O julgamento
Adelaide
Dittmers
Sentado
em um banco de madeira, olhos castanhos e tristes, que vagavam pelo ambiente
sem nada enxergar, cabelos grisalhos bem tratados e impecavelmente penteados, o
homem tamborilava com dedos nervosos uma pasta em seu colo, tentando
descarregar com esse gesto a agitação que lhe movia a alma. De vez em quando, contraía as pálpebras e
balançava a cabeça de um lado para outro, como se quisesse negar o que lhe
estava acontecendo.
Tudo
parecia um pesadelo do qual não conseguia despertar. A acusação de lavagem de dinheiro de que era
alvo e que o enredara totalmente e a espera por seu julgamento, que aconteceria
daqui a uns instantes tomava os seus sentidos.
Tentava entender como tudo tinha chegado a
esse ponto. Fora sempre um empresário honesto, cumpridor das leis. Tinham descoberto uma loja em seu nome, que
servia para tornar lícito dinheiro vindo de negócios ilícitos. Nunca possuíra
tal loja nem sabia de sua existência.
Nos documentos constava sua assinatura como proprietário, mas ele não
tinha assinado aqueles papéis. Quem o teria metido nesse imbróglio? Tinha um
grande amigo, que era deputado federal, mas o considerava uma pessoa idônea e
ele fora o primeiro a apoiá-lo, quando veio a intimação para ele depor.
Um
homem alto e elegante aproximou-se dele.
Era Ricardo, seu advogado e amigo de muitos anos. Bateu em suas costas para lhe transmitir coragem
e apenas com um meneio de cabeça, avisou-o de que o julgamento ia começar.
Entraram
no tribunal. Estava lotado. Flashes espocaram pela sala. Procurando desviar o olhar das luzes, tentava
encontrar a família no meio das pessoas.
Finalmente os achou: dois filhos, um rapaz e uma moça, o irmão e a
esposa estavam sentados um ao lado do outro. Percebeu no rosto de sua mulher
ansiedade e angústia. Aquela companheira
de tantos anos estava sofrendo tanto ou mais do que ele. Lançou-lhe um olhar terno para consolá-la e
transmitir que estavam juntos.
O
julgamento começou. O promotor em seu
discurso inflamado trouxe várias provas e a assinatura que o comprometiam como
proprietário da loja.
Pedro
olhou para o advogado desesperançado, que levantou a mão, pedindo-lhe calma.
Tudo estava contra ele.
Como
para se proteger, de repente, ele se desligou do que estava à sua volta e mergulhou
em seus pensamentos: a luta pelo progresso financeiro, que lhe custou anos de
intenso trabalho e dedicação. A
conquista alcançada com o suor de seu rosto.
A compreensão e apoio de sua mulher, que muitas e muitas vezes ficara
sozinha na direção da casa e educação dos filhos, para que ele pudesse alcançar
seus objetivos. Será que foi certo deixá-la só, quando envolvido em reuniões
até tarde da noite ou quando em viagens freqüentes pelo mundo afora. Marta sempre
foi uma mãe dedicada e amorosa. Muitas
vezes substitui-o em seu papel de pai.
A
voz forte do advogado o acordou de suas divagações. Com perspicácia ele refutava todas as
acusações que lhe eram atribuídas.
Porém, Pedro não acreditava na sua absolvição. Tudo apontava para ele.
O
advogado chamou uma testemunha. Ele se
espantou. Era o jardineiro de sua
casa. O que ele poderia saber?
O
homem simples sentou-se no banco das testemunhas. Visivelmente nervoso olhou para o patrão e
para a audiência. Ricardo pediu-lhe para
descrever o que acontecera em uma manhã, em que trabalhava no jardim. Com voz trêmula, ele disse que João Oliveira,
deputado e amigo do patrão esteve na casa, ficando lá por longo tempo e que, em
certo momento, vozes alteradas foram ouvidas. Uma empregada veio juntar-se a
ele, assustada com a discussão que se passava na sala. Não conseguiram ouvir o
que diziam, mas perceberam que acusações estavam sendo trocadas.
— O
senhor se lembra de quando foi isso? Inquiriu
o advogado.
—
Acho que mais ou menos uma semana antes da gente saber que o doutor estava
sendo acusado.
Pedro
olhou espantado para o advogado. Não
sabia do que se tratava.
Mas
quem estava discutindo? Indagou o advogado.
O
jardineiro baixou a cabeça constrangido.
—
Dona Marta e o deputado.
O
acusado encarou a mulher. Nunca soube
dessa discussão e o porquê.
Marta
desviou o olhar. Uma careta de surpresa
deformou os bonitos traços do seu rosto.
Ricardo
então continuou. A voz acalorada e
firme ecoava pelo tribunal. Investigara
o deputado e descobrira que era conhecido no meio político pelo seu
envolvimento em muitas falcatruas e que nos últimos tempos se encontrara muitas
vezes com Marta.
Um
vozerio sacudiu a sala do tribunal. O
juiz pediu silêncio.
Marta
foi então chamada para depor. A palidez do rosto e um leve tremor nas mãos
denunciavam medo e ansiedade, que procurava disfarçar, mantendo a cabeça ereta.
— A
senhora confirma que teve uma discussão com o Sr. João Oliveira, conforme o
testemunho do Sr. Severino da Silva?
A
mulher ficou em silêncio por uns segundos e dirigindo um olhar angustiado para
o marido, respondeu:
—
Sim, João e eu discutimos. Ele queria envolver Pedro nos seus negócios escusos,
por meu intermédio, mas eu não queria isso de maneira alguma e tentei
dissuadí-lo, com todas as minhas forças...
Interrompendo o depoimento da mulher, a voz de
Pedro ressoou na sala como um trovão, que explode em uma tempestade.
—
Marta não tem nada a ver com isso. João
me pediu para assinar documentos para livrá-lo de uma enrascada em que tinha se
metido. Não sabia ao certo do que se
tratava. Ele me afirmou que não era nada
que poderia me comprometer. Acreditei
nele. Conhecia-o desde criança e nunca me passaria pela cabeça que iria me
envolver em um negócio sujo.
O
caos se instalou no lugar. Todos falavam ao mesmo tempo. O olhar de espanto do
advogado caiu sobre ele.
—
Chega! Estou pronto para pagar por meu erro.
Disparou, olhando para seu defensor e fiel amigo.
Antes
de sair do tribunal, lançou um olhar para os filhos, que se abraçavam chorando.
Abaixou a cabeça para esconder uma lágrima que teimosa descia pelo seu rosto.
Dias
depois, na cela, Pedro lia um livro e de vez em quando, levantava os olhos,
que perdidos vagavam pelas paredes
amareladas do pequeno cubículo. Uma
batida nas grades o acordou de seus devaneios.
Um guarda estava abrindo a cela e o avisou que uma pessoa o esperava na
sala, onde podiam receber visitas.
A
surpresa estampou-se em seu rosto quando viu sua esposa. Sentou-se à sua frente. O olhar firme encarando Marta. Ela baixou os olhos e com uma voz fraca,
perguntou-lhe como estava.
—
Como um homem que perdeu a liberdade! Respondeu secamente.
— Mas
por que você admitiu sua culpa?
—
Pelos meus filhos! E com voz pausada,
desafogou tudo o que tinha no íntimo.
De
repente, quando ela fez o seu testemunho, uma luz atingiu sua compreensão. A freqüência de João em sua casa. Os jantares enquanto ele viajava. A proximidade dele com ela. Tudo foi se encaixando e foi fácil de deduzir
que os dois estavam juntos e que ela estava envolvida no esquema.
— Me
perdoa, por favor! Eu estava sempre
sozinha. Ele me apoiou muitas vezes e
devagar fomos nos aproximando cada vez mais.
— Me
poupe dos detalhes. Já disse que me acusei pelos meus filhos, porque, apesar de
tudo você sempre foi uma boa mãe e sei que eles a amam e a admiram muito. Mas perdoar você, não! Falsificaram minha
assinatura, usando-me para lavagem de dinheiro.
—
Mas eu não queria envolvê-lo, lutei contra isso.
—
Mas, envolveu!
Marta
encolheu-se na cadeira. Era como se a
culpa que carregava tivesse diminuído seu corpo e dilacerado sua alma,
Pedro
a fitou com um misto de pena e raiva.
Também se sentia culpado por tê-la deixado de lado e colocado o trabalho
e ambição em primeiro lugar.
Levantou-se
lentamente. Ela segurou o braço dele, tentando detê-lo.
—
Por favor, me deixe agora. Ricardo vai
me tirar dessa embrulhada. Poupei você,
mas o João vai pagar pelo que me fez. Trovejou ele.
— E
não me procure mais!
Voltou-se,
acenando para o policial, para transmitir-lhe que podia levá-lo de volta à
cela.