NONNO E SUA CIDADE CURON VENOSTA (*)
Claudionor
Dias da Costa
Naqueles
instantes que a gente não sabe por que e
como, vem à mente lembranças de pessoas queridas que
marcaram nossa vida.
Enquanto eu
caminhava para meu compromisso, cruzei na rua com aquele
senhor que deveria ter por volta de quase oitenta anos, que me
olhou e com sorriso suave, me deu
bom dia. Imediatamente, a imagem de
meu avô, que nos deixou há
uns dez anos, surgiu clara, e provocou minha
memória.
Parece
que o via acomodado em sua cadeira
de balanço, eu com quase quinze
anos escutando atento suas histórias de um tempo perdido
que se desvanecia nas nuvens que ele observava
enquanto falava.
O doce ócio
daqueles dias de inverno regados a chá quente
e gostosos biscoitos caseiros preparados com carinho pela minha adorável
avó, que delícia!
− Querido
neto, você não tem ideia como era bonita a nossa pequenina
Curon Venosta.
Pontuava
cada frase e gesticulava como bom italiano. Estava situada ao
norte da Itália, encostada na Suíça e Áustria, e
tinha pouco mais de mil habitantes na época.
Prosseguia detalhando os
costumes daquele povoado.
− A
vida era simples. Éramos agricultores, plantando maça
e uva, e produzíamos um pouco de vinho. Meu pai ainda fazia
alguns trabalhos de marcenaria. E, assim, a família de
seis pessoas se sustentava.
− Minha
infância foi alegre e descontraída, com travessuras com os
amigos em que escolhemos, o Sr. Pepino como vítima.
Dono da mercearia confusa com produtos espalhados. Causávamos
mais transtornos à ele espalhando mais ainda sem comprar
nada. Quem diria que viria a ser tio da minha namorada.
− O tempo
passou...
Nesse
instante vovô silenciou, parou o olhar e
continuou franzindo
a testa, mas, empolgado contando como se iniciou a
segunda grande guerra mundial e que a sua Itália ficou ao lado
da Alemanha, e em Curon cresceu mais ainda a adesão
à ideologia de seu ditador, que viria a
ser sanguinária. Outra parte mais resignada e assustada com a onda
que invadia o país preferia discrição e se amparava em suas atividades de
trabalho não entrando nas quentes discussões políticas que ocorriam. Nossa
família estava neste grupo por uma questão meramente de sobrevivência.
Sendo muito
jovem meu avô dizia que esta situação o deixava revoltado e se
envolveu em algumas confusões por não se manter calado, mas, por
sorte e pelas pessoas conhecerem sua família acabaram tolerando e não
o denunciaram. Porém, não se conformava com essa resignação serviçal.
Até se
irritava quando alguns habitantes falavam em alemão, dada a proximidade da
fronteira com a Áustria.
E
continuava dizendo que somente o alegrava
quando comparecia às missas dominicais da igreja de
Santa Catarina. O motivo principal que não o
permitia se concentrar nas orações era por conta da
visão da menina com seus cabelos alourados que refletiam
luz dourada, com instigantes olhos verdes.
Ela provocava estranhas sensações no vovô que aceleravam os batimentos de
seu coração jovem e cheio de sonhos. Quando falava nela seus olhos
brilhavam e seu entusiasmo aumentava. Seu nome era
Catarina em homenagem à padroeira da cidade.
Ao
terminar o culto, na saída as famílias ficavam conversando à porta
da igreja. Nesses momentos ele e Catarina trocavam
olhares e ele começou a sentir que também despertava simpatia. Daí
aos sorrisos e algumas poucas palavras, passou
a esperá-la na saída da escola junto com os amigos e a acompanhá-la até
sua casa.
Começava
ali um romance para o jovem casal. Ele tinha dezessete
anos e ela dezesseis.
Contudo, os
pais dela perceberam e mostraram contrariedade com a situação
porque sabiam que vovô não gostava da dominação da
guerra que tiveram que suportar. Os pais dela defendiam Mussolini.
Assim,
estava criado um problema que ele não sabia como resolver. Seu amor por
Catarina cresceu mais ainda. A menina não sabia o que fazer, e muito
triste suportava a pressão da família. Com isto, só conseguiam se ver aos
domingos, e ao longe, na igreja.
Meu bisavô
sentia pena de meu avô Antônio, mas,
procurava aconselhá-lo para que não persistisse no interesse por
ela, e se dedicasse mais ao trabalho e estudos.
A tristeza
e revolta o dominou porque sentia que naquele lugar, época de
guerra e preocupado com o futuro, a única coisa que o interessava na
vida era sua bela Catarina.
Os pais
dela procuravam ao máximo evitar contato entre eles. Aumentavam o
controle nesse sentido. A irmã mais nova todos os dias passou
a acompanhá-la na saída da escola. Contudo, ela era
simpática aos dois e passou a disfarçar que não percebia quando vovô
passava bilhetinhos à Catarina. Eram declarações de amor eterno e frases
românticas que a deixavam emotiva olhando meigamente para vovô.
Ele descrevia para mim aqueles momentos como
se os estivesse vivendo novamente.
Até que
vovô, em seu ímpeto juvenil, resolveu elaborar um plano: fugir com ela.
Para isto,
precisaria usar as economias que recebia do pai nos
trabalhos no campo e muita coragem. Seria suficiente? Só o
tempo dirá.
Movido pelo
seu grande amor, combinou com Catarina que fugiriam num domingo
à noite, quando todos já estivessem esgotados pela semana. Separaram umas
poucas roupas, se encontraram furtivamente na escuridão, e partiram.
Caminharam por mais de três horas e cansados se abrigaram na cocheira
abandonada de uma fazenda. Quando amanheceu procuraram sair rapidamente
e tomar a estrada novamente.
Com algumas
mentiras onde Catarina se passou por minha irmã e pedindo carona pela
estrada fomos parar em Bolzano.
Acabei me
aventurando trabalhando como auxiliar num armazém que vendia de tudo.
Aprendi muito nesse comércio, desde venda de alimentos até o vinho e
suas características. Aproveitei a tolerância do Sr. Pietro que queria mais que
eu trabalhasse e não fazia muitas perguntas. Até
permitiu que morássemos nos fundos de uma propriedade
velha que ele estava sempre pensando em reformar. Catarina passou a
trabalhar na sua casa como doméstica. Despertou simpatia em sua esposa pelas
habilidades que tinha e até fazia bordados junto com ela.
E assim foi
...
Após quase
um ano, eis que de repente fomos descobertos por meu pai que
estava acompanhado do pai de Catarina. Ouvimos poucas
e boas. Eu engolia em seco mudo e preocupado. Ela soluçava
em lágrimas e mal olhava para o pai. Porém, passado aquele momento,
começaram a nos perguntar como chegamos ali, o que fazíamos e como vivemos
aqueles meses. Nos recuperamos e tivemos a ajuda do Sr. Pietro que
nos elogiava. Aliás foi através dele que chegaram à nós, porque sensibilizado,
meio a contragosto com a situação que nos envolveu, resolveu
escrever para as autoridades em Curon.
E vovô
batendo forte uma mão na outra, rindo muito disse:
− Nos
levaram de volta para Curon. Ficamos até felizes, porque já
estávamos com saudades de todos e de
nossa “Piccola Città”. E a emoção daquela visão
quando chegamos:
− “Ma
que bello o Lago di Resia”.
Não demorou
quinze dias e fizeram o nosso
casamento onde “ il mio Amore” estava lindíssima.
Parecia uma deusa de branco com aquela tiara de flores.
E se
aproximou de mim e cochichou sorrateiro com sorriso no canto da
boca :
− Você
já é moço e vou te confidenciar. Seu pai, Marcello, já estava a
caminho há uns três meses. Mas, depois do casamento
esta notícia deixou todos felizes e
foi feita a reconciliação com a família da Catarina. Com a morte de
Mussolini em 1945 depois com o término da guerra a política foi sendo
esquecida por eles.
A nossa
Itália por ter passado por tudo isto, não estava nada bem. Precisava
ser reconstruída.
Com estas
dificuldades e como queríamos progredir, resolvemos emigrar para
o Brasil, porque chegavam notícias de que era uma terra
promissora e a agricultura iria crescer muito. Foi o que
fizemos. Viemos com seu pai e sua tia Bianca e fomos
parar numa fazenda na cidade de Pedreira, interior de São
Paulo no lugar que devido a colonização italiana era chamado de Tri
monte.
Ficamos
tristes quando soubemos o que fizeram com nossa Curon em 1950. Foi
totalmente submersa pelas águas, porque precisavam fazer a usina
hidroelétrica e nossas famílias foram removidas para mais distante.
Mas, como o
comércio estava no meu sangue, não demoramos em vir para
a capital. E aí você sabe de toda a história.
E
mostrando ar saudoso exclamava:
- Aquele
badalar dos sinos da igreja de Santa Catarina, me lembro até hoje.
E
virando-se para mim:
− Vamos
entrar que a “nostra bella fiore” irá nos servir o “fusilli
com bracciola”.
E
cantava alto canção italiana.
Que
saudades do vovô. Contava tão bem suas histórias que até eu me
imagino em Curon.
(*) CURON VENOSTA - Cidade ao norte
da Itália (fronteira com Suíça e Áustria) que em 1950 foi
submersa por conta da construção de usina hidroelétrica. Hoje aparece no
Lago de Resia somente a torre da Igreja (Campanário). A Netflix fez
uma série usando esta visão da cidade. Dizem que em noites
frias ouve-se até os sinos. Contudo, é uma lenda porque foram retirados há
alguns anos.
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