosa.
- Vou... com
você. Estou com vontade de ir àquele
bar, onde decidimos não casar e nos rebelarmos com nossos pais.
Soraya demorou um
pouco a responder. O medo apoderou-se
dela.
- Ok! Estou
saindo. Me encontro com você lá!
Desligaram e a moça pensou:
¨Será que Amir queria pedir o divórcio e escolheu o bar, em que tinham
resolvido enfrentar os pais. Será que
tinha se enganado sobre as atitudes de carinho, que ele estava demonstrando ultimamente?
¨
Saiu do escritório,
pegou seu carro no estacionamento e foi para o encontro. Estava muito curiosa e sentia o coração
apertado em seu peito e tentava se convencer de que talvez fosse apenas uma
saída para espairecerem. Mas, por que
justamente naquele lugar?
Quando chegou, olhou
em volta à procura de Amir. O bar não
estava cheio e logo o avistou, sentado à mesma mesa daquele encontro de tempos atrás. Um arrepio a percorreu. O quereria
dizer aquilo? Com passos inseguros se
aproximou de Amir, que se levantou, beijando-a na testa e puxando-lhe a cadeira
para ela sentar.
Um bom vinho já
estava sobre a mesa e com um estalo de dedos, ele pediu algo para comerem.
Nesse momento, Amir
olhou para ela como se quisesse penetrar em sua alma.
— Hoje vamos resolver
nossa situação. Pensei muito sobre tudo
o que nos aconteceu. Aceitamos a decisão
de nossos pais para não perdermos a herança.
Estamos juntos e nos damos bem, como sempre nos demos, mas isso não está
sendo suficiente para mim.
Soraya
estremeceu. Ela estava certa. Ele realmente queria o divórcio. Uma expressão de desaponto estampou-se em seu
rosto. Não o estava vendo mais como a um primo, mas como a um homem por quem se
apaixonara.
— O que você quer
dizer com isso? Estava assustada e novamente o medo tomou conta de sua alma.
— Naquela noite,
fizemos um acordo e tivemos que desistir dele para não perder nossa
fortuna. Não quero mais manter essa
relação de mentira.
— Mas nos damos tão
bem. A voz de Soraya saiu trêmula.
— Para mim, só nos
darmos bem não sustenta um casamento.
Não sei quais são os seus sentimentos a meu respeito. Você sempre me viu
como a um irmão, como eu a você.
— Então você quer
acabar com essa farsa?
— Sim, não quero ser
mais o primo querido. A verdade é que
estou apaixonado por você, como não estive por mais ninguém e não posso viver
sob o mesmo teto com uma pessoa, que não sente nada por mim.
Soraya tampou a boca
do rapaz com sua mão e seus lábios se entreabriam em um sorriso apaixonado.
— Eu também amo você.
Tive medo de demonstrar o que sinto e você se afastar de mim. Nem sei como aconteceu isso, mas adoro estar
com você, compartilhar minha vida com você.
Os dois se olharam
intensamente e deram-se as mãos sobre a mesa, apertando-as fortemente, como se
quisessem confirmar que tudo aquilo era real.
Ele levou as mãos dela à boca e as beijou ternamente. Em seguida, chamou o garçom e pediu a conta.
O vinho e os petiscos ficaram intatos na mesa.
O casal se levantou e
de mãos entrelaçadas saíram do bar. O
céu estrelado e a lua cheia pareciam cúmplices daquele amor que começava a se
concretizar.