AQUILES, O INCRÉDULO
Leon Vagliengo
Um conto contado agregando ângulos pessoais de
placidez, acomodação, dúvida, desafio, reação e surpresa.
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Hércules aproveitava o seu descanso de
todos os fins de tarde sentado no mesmo banco de sempre, na mesma pequena praça
de sempre, que era um recanto tranquilo, meio escondido entre os prédios.
Descansava uma meia hora apreciando o movimento da cidade, que acontecia desde uns
cinquenta metros adiante, e então tomava o primeiro ônibus rumo a sua residência,
depois o segundo para completar a viagem. Fazia isso religiosamente todos os
dias, menos nos fins de semana, logicamente.
Escriturário competente e imprescindível
de um escritório de contabilidade, ali naquela praça realmente sentia-se
tranquilo após cada dia de trabalho monótono que havia transcorrido igualzinho
a todos os outros anteriores, pelo menos nos últimos dezenove anos.
Ao
chegar ao seu pequeno apartamento de solteirão, continuava a rotina. Um banho
quente, esquentar a comida que pela manhã transferira do freezer para a
geladeira, o jantar, o jornal da noite e a novela na TV e, depois, dormir para
recuperar as forças que lhe permitiriam começar tudo novamente no dia seguinte.
Nos
fins de semana, era diferente. Ao chegar em casa, começava uma outra rotina. Não
envolvia o emprego e os cansativos percursos de ônibus, de ida e volta à
cidade, mas Hércules fazia sempre as mesmas coisas, também religiosamente. Estava acostumado, não lhe passava pela
cabeça alterar nada.
No
sábado limpava o apartamento, lavava suas roupas, cozinhava e congelava a
comida da semana, e via TV. Já no domingo, levantava-se cedo para ir à missa; na
volta para casa esticava o percurso numa boa caminhada, almoçava, e à tarde
assistia algum jogo de futebol ou filme na TV; à noite jantava, via mais alguma
coisa na TV e depois ia dormir, já se preparando para o retorno à rotina dos
dias de trabalho.
Hércules
nunca soube como encontrar uma companheira para a sua vida. Uma vez um amigo
tentou bancar o cupido para ajudá-lo, e lhe apresentou uma moça bem
interessante; mas estragou tudo com a sua falta de jeito para levar um namoro
adiante. Aos quarenta e dois anos, vivia só.
Mesmo
assim, antes de deitar-se Hércules rezava as suas orações da noite, agradecia sinceramente
e sempre ficava emocionado, só em pensar como era feliz.
Naquela
tarde de sexta-feira estava com a sua atenção focada em como o verde das
árvores e plantas que circundavam e preenchiam a praça era mesmo relaxante,
confirmando o que um dia lera em algum lugar, há muito tempo. Tentou lembrar
onde vira isso, para distrair-se mais um pouco enquanto esperava a hora do
ônibus. “Talvez em algum exemplar do Almanaque do Biotônico Fontoura que a vovó
ganhava do farmacêutico”, pensou e riu-se, mas não se lembrava ao certo.
Em
certo momento, as suas divagações foram interrompidas pelo movimento de um
estranho que se sentou no banco ao seu lado e logo puxou conversa. Muito
falador, apresentou-se com o nome de Apolo, acrescentando que, tal como o deus
grego de quem era homônimo, tinha muito apreço pela música e pelas artes em
geral. Hércules o examinou discretamente, viu que era bem-apessoado, não
despertava desconfiança, e teve a impressão de que já o tinha visto antes.
Surpreso
pela súbita e animada abordagem, manteve-se educadamente quieto, apenas ouvindo
o estranho. A cada tanto respondia com um econômico “sei, sei...”, ou um
compreensivo “hum, hum...”. Aos poucos, porém, foi se interessando pela animada
conversa do confiado Apolo, e passou a interagir com alguns rápidos e moderados
comentários.
Lá
pelas tantas, depois de muita fala e vendo que conseguira a atenção e a
confiança de Hércules, Apolo resolveu abrir o jogo. Disse que tinha uma galeria
de arte próxima à praça e que, de lá, o estava observando já havia alguns dias.
Pôde perceber como ele era metódico e discreto, apresentável no vestir e tinha
muito bons modos, o que havia acabado de confirmar naqueles minutos de
conversa. Enfim, disse que Hércules lhe parecia ter as virtudes de que
precisava em um agente para o seu serviço, e que já havia pedido as suas referências
onde ele trabalhava, que era justamente o escritório responsável pela contabilidade
de sua Galeria de Arte.
—
Em verdade, o Contador Aquiles, seu patrão, me disse que te conhece bem e duvidou
muito que você aceitasse a proposta que
vou te fazer, mas também disse que te libera, por férias de até um mês, se você
aceitar. E como é meu amigo de longa data, até por mais uns dias, se for
preciso. Mas acho que é porque ele não acreditou que você aceitará – concluiu,
desafiador.
Após
revelar esses detalhes, esclareceu, enfim, a proposta. Apolo precisava de alguém
para um empreendimento que teria que se iniciar numa viagem internacional
dentro de um mês, percorrendo alguns países por duas ou três semanas, começando
pela Grécia, para comprar quadros de alguns pintores que começavam a se
destacar e que seriam expostos em sua Galeria.
—
Você viverá uma verdadeira odisseia. Serão doze trabalhos, ninguém melhor do
que alguém chamado Hércules para realizá-los. Mas não será nenhum bicho de sete
cabeças.
O
projeto todo já estava pronto, com todas as indicações necessárias para
encontrar essas pessoas, identificar as obras já escolhidas, e ele ensinaria a
Hércules a melhor forma de fazer a negociação em alguns dias de treinamento
após o expediente. A dificuldade maior seria o idioma, mas iria com as cartas
prontas e utilizaria, quando precisasse, programas da internet que fazem
traduções instantâneas, viabilizando a comunicação. E a recompensa financeira
seria muito boa.
Ao
ouvir a proposta, a primeira coisa que passou pela cabeça de Hércules foi “vou
perder a sequência da novela”; mas o seu espírito de aventura, há tanto tempo
hibernando, voltou com toda a força e deu um verdadeiro rugido nas orelhas de
sua vontade, despertando-a daquela letargia que a dominava. Vítima passiva
desse processo que ocorria em sua mente, Hércules reagiu de forma inesperada,
até para ele mesmo.
—
Aceito! – Disse, quase sem pensar.
O
ânimo, a expressão, a atitude de Hércules, mudaram de imediato. Já queria saber
e foi perguntando como seria tudo, para onde iria, quais as suas garantias,
quanto receberia, e tudo mais que lhe veio à cabeça.
Que
praça, que ônibus, que nada! A sorte, finalmente, lhe sorria, caiu do céu, um
maravilhoso presente. Férias prolongadas e emprego garantido pelo patrão,
viagens pagas e ainda uma boa “graninha” extra. Agora viajaria de avião, conheceria
gente diferente, situações novas; seria uma oportunidade de quebrar
completamente as suas rotinas por um tempo, experimentar uma mudança radical em
sua vida. Aventura à vista!
Hércules
riu-se enquanto pensava “Só espero que não seja um presente de grego, mas essa história
vai pegar o calcanhar do Aquiles. O patrão não vai nem acreditar! Quando souber
que aceitei, vai querer me comer o fígado. Também, quem mandou querer agradar a
gregos e troianos”?
Muito bom. Seus detalhes são riquíssimos. Parabéns!
ResponderExcluirHelio F. Salema