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terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

O PAU DE ARARA - Adelaide Dittmers

 



O PAU DE ARARA

Adelaide Dittmers

  

O inverno escureceu as nuvens, que eram empurradas por um vento gelado e úmido.  Vultos encolhidos andavam pela rua do bairro periférico.  Passos cansados dos trabalhos pesados.

 

Um homem de gorro preto, de onde sorrateiramente saiam fios de cabelos prateados, apressou a caminhada.  Segurava uma sacola de couro, cujo peso vergava um pouco seu corpo magro.

 

Parou em frente a uma casa de porta e janelas azuis, com um pequeno, mas bem cuidado jardim, em que arbustos se misturavam a um pequeno espaço, onde ervas cresciam para ser usadas para dar mais sabor à comida caseira.

 

Abriu a porta e um arrepio sacudiu seu corpo ao entrar no ambiente quente e acolhedor da pequena sala, em que móveis simples se acomodavam muito perto um dos outros. Inspirou com prazer o cheiro que vinha da cozinha.

 

— Salvador?

 

— Eu mesmo, Marieta! Está um frio danado lá fora!

 

A mulher apareceu na sala e sorriu:

 

— Vem pra cozinha. O forno está aceso.  Vai logo se esquentar.  Muito trabalho?

 

— Graças a Deus, sim!  Instalei uma grande parte da fiação em um prédio de luxo que estão construindo. 

 

Livrou-se do casaco, do gorro e dos sapatos e sentou-se a uma mesa, observando a movimentação rápida da mulher, que preparava o jantar.

 

Seus olhos se fixaram nela com carinho e os pensamentos viajaram para um ônibus cheio, onde os seus olhos se encontraram e a conversa escorregou de suas bocas com leveza e animação.

 

O namoro, o noivado e o casamento, a vinda dos dois filhos.  Vinte e cinco anos passam muito depressa, pensou.  Ele, eletricista, ela, doméstica.  Foi uma difícil, mas uma boa luta.

 

Fechou os olhos e, de repente, estava em outro lugar, em outra época.

 

 

II

 

O menino corria pelo terreiro atrás de uma cabra magra, que balia sem parar.  Ele adorava aquele bichinho medroso. O sol escaldante queimara a pequena plantação ao lado da casa de pau a pique.  Um homem carregando com dificuldade uma enorme lata cheia de água vem pelo caminho seco.  Os pés descalços e a alma vazia.

 

Coloca a lata em frente à entrada da casa e ralha com o moleque, por estar molestando o animal.  Uma mulher gasta pela seca e a pobreza aparece na porta e se curva para pegar a água rara.

 

— Num guento mais essa vida, mulher! Só sofrimento! A gente trabaia, trabaia e seca tudo.

 

A mulher faz uma careta e balança a cabeça concordando.

 

— Severino vai pra Sum Paulo. Diz que lá ninguém passa fome.  Quero ir pra lá.

 

Com o medo estampado no rosto magro, a pobre mulher fica em silêncio. Como seria esse lugar, teria lugar para plantar e levar a cabra.  Entra e desaparece no escuro do casebre. O menino entra também para matar a sede.

 

Depois de muitas conversas com Severino e o acordo com o dono do caminhão, Josias, Maria e Salvador sobem no pau de arara, com os poucos pertences enfiados em pequenas trouxas.  Severino e a família também estão lá. Um primo dele irá esperá-los, quando chegarem. E o caminhão lotado de retirantes, que se espremem nos toscos bancos, parte para o sul. 

 

A viagem longa e árdua castiga aquelas pobres criaturas já tão abatidas pelas dificuldades da vida. A intervalos, o pau de arara para e eles podem fazer uma parca refeição com o pouco dinheiro que carregam nos bolsos remendados.

 

As mulheres com lenços na cabeça tentam evitar que a poeira da estrada entre pelas suas narinas e colocam panos gastos pela miséria no rosto das crianças.  Os solavancos fazem os retirantes dos bancos pularem e as crianças agarrarem suas mães.

 

Após dias de viagem, o caminhão entra em uma grande rodovia e desliza pelo asfalto. O movimento intenso de veículos chama a atenção dos viajantes. Cidades aparecem e desaparecem pelo caminho.

 

Horas depois, uma grande cidade, em que construções se erguem para o céu, abocanha todo o horizonte à frente.  Olhos assustados se admiram com a imensidão de concreto, que começa a cercá-los por todos os lados.

 

O pau de arara entra sacolejando pelas ruas movimentadas do lugar e muitos deles se encolhem de medo ao se deparar com uma realidade totalmente desconhecida.  Ao chegar ao lado de uma estação de trem, o caminhão para, despejando os retirantes, que, atônitos, olham em volta desnorteados.

 

Severino avista o primo e se cumprimentam. Josias, Maria e Salvador se aproximam timidamente e são bem recebidos pelo homem.

 

Depois de um longo trajeto de ônibus, chegam a um bairro da periferia da cidade.

 

A procura por um trabalho é muito difícil para quem somente lidou com a terra a vida inteira.  Josuel, o primo, que é pedreiro, leva ambos para uma construção e começam a servir de ajudantes.  Com o tempo, aprendem a profissão e ajudam a construir muitas casas na grande cidade.

 

Maria se torna faxineira. E, com os anos, conseguem construir uma pequena casa.

 

 

Salvador ingressa em uma escola pública.  Inteligente e interessado, consegue terminar o ginásio e ingressar em um curso de eletricista no SENAI.

 

Certa tarde, voltando para casa, em um ônibus lotado, seus olhos encontram os olhos de uma bela morena, que está de pé ao seu lado, e o sorriso dela o encanta.  Começam a conversar e, por sorte, descem no mesmo ponto. O namoro e o casamento foram a coroação de um amor, que dura há vinte e cinco anos.

 

Marieta coloca um prato com sopa na frente do marido:

 

— Coma, homem, para esquentar os ossos.

 

Ele sorri.  Ela é uma boa mulher, que o ajuda há anos, trabalhando como caixa de um mercadinho local e que sempre conseguiu cuidar da casa. O carinho com que ela tratou seus velhos pais até que Deus os levou. O cuidado e a severidade amorosa com que criou os filhos.

 

O orgulho pela família, que formou, ilumina seu rosto.  Rafael acabara de se formar em engenharia civil e Janaína estava cursando enfermagem.

 

Olha com gratidão à sua volta.  Quantos nordestinos deixaram seu lugar de origem para tentar uma vida melhor nesta cidade imensa, que os recebeu e os abraçou.

 

O menino Salvador, que fugiu da seca e da fome, encontrou um lar na cidade grande. Grandes foram os desafios e a luta foi incessante para melhorar de vida, mas conseguiram.

 

As agruras da viagem espinhosa no pau de arara ficaram no passado, mas muitas vezes as saudades do balido da desnutrida cabra de sua infância o invadem. O que será que foi feito dela?

 

 

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