CALMA, TONHÃO!
Leon Vagliengo
A história de um ‘machão’ arrependido e a
revelação do motivo do misterioso desaparecimento de sua amada Marinalva.
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Desde
que nasci, até hoje, moro com os meus pais na Vila Nhocuné, na Zona Leste,
periferia da cidade de São Paulo. Descobri que esse nome esquisito nasceu com
os escravos, que chamavam o fazendeiro de “Senhor Coronel”, mas diziam “Nhô Cuné”,
e assim foi batizado o lugar, quando deixou de ser uma fazenda e se tornou um
bairro.
A
minha mãe, Dona Isabel, é uma branca de muito juízo, que sempre cuidou muito
bem de mim, de meu pai e de nossa casa. O Seu Antônio, meu pai, é preto, bem
preto mesmo, muito sério e trabalhador. Com muito sacrifício dos dois, há
muitos anos compraram um terreninho e construíram uma edícula nos fundos para
os primeiros anos da vida de casados. Depois, deixaram a edícula sem acabamento
para não gastar muito e nem perder tempo, e já foram construindo, aos poucos,
no restante do terreno, a boa casinha onde hoje moram.
Como
todos podem ver, morando na Zona Leste e até por uma questão de sangue, eu só
poderia ser, e sou, corinthiano, alvinegro. Às vezes, brincando com meus pais,
mas sempre com muito respeito e carinho, chamo a minha mãe de “Dona Branquela”
e o meu pai de “Seu Negão”. Eles riem e me chamam de “Café-com-leite”, apelido
que até acho meio bobo, mas não digo nada, porque eles gostam. Se eu não “apronto”
nada, o clima em casa é sempre de muito amor e tranquilidade.
O
Seu Antônio nasceu num dia treze de junho, dia de Santo Antônio, e recebeu esse
nome em homenagem ao Santo. Por uma incrível, mas interessante coincidência,
nasci de parto normal também num dia treze de junho. Filho de Antônio, e nascido
no dia de Santo Antônio, não podia dar outra: o meu nome é mesmo Antônio,
Antônio Lupércio de Oliveira Filho, e meus pais me chamam de Tonico desde
quando eu era criança até hoje; mas todo mundo na Vila me conhece por Tonhão. É
porque sempre fui muito forte e briguento, e as pessoas da rua e da academia onde
“puxo ferro” me respeitam, como tem mesmo que ser. Aqueles que tiveram a
coragem de me encarar, sempre se deram mal.
Quando
eu e a minha linda e querida Marinalva resolvemos juntar os trapos e tarecos,
os meus pais nos cederam a edícula para termos onde morar, pelo menos por um
tempo.
—
Serviu para mim e para a sua mãe, “quebra bem o galho”. Vocês ficam aí pelo
tempo que quiserem, ninguém vai incomodá-los – disse o meu pai, o “Seu Negão”,
todo feliz, com a aprovação da sorridente “Dona Branquela”, ambos irradiando a
imensa alegria que sentiam naquele momento tão importante para o seu filho Tonico.
Sim,
sempre fui muito forte. Nasci com mais de quatro quilos e quando era menino, na
escola, brigava muito e batia nos colegas. Dei muito trabalho para os meus
pais, que eram chamados à Diretoria quase todas as semanas. Aos trancos e
barrancos frequentei a escola só até o sétimo ano do Ensino Fundamental. Hoje trabalho
no depósito de uma grande loja de materiais de construção, onde sou muito útil,
principalmente para manusear aqueles artigos pesados, como lajotas e vasos
sanitários. Cresci, fiquei adulto, mas nunca mudei os meus modos, sou assim
mesmo. E muito, muito desconfiado.
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O >>>
— Tonhão!
—
...?
—
Ô Tonhão!
Era um domingo, eu tinha acabado de
tomar o café da manhã, quando ouvi a voz esganiçada e inconfundível do Jujuba,
o meu amigo Juarez, que ganhou por apelido o nome daquelas balas porque sempre
combinava camisas bem azuis ou bem amarelas com bermudas bem verdes ou até bem vermelhas.
Sempre foi o cara mais colorido da turma.
Abri a porta e saí da velha edícula ainda
sem acabamento que meus pais construíram nos fundos da casa deles e cederam para
eu morar com a minha Marinalva, como já contei, e fui lá no portão para ver
qual era o “babado” que trazia o Jujuba tão cedo à minha casa. A gente sempre
tem algum programa e eu sou “arroz de festa”, “topo” todos: festas, passeios,
futebol, nunca perco um; mas estranhei, porque nesse dia não tinha nada
marcado. Cheguei, Jujuba já foi dizendo:
— “Maluco”, o moço aqui “tava”
perguntando lá no bar qual é a casa do senhor Antônio Lupércio de Oliveira
Filho, e eu logo “saquei”: só pode ser o Tonhão. Ele quer “bater um papo” com
você.
Olhei
para o estranho. Ele estava acompanhado de um outro “gajo”, que me apontava uma
câmera, daquelas de televisão. Não gostei do atrevimento. Nem um pouco. Que
negócio é esse? Quem são esses “caras”? O quê que eles querem comigo?
Mal
pensei e o primeiro já foi dizendo:
—
Senhor Antônio, eu sou o Rafael, muito prazer. O senhor foi sorteado entre
centenas de interessados e eu estou aqui para lhe fazer uma proposta em nome de
uma conhecida construtora, que mais tarde lhe será revelada, mas somente depois
que todo o processo, que vou lhe apresentar, estiver contratado.
E
continuou, me dizendo que eu e minha companheira ganharíamos uma viagem de um
mês para o Nordeste, desde que eu lhes confiasse as chaves de minha casa, onde
a construtora faria uma reforma completa, com móveis, decoração e tudo o mais. Aí,
concluiu:
—
Para realizar esse sonho, o senhor só terá que autorizar que as imagens da
reforma em sua casa sejam utilizadas pela empresa, para propaganda.
—
Claro que não! – Respondi “na lata”.
Para
mim estava na cara que era treta. Eu nunca me inscrevi em concurso nenhum, sempre
achei que são uma tremenda enganação. E quem faria uma proposta generosa dessas?
Aí tem! Esmola demais, o santo desconfia! Imagine que eu deixaria a chaves da
minha casa com um desconhecido e ficaria longe dela por um mês! Só se eu fosse
maluco mesmo, como me chamou o Jujuba!
—
“Tá” pensando que eu sou otário?! – Exclamei.
Evidentemente
surpreso, o tal do Rafael apenas balbuciou:
—
Mas...
E
nem continuou, não deu tempo. O meu sangue ferveu, subiu à minha cabeça; não
admito que tentem me fazer de trouxa. Avancei na hora para o infeliz e cobri
ele de pancadas. O amigo dele tentou me segurar, dei-lhe um soco, a câmera voou
longe, ele junto. Jujuba tentou me segurar, e eu é que me segurei para não lhe
dar também uns cascudos; escapou dessa só porque ele é meu amigo de fé.
Soco
daqui e empurrão dali, apareceu uma viatura da polícia, apareceram policiais,
apareceram armas, apareceu uma delas quase no meu nariz; tive que ficar quieto
e me acalmar, a coisa ficou feia. Resumindo, os visitantes foram para o Pronto
Socorro cuidar dos hematomas, e eu para a Delegacia, onde tentei explicar para
o Delegado as minhas razões. Acho que não o convenci nem um pouquinho, porque
ele mandou que me colocassem numa cela.
Alertados
pelo Jujuba, daí a pouco chegaram, muito aflitos, o Seu Antônio e a Dona Isabel,
meu pai e minha mãe, que foram tentar amenizar as coisas com o Delegado.
—
E a Marinalva? Por que ela não veio? – Perguntei de longe, da cela, mas eles nem
me ouviram, passaram direto para falar com o Delegado, que lhes disse, poderoso
e irônico, como depois me contou o meu pai:
—
O seu filho teve muita sorte. Foi uma briga feia, mas o interessado preferiu
não registrar queixa porque entendeu que não seria bom para a imagem da empresa
promotora do concurso. Só que o Antônio ficará detido aqui até amanhã, para se
acalmar e meditar um pouco sobre o que fez.
No
dia seguinte fui liberado e voltei para casa. Cheguei, não encontrei a
Marinalva. Queria saber por que ela não tinha ido com eles à Delegacia. Por que
não estava me aguardando? Será que não se preocupa mais comigo? Ninguém me
compreendeu nessa embrulhada toda, e eu esperava, pelo menos, o apoio dela. Onde
foi parar a nossa cumplicidade, de que ela sempre fala tanto?
—
“Cadê” a Marinalva? – Perguntei, zangado, bravo mesmo.
A
minha mãe ficou calada. O meu pai me olhou, muito sério. Pensou um pouco, acho
que foi para estudar como me diria aquilo. Finalmente, falou:
—
Você viu como ela estava feliz, ultimamente? Foi porque inscreveu o teu nome no
concurso para a reforma da casa, e você deu sorte, ganhou; mas ela não te disse
nada porque queria te fazer uma surpresa. A gente sabia, até o Jujuba sabia. Mas
você é uma besta, brigou e estragou tudo, jogou fora o prêmio. Agora não
sabemos onde ela está, ficou muito chateada, chorou muito, sumiu.
Besta,
eu?! Demorei um pouco para entender. Mas, de repente, “caiu a ficha” e vi que só
fiz besteiras, mesmo: Perdi a reforma da edícula, perdi a viagem, e perdi a
Marinalva...perdi a Marinalva?! ...MEU DEUS! ... A MARINALVA NÃO! ...A
MARINALVA NÃO!
Desesperado,
já percorri toda a Vila Nhocuné, sem sucesso, perguntando:
—
Por favor, é importante: alguém aí sabe onde está a Marinalva?
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