A
Bruxa
Adelaide
Dittmers
O
sol derramava raios pelos campos e por um pequeno bosque, que o
circundava. Mais adiante, um vilarejo
com estreitas ruelas de terra e casas de pedra equilibradas na encosta de uma
montanha coberta por pinheirais, cujo pico coberto de neve, brilhava em
contraste com um céu profundamente azul e bordado por pequenas nuvens, que
formavam várias figuras para quem as quisessem imaginar.
À
beira do bosque, uma jovem dobrava-se para colher ervas e plantas
silvestres. Usava vestes simples e a
saia comprida atrapalhava seus movimentos, enroscando-se nos pequenos caules da
vegetação. Seus longos cabelos negros
eram parcialmente escondidos por uma pequena touca. Pele clara com muito traços delicados, assim
como os olhos de um verde esmeralda completavam sua beleza.
Terminada
a colheita, colocou tudo em uma cesta, que estava ao seu lado, ergueu-se e com
passos lentos caminhou em direção da aldeia.
Com
imensa satisfação, aspirava o ar fresco da manhã. Adorava aqueles vastos campos. Enquanto caminhava, começou a recordar, com
melancolia, as inúmeras vezes, que pequena, de mãos dadas com a mãe, percorreu
aquele caminho para colher ervas para fazer remédios, unguentos que curavam
doenças e mitigavam as dores de muitos. Tinha
aprendido com ela a manipular plantas, sementes e raízes, que eram
transformados em poções medicinais.
Com
a morte dos pais em um acidente na montanha, ficou sozinha e, além de trabalhar
no campo, ganhava o pão de cada dia, como curandeira da aldeia.
Era
malvista por muitos daqueles ignorantes aldeões, que não admitiam uma mulher
viver só, sem marido e filhos. Muitas
vezes era molestada pelos jovens e até por homens mais velhos, mas sempre
conseguia escapar de suas investidas.
Aprendeu a se defender e procurava levar uma vida discreta e apagada.
Depois
de uma longa caminhada, chegou ao vilarejo e subiu a ladeira, que a levou a uma
pequena casa, onde uma primavera de flores vermelhas coloria o cinza escuro das
pedras das paredes. Entrou, colocou a cesta em cima de uma tosca mesa de
madeira e foi acender o fogo em um pedaço de rocha plana, onde havia uma
estrutura de ferro, em que estava pendurada uma panela também de ferro, que não
só servia para cozinhar os alimentos como aquecia o ambiente. A parede, em que se encostava esse fogão
primitivo, era escurecida pela ação do fogo.
A moça encheu a panela com a água retirada de uma tina e começou a
preparar suas poções.
Ultimamente
estava preocupada com as reações de algumas pessoas do lugar. Era olhada de esguelha e muitos a chamavam de
bruxa por ser uma curandeira.
Principalmente o pároco do vilarejo a olhava com muita desconfiança e se
afastava quando passava por ela.
O
século XVI começou com grandes perseguições da igreja católica a todos, que
professavam outras religiões ou realizavam cultos considerados pagãos. Judeus eram perseguidos e qualquer
manifestação contrária aos severos ditames do papa e seu séquito era
perfidamente julgada. Fogueiras eram
acesas por toda Europa, queimando supostos infratores das leis cristãs,
vigentes na época. Os ensinamentos
sábios e amorosos do verdadeiro Cristo foram esquecidos e substituídos pela
ambição e desejo de poder da igreja.
Por
tudo isso, o medo e a preocupação da pobre moça não eram infundados, mas ela
confiava em sua missão, transmitida pela mãe, de ajudar a quem lhe pedisse
socorro. E corajosamente enfrentava a desconfiança de muitos da aldeia, mesmo
quando alguns a aconselhavam a agir de maneira mais oculta. Ela, no entanto,
não conseguia entender porque tinha que esconder o que fazia.
Naquela
manhã, enquanto preparava suas poções, bateram à sua porta. Era Jonas, seu vizinho e amigo, que com uma
voz exasperada gritou:
- Ana,
você precisa fugir daqui agora. Há gente se encaminhando para cá com o pároco e
outros da igreja. Ouvi que querem
levá-la para a masmorra.
A
moça estremeceu.
-
Não faço mal a ninguém. Por que não
entendem que minhas ervas são para curar? Sou cristã, só não tenho frequentado
as missas, porque sei que o padre não gosta de mim.
- A
igreja está perseguindo muitas pessoas, que nada fizeram. Por favor, venha comigo. Vou escondê-la na cabana de caça, que tenho
na montanha.
Ana
sabia que vizinhos não gostavam dela por ser só e independente. Invejavam-na
por conseguir sobreviver com seu trabalho no campo e as exíguas moedas, que
cobrava pelos seus remédios.
Ficou
indecisa por um momento, mas o terror de ser presa a impulsionou. Deu a mão a Jonas e saíram da casa correndo.
Rapidamente percorreram os caminhos que os levariam à montanha.
Poucos
minutos depois, a turba chegou à casa de Ana, invadindo-a com turbulência. Derrubou o caldeirão de ferro e destruiu tudo
o que encontrou pela frente. Os homens estavam cegos pelo ódio de não a terem
encontrado ali. Iriam procurá-la por
todo o canto. Ela não ia escapar. Era
uma bruxa perigosa e em nome de Deus, precisavam castigá-la.
Enquanto
isso, Jonas e Ana, subiam a montanha o mais depressa possível, enroscando-se em
galhos de vegetação, que afastavam com as mãos. Finalmente chegaram a uma
pequena cabana, feita de madeira. Jonas
empurrou a porta, que se abriu com um guincho e abriu também a única e pequena
janela, que iluminava um pouco aquele ambiente quase vazio. Havia um pequeno e rústico colchão de feno ao
fundo, uma espécie de lareira para cozinhar e o chão era de terra batida.
Ana
estremeceu, teria que ficar ali sozinha, cercada pela floresta de pinheiros,
onde habitavam lobos.
Jonas
disse-lhe que tinha que ir para não levantar suspeitas e que mais tarde
voltaria para lhe trazer algo para comer.
Desceu, quase correndo, as escarpas da montanha e chegou à sua rua, onde
viu com angústia, o que tinham feito com a casa da amiga. A bela primavera jazia espicaçada no chão.
Sua
mulher o esperava à porta de sua morada.
Ele foi ao seu encontro. Eram
muito gratos àquela jovem, que muitas vezes os tinha socorrido com suas
poções. Entraram em casa e a mulher
relatou o que tinha visto e ouviu. Iriam
vasculhar toda a região em busca da pobre Ana.
Ao
anoitecer, Jonas subiu a montanha, levando uma trouxa com algum alimento para a
amiga. Pendurada no ombro, carregava uma
arma de caça para disfarçar seu objetivo e também se defender de algum lobo,
que cruzasse seu caminho.
Ao
chegar, encontrou Ana sentada no chão, fora do abrigo, com o olhar perdido pela
floresta. As primeiras estrelas
brilhavam no céu. A jovem levantou-se
rapidamente ao sentir que alguém se aproximava.
-
Sou eu, Ana. Vim lhe trazer comida, como
prometi.
Chegando
perto dela, estendeu-lhe a trouxa e contou-lhe o que acontecera. A pobre moça ficou desolada. O que seria de sua vida?
Ela
agradeceu e se despediram com um aperto de mão.
Jonas voltou para casa sobressaltado por pensamentos sombrios.
No
dia seguinte, as buscas para encontrar a bruxa do imaginário daqueles homens
rudes de ignorantes continuaram.
Vasculharam palmo a palmo os campos e o bosque ao redor do vilarejo e a
cada fracasso, o ódio daqueles fanáticos crescia como erva daninha,
entorpecendo suas mentes fantasiosas.
O
dia sucumbiu a uma noite estrelada e o luar banhou de prata aquele belo
cenário. Todos voltaram para casa, não
sem antes combinar que no próximo dia iriam varrer a montanha de alto a baixo.
Mal
o dia tinha acordado e se espreguiçado pela paisagem do lugar, já a turba subia
a montanha em sua procura desvairada.
Jonas
e a mulher estavam apavorados. Iam
encontrar a jovem e estavam de mãos atadas, nada podendo fazer.
Ana
levantou-se ao amanhecer e abriu a portinhola de seu frágil abrigo. A floresta estava tingida de tons laranja da
aurora, que se debruçava sobre o pinheiral, iluminando cada canto, tornando
aquele lugar um pequeno paraíso. Um
pássaro cantou no alto de um pinheiro, anunciando o dia que nascia.
A
moça olhou para a paisagem. Amava e
respeitava a natureza. Encheu seus olhos
e sua alma com a beleza do lugar. Estava
muito cansada. Quase não tinha dormido.
Além do medo do que iria lhe acontecer, o uivo dos lobos a deixaram em
permanente estado de alerta.
De
repente, ouviu um tropel de passos e um alarido de vozes subindo a
montanha. Seu coração disparou e a jovem
entrou na cabana, fechou a porta e se encolheu em um canto do pequeno e único
cômodo do lugar que a escondia.
As
vozes foram se aproximando e seu pavor foi aumentando cada vez mais.
Um
homem gritou;
-Olhem,
vamos procurar naquela cabana!
E
chegando ao abrigo, empurraram a porta com violência e logo enxergaram um
pequeno vulto encostado à parede. Ana
cobriu o rosto com as mãos, como se esse gesto pudesse a proteger. Eles a
puxaram com força e a levantaram. Ela
implorou:
-
Por favor, não me matem. Não sou bruxa, só procuro curar as pessoas com minhas
plantas.
- É
sim! Gritou o homem que a agarrara. Você tem um pacto com o diabo para fazer
feitiçarias. E a empurrou para
fora. Ela levantou os olhos para ele e
na claridade do dia, reconheceu-o.
Muitas vezes aquele homem tinha se aproximado dela com as mais duvidosas
intenções, obrigando-a a fugir dele, como as presas fogem de seus predadores.
O
padre apareceu à frente do grupo, aproximou-se e a amarrou com uma corda e,
puxada como um animal, foi levada para a
aldeia, e enquanto percorriam as vielas, algumas pessoas apedrejavam-na sem
piedade. Alguns, no entanto, choravam ao
vê-la passar. Muitas vezes ela diminuiu
ou curou seus males com suas poções, que achavam ser mágicas.
Ao
chegar à igreja, foi jogada em um cubículo escuro para esperar seu julgamento.
Ferida e assustada, não conseguia entender tudo aquilo,
Religiosos
das redondezas vieram e se reuniram para julgá-la. A inquisição corria solta naquela época
tenebrosa e a maldade humana se manifestava com todo o seu furor nas pobres
criaturas, que contrariavam crenças católicas.
Ao
fim de alguns dias e depois de várias reuniões do clero, foi considerada
culpada e transgressora das leis de Deus. Uma herege que praticava bruxaria.
Com
varas e madeiras foi erguida uma estrutura na praça à frente da igreja, para que nela fosse aceso o fogo da expiação
e parte dos habitantes do lugar se reuniu para apreciar o espetáculo.
A
pobre curandeira foi trazida e amarrada àquela estrutura. Não chorava.
Seus olhos estavam vazios, perdidos em algum lugar distante.
Jonas
aproximou-se dela para lhe demonstrar sua tristeza e lhe dizer umas palavras de
consolo, mas foi afastado com brutalidade por um dos algozes da indefesa
vítima.
O
fogo foi aceso e começou a crepitar. As
chamas foram devorando a pobre criatura, que soltava gritos de dor.
Muitos
gritavam, enfurecidos, palavras contra a bruxa.
Outros procuravam esconder lágrimas, que teimavam em inundar seus
rostos.
Jonas
saiu dali arrasado. Não conseguira
salvá-la. Que justiça de Deus era essa,
que matava tão cruelmente pessoas inocentes, perguntava-se enquanto descia a
ladeira. E não encontrou uma resposta.
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