UMA NOITE APAVORANTE
A Felicidade se
constrói, mas sempre será muito vulnerável.
Leon Alfonsin Vagliengo
Tinha sido um dia de trabalho
muito pesado na obra onde Edvaldo servia como pedreiro, e o calor abafado de quase
quarenta graus havia tornado aquela jornada quase insuportável. Depois de mais
de uma hora de ônibus para chegar ao pé do morro onde mora, subiu os cem metros
da íngreme trilha de barro, saiu dela pela passagem da direita e ainda andou
mais uns cinquenta metros no caminho estreito que o levou até seu barraco, onde
a Gilmara, toda cheirosa, sempre o aguardava com um sorriso e um beijo, feijão com
arroz quentinho, e um belo ovo frito; às vezes, até um bife. Era o seu jantar
diário, que encontraria reproduzido na próxima marmita, na hora do almoço.
Chegou exausto.
Como já era do costume, tomou um
belo banho de água fria no chuveiro que ele mesmo havia improvisado e vestiu a
roupa de ficar em casa com sua jovem esposa, deixando o macacão de serviço
pendurado atrás da porta para usá-lo no trabalho do dia seguinte.
Naquela noite fez tudo igual,
mas o cansaço o dominou. Mesmo a resistência própria da juventude tem limites.
Já passava das nove horas e teria que se levantar cedo para voltar ao trabalho.
Assim, um pouco depois de jantar, beijou Gilmara carinhosamente e desculpou-se
por sua fraqueza do momento: estava muito cansado, precisava dormir.
— Nunca senti tanto cansaço. Amanhã
a gente namora. Hoje eu não aguento.
Disse isso a ela e provou
naturalmente que era verdade, pois mal se deitara entrou num sono profundo, do
jeito que a pessoa parece que não vai acordar nunca mais.
— Nossa! Pode cair a casa que
esse aí não acorda! — Gilmara resmungou para si mesma, divertida e sorrindo,
sem imaginar o que ainda viria.
Ao ver que ele dormia feito
pedra, deu graças a Deus, pois não teria coragem de negar-se aos carinhos de
seu marido, mas também estava cansada. Deitou-se ao lado de Edvaldo e logo
dormiu. Lá fora caia uma chuvinha leve, e o suave ruído da água sobre o telhado
embalava o sono do casal.
Pela madrugada o barulho da
chuva tornou-se mais forte, e acabou acordando Gilmara, que tinha o sono leve. Preocupada,
abriu a janela tosca, sem vidros, para espiar o pé d’água. Estava mesmo muito
forte.
Vieram a sua mente os
noticiários que ouvia com frequência no radinho de pilha sobre tantas desgraças
que a chuva já provocou para moradores de morro. Ficou apreensiva e o sono foi-se
embora de uma vez. Olhou para o marido, que continuava a dormir profundamente,
preferiu não o acordar, pensando “deixa o Valdo dormir, coitado. Está mesmo cansado.
Mais alguns minutos essa chuva passa e eu posso voltar a dormir com ele, sossegada”.
Mas essa consideração não
afastou o pressentimento de tragédia, cada vez mais fortalecido pelo crescente barulho
da chuva. Maus pensamentos tomaram Gilmara. Começou a imaginar um deslizamento
da encosta, o soterramento de sua morada com ela e o Valdo lá dentro, ficou com
medo. O tempo passava, seu marido dormia a sono solto, e a chuva não diminuía,
era intensa, fazia um barulho forte, muito forte, agora acrescido pelo das lufadas
de vento, cada vez mais violentas.
Olhando pela janela, ela via somente
aquela escuridão, apenas quebrada por uma fraca iluminação emanada da cidade ao
longe, que lhe permitiu perceber quando uma pequena árvore foi arrancada do
solo e arrastada pelo vento até desaparecer. Fortes trovões ribombavam de
quando em quando. A inquietude de Gilmara crescia, seu medo já se transformara
em pavor.
Olhou para Edvaldo, ele dormia.
Por um instante sentiu-se desamparada.
A sirene de alerta começou a
soar ao longe. Apavorada, passou a sacudir Edvaldo freneticamente, para
despertá-lo.
— Acorda, Valdo! Acorda!
No mesmo instante, brilhantes
riscos de luz ligaram o céu à terra, iluminando por um momento fugaz todo o
cenário, seguidos por um fortíssimo estrondo.
Edvaldo acordou assustado com o impressionante
estalido do raio e pela maneira como Gilmara o sacudia. Logo percebeu o terror
estampado no rosto da esposa e ouviu também a sirene, compreendendo o perigo. Com
a descarga de adrenalina que teve, despertou de vez, e sua reação foi imediata:
— Vamos sair daqui! Já!
Tomou a mão de Gilmara, abriu rapidamente a porta e saíram, mas travaram seus passos logo depois de
alguns metros ao presenciar o impressionante deslizamento de toda a ribanceira por
onde passava a trilha, vinda desde lá de cima, levando com ela algumas casas e
cobrindo outras mais embaixo, quase atingindo o local do barraco. Tiveram muita
sorte por não saírem um pouco antes e chegado à trilha, pois teriam sido
soterrados.
Sem a trilha não havia saída.
Desesperados, ambos examinaram em
volta de onde estavam, não encontrando escapatória. Também não poderiam retornar
ao barraco, pois havia ficado bem à beira do abismo que restara após a queda da
encosta, podendo despencar a qualquer momento.
Teriam que ficar ali mesmo,
esperando socorro e rezando para que o terreno se mantivesse estável. Ambos com
muito medo, Edvaldo e Gilmara ficaram abraçados sob a chuva, no aguardo da
sorte que o destino lhes reservaria.
Amanheceu, a chuva parou. O sol
já brilhava ardente quando o socorro chegou do Céu. Depois de avistados por um
agente da Defesa Civil, foram resgatados por um helicóptero da Polícia Militar.
Ao ver o helicóptero se aproximando, Edvaldo ainda se arriscou a entrar
rapidamente no barraco para pegar seus documentos e a roupa de trabalho.
Em seguida ao resgate, foram
levados para um abrigo improvisado na quadra esportiva da escola da comunidade,
onde receberam algum alimento, roupas secas e um colchão para descansar,
dividindo aquele espaço com outros socorridos.
Naquele dia Edvaldo não pensou
duas vezes: nem descansou, nem foi trabalhar na obra. Após ver que Gilmara
estava acomodada, mesmo que precariamente, e em total segurança, vestiu sua
roupa de trabalho, conseguiu uma pá e juntou-se aos socorristas para ajudar nas
escavações. Um trabalho de urgência absoluta, pois havia pessoas nas casas
soterradas, e sempre há esperanças de se encontrar e salvar sobreviventes.
Enquanto cavava aquela terra
encharcada e pesada, Edvaldo só tinha em seu pensamento que tinham perdido
quase tudo, mas ainda ficara o principal: ele e Gilmara, com juventude e saúde.
Então, mais tarde procurariam algum lugar seguro para construir um novo ninho e
retomar suas vidas.
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