Tudo passa, só o amor não passa
Ana
Catarina S. Maués
É como viver
um “Déjà Vu”, pois retornei à casa que me coube de herança da família. Estou
sentado na mesma cadeira desgastada, olhando pelo janelão o jardim sem cuidado
e também a calçada, mais adiante, com a antiga falha precisando reparo e assim
sendo, não tem como evitar as lembranças. Era assim que eu vivia há cerca de
dez anos atrás, antes dos anos de riqueza e fartura que experimentei ao lado de
minha amada. Porém, hoje me pego repetindo a mesma rotina, acordando cedo,
tomando os panfletos e saindo nas avenidas distribuindo-os. Como nos tempos de
outrora, uns dias o dinheiro dá para os gastos com a comida, em outros o pão
mofado serve de alimento, mas nem por isso me deixo abater. Vejo o que ainda
possuo e tiro energias saudáveis e positivas de tudo isso. Que bom ter um lugar
que me abriga da chuva e do sol, que bom ter móveis, mesmo que velhos e,
principalmente, meu antigo rádio, em cima da cômoda, a me proporcionar viagens
incríveis nas melodias que dele vibram. O otimismo é grande companheiro, sei
que esta situação não durará para sempre. Apesar de eu já contar 80 anos, não
me deixo entristecer. Assim como no passado, dos meus 70 aos 80, conquistei
fama, dinheiro e poder, isso tudo se repetirá e eu novamente terei fartura e
dias dourados.
Hoje a
memória está aguçada. Os sentidos não fazem eu chegar às lágrimas por que sou
duro de roer. Lembranças são sempre bem-vindas, carregadas de tristezas, jamais.
Neste torpor, deixo-me conduzir ao dia que a conheci, mulher que mudaria tudo
em minha vida.
Minha
rotina é cansativa. Acordar cedo e até quando o sol está a pino ficar nas
esquinas distribuindo panfletos, é bem difícil. Camarão é o que pretendo
vender. Não sou dono nem sócio de nada, faço um bico que ofereceram para eu não
passar fome. Mas nem por isso sou triste e acabrunhado. Sou uma festa viva, meu
dia a dia a Deus pertence, minha única preocupação é passar mais e mais
folhetos, porém se não conseguir, não altero meu humor. Não brigo com a vida,
levo ela assim com entusiasmo do alto das minhas setenta primaveras. E assim eu
ia, até que um dia aconteceu algo inusitado.
Estava
eu, como de costume, esperando o semáforo fechar para os veículos, quando um
BMW parou e, lentamente, o vidro da janela desceu e, aquele olhar dela tomou
conta de mim, de pronto me envolveu, sei que o brilho do meu, também não passou
despercebido, pois ela pegou da minha mão o papel amassado, meio cerimoniosa, e
sem palavra alguma deu a partida no carro, me deixando entre nuvens de
coraçõezinhos.
No outro
dia eu lá estava, rezando para que ela aparecesse e novamente nossos olhares se
encontrassem. Precisamente, às onze horas e quarenta minutos ela encostou o
carro e esperou que eu me achegasse. Pediu uma grande encomenda dizendo que
fazia questão que eu fosse entregar. Passou-me o endereço, já anotado num papel,
se foi. Meu coração batia acelerado e eu constatei que ainda podia me
apaixonar.
Dizem
que um anjo chamado Cupido, flecha os corações deixando-os enamorados, porém no
nosso caso foram os camarões. De encomenda em encomenda nossas conversas se
estreitaram. Ela sozinha, rica, bem-sucedida, morava bem, vivia bem, só
precisava de um companheiro, um amor, conversas, sorrisos, um baile e outro pra
dançar, beijar e outras coisinhas mais, e disso eu entendia muito. Tiramos a
sorte grande, ela suprindo suas carências interiores e eu me refastelando no
dinheiro que não mais faltava. Meu jeito simples, aventureiro, que fugia ao padrão
empaletozado do dia a dia dela, nos aproximou. Em dois meses eu já estava instalado
entre lençóis alvos e travesseiros com cheiro de alfazema.
Ela era
fiscal de tributos, tinha renda privilegiada, trabalhava no interior, mas
residia na capital. Nossos finais de semana e feriados eram viajando. Tomávamos
o avião e embarcávamos para passeios rápidos em ilhas, resorts, clube de pesca,
carnaval fora de época e tantos passeios quantos nossos sonhos pudessem ser
realizados. Foi numa dessas viagens que eu conheci os Cassinos. Uau! Percebi
que combinavam comigo. Sentia a sorte entre os dedos quando os dados os
tocavam. Enriqueci. Numa única noite consegui o que trabalhando a vida toda
distribuindo panfletos jamais conseguiria. Não precisava mais do dinheiro dela
para as viagens ou roupas caras ou joias e relógios com que me presenteava. Eu
estava com ela de coração limpo, a amava verdadeiramente.
O tempo
passava e eu cada vez gastava mais e mais. Cheguei a ser famoso Chamavam-me de
o Rei dos dados. Pude sentir o poder bater à porta e eu deixei entrar. Usufrui
de tudo o que o dinheiro vindo do jogo ofereceu, mas sempre com ela. Virei um “bon-vivant”.
Eu e minha amada estamos cada vez mais apaixonados.
Um dia
a sorte virou. Eu não acreditava que pudesse acontecer, mas comprovei na pele. Perdi a fortuna que consegui com um ano de
sorte, foi uma jogada azarada. Combinamos, eu e ela, que aquela seria a noite
final, nunca mais entraríamos num cassino.
Voltei
a viver do conforto que ela oferecia. Nos entendíamos bem, o amor entre nós era
perceptível, bastava que alguém passasse algumas horas conosco. Ela falava doce
quando precisava puxar minha orelha, eu bastava olhar para ela fixo, que já
entendia não ter gostado disso ou daquilo. Nossa vida caminhava perfeita.
Um dia
ela se queixou de uma dor no abdômen. Tínhamos uma viagem marcada para Caruaru
para curtirmos uma festa junina dentro de um trem. Mas eu fiquei logo
preocupado e fiz com que ela faltasse ao trabalho nesta semana e fizesse os
exames. Foi diagnosticado pedra na vesícula.
Ela teve
que ficar internada e logo marcaram a cirurgia. Nossas preocupações eram
diferentes. Ela com a perda da viagem, e eu com o pós-operatório dela.
Essa
é a hora, nas minhas lembranças, que não consigo conter as lágrimas. Quando
lembro que ela não saiu com vida da cirurgia.
Não
preciso dizer que nossa história de amor interrompida estupidamente, trouxe
consequências. Hoje eu voltei a distribuir panfletos, mas isso eu tiro de
letra, porém viver sem a alegria dela, aquela luz que iluminava meus dias, isso
é o mais difícil, que tento a cada segundo superar.
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